05/10/2009

Gracias a la vida

Gente humilde. Fisionomia indígena. Fez vibrar as raízes do continente.  Pagou caro por seu compromisso com os pobres, com a transformação. Exilada, mas não silenciada, punida mas não vencida. Sua voz continua como um estrondo, como um trovão anunciando bom tempo nos casebres humildes deste continente que ela tão bem embalou com sua linda voz durante décadas. Mercedes Sosa  nos deixou um belo testemunho, que ecoou nos porões da liberdade, durante as décadas de ditaduras latino-americanas. Ela partiu mas continuará a encantar gerações que não se cansarão de cantar – “Gracias a La vida”, Mercedes vá! pero te quedas cá!


 


Casa de reza, casa da resistência – oga pysy


Já estava escurecendo quando chegamos na casa de Ambrósio na aldeia de  Guyraroka. Bem falante, sábio e perspicaz, ele se esmerou em nos situar na longa trajetória de luta, nessa região, desde a expulsão até a retomada no ano 2000. Expulsos, ficaram uma temporada na beira da estrada. Retornaram à sua terra, onde hoje estão confinados em 58 hectares. Na terra vermelha, algumas poucas árvores à beira do riacho Ypuitã. Ali estão as 28 famílias escrevendo uma das histórias importantes da resistência Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul. A luta é dura. Apesar da terra identificada ser de 11.140 ha, os ocupantes dessas terras são hoje deputados, usineiros, e gente forte do agronegócio na região.


 


Na madrugada, ao pé do fogo e na roda do chimarrão, continuou falando longamente sobre os enfrentamentos que já teve em todos esses anos, com autoridades e inimigos, no enfrentamento, na luta pelos direitos de seu povo. Lembrou que ficou um mês com Mario Juruna, esteve várias vezes com o Dr. Geraldo Garcia, que explicou muitas coisas. Ele faz parte do grupo que desde o início da década de oitenta reiniciou as lutas das retomadas dos tekoha, terras tradicionais Guarani. Lembrou com reverência a memória de seu pai, o nhanderu, grande líder religioso, Jorge Paulo, que será homenageado com a construção da grande casa de reza-oga pysy.


 


Quando o sol ia espiando o dia, fui fazer algumas fotos da construção em taquara, que se destaca vigorosa e leve, com uma arquitetura primorosa. Depois, quando fomos conhecer melhor a arte em construção, ele foi explicando detalhadamente os sentidos de cada um dos detalhes, das portas, da disposição, da altura…Ele explica que ela representa o mundo Guarani. Depois explica como as diversas dimensões da estrutura da oga pysy representam o corpo humano, daí a ciência, a sabedoria dos Guarani ao construí-la.


 


Na verdade esse espaço estava previsto para abrigar os representantes Guarani dos cinco países, cujo encontro de 750 pessoas estava previsto para se realizar já no ano passado e agora foi adiado para janeiro do próximo ano em Foz do Iguaçu. A mudança de lugar se deve basicamente pela pressão contrária feita pelos políticos locais, especialmente o governador e o Dep. José Texeira, que tem fazenda dentro da terra indígena Guyraroká.


 


Terra Vermelha


Um dos assuntos que não poderia faltar na rodada de conversas é o filme Terra Vermelha, que conforme Ambrósio, foi inspirado na retomada de Guyraroká. Ele lembra com orgulho todo o longo processo de anos para construir e realizar o filme. Lembrou as vezes em que o diretor o visitou na aldeia, as conversas que tiveram e toda a maratona de um ano de filmagem, até o lançamento do filme, no festival de Veneza, onde recebeu prêmios, tendo sido considerado um dos melhores da competição. Quando perguntamos o porque do nome do filme, fez referência ao punhado de terra vermelha que ele comeu, na filmagem. Mas não precisava de muito explicação. Era só olhar pro chão. A vermelhidão do solo de mata atlântica não deixará dúvidas quanto à inspiração do título.


 


Durante as conversas prévias ao debate e informação sobre a Campanha-Movimento Guarani , terra, vida e futuro e o Mapa Guarani Retã, ele repetiu a explicação que ele deu a um de seus interlocutores, a respeito da diferença entre a água, terra e o índio.  Inicialmente, falou da seqüência do surgimento, primeiro a terra, depois a água, depois as árvores e finalmente o índio. “A água é o sangue, a terra a é a carne, os nervos são os cipó, as montanhas são a cabeça…” Daí foi explicando que a terra é o corpo de um ser humano e que o mundo é o corpo de um ser humano indígena…Daí concluiu que somos todos iguais. “Não quero ver nenhum parente maltratado. O índio não pode viver na beira da estrada”.


 


No início do encontro foi discorrendo harmoniosamente sobre os “passados”, os passos, os conflitos, mas também dos bons momentos de pequenas vitórias e grandes alegrias. Lembra como foi assuntando os muitos temas e problemas que foram aparecendo. “A sorte não avisa e a morte não tem hora”, explica. E conclui com rasgos de sabedoria recheada de expressões e figuras que povoam suas falas. “É fácil falar, mas entender é difícil”.


 


Terminou ousando contribuir com as lutas de seu povo propondo um encontro dos Guarani com o Papa. “Ele não conhece os Kaiowá Guarani, não conhece nosso sofrimento, não sabe o que passamos…quero dizer a ele”. E mostrou-se disposto a topar qualquer parada. “Comigo não tem mala pronta, nem estrada torta”. Disposto a por o pé na estrada pelo seu povo, ele nos deixou uma bela mensagem e exemplo de coragem, decisão, sabedoria e disposição. Que Tupã continue iluminando os difíceis caminhos para a terra sem males.


 


Egon Heck


Cimi MS

Fonte: Cimi MS
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