02/10/2009

Ataque a indígenas: usina e frigorífico podem ser denunciados

Ação violenta contra acampamento indígena Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul teve, segundo relatório da Funai, participação de funcionários da Usina São Fernando, parceria do Bertin e da Agropecuária JB. O Ministério Público Federal (MPF) poderá fazer denúncia por tentativa de genocídio.


 


A reportagem é de Verena Glass e publicada pelo sítio Repórter Brasil, 01-10-2009.


 


Um acampamento de índios do povo Guarani-Kaiowá na região de Curral do Arame, em Dourados (MS), foi atacado violentamente na  primeira hora de 18 de setembro. Na avaliação do Ministério Público Federal (MPF) do Mato Grosso do Sul, a ocorrência pode ser classificada como tentativa de genocídio. De acordo com relatos, os pertences e o barraco dos acampados foram incendiados e o indígena Eugênio Gonçalves, de 62 anos, ferido à bala.


 


Segundo documentos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do MPF, o ataque ocorreu por volta da 1h da madrugada, quando o grupo de índios dormia no acampamento improvisado construído no dia anterior na altura do km 10 da Rodovia BR-463, ao lado da Fazenda Serrana. A propriedade foi arrendada para o plantio de cana-de-açúcar pela Usina São Fernando. A usina, por sua vez, é um empreendimento da Agropecuária JB (Grupo Bumlai) com o Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos da América Latina (leia mais abaixo).


 


Analista pericial do MPF que esteve no local logo após o ocorrido foi informado que cerca de oito pessoas, algumas delas armadas, teriam participado da ação. “A movimentação do grupo [de indígenas no dia 17] deve ter atraído a atenção do proprietário da fazenda [Serrana] ou de quem a arrenda para fins de plantio de cana. Os índios narram que já era madrugada, cerca de uma hora da manhã, quando começaram os tiros. No momento da investida, `foi uma correria`. Mães agarravam seus filhos pequenos e tentavam fugir. Duas pessoas saíram feridas (…). O barraco construído por eles foi completamente queimado e as paliçadas erguidas para a construção de mais habitações arrancadas e/ou queimadas”, discorre o relatório do Ministério Público Federal do MS.


 


Nos relatórios da Funai e do MPF, funcionários da Usina São Fernando e da empresa de segurança Gaspem são apontados como responsáveis pelo ataque. No documento da Funai, consta depoimento que afirma que “eles chegaram de repente com lanterna na mão, não falaram nada, foram rasgando as lonas com facão e colocaram fogo no barraco. Quem atirou foi o Paulinho, funcionário da usina São Fernando, e o Gerente, [que] chama Roberto (…)”. No mesmo relato colhido pela Funai, o sexagenário Eugenio conta que foi baleado na perna, caiu e acabou recebendo uma coronhada no braço.  


 


Ao MPF, os indígenas também apontaram os seguranças da Gaspem como principais responsáveis. “A comunidade estima que, ao todo, naquela noite, compareceram ao local umas 20 pessoas. Frisaram que, na fazenda Serrana, enquanto ocorria a desocupação, um carro da firma dava cobertura”. Para o analista do MPF, um funcionário da Gaspem explicou que a empresa havia sido contratada para guardar materiais da usina.


 


Para o procurador do MPF em Campo Grande (MS), Marco Antonio Delfino, o caso deve ser tratado como tentativa de genocídio – “um grupo armado teve intenção explícita de atacar outro grupo por suas características étnicas, porque são indígenas”. As investigações devem ser apressadas e os resultados apresentados em menos de um mês.


 


“Em relação à empresa de segurança Gaspem, vamos atuar na área cível, criminal e administrativa – responsabilização criminal pelo ataque, indenização por este fato e outros semelhantes relacionados à participação da empresa. Do ponto de vista administrativo, será pedida a cassação do registro da empresa em face das irregularidades”, adicona o procurador federal.


 


Já a Usina São Fernando – arrendatária da Fazenda Serrana e que, conforme  documento da Funai, teve participação por meio de funcionários no ataque – deve ser co-responsabilizada. No processo, afirma Marco Antonio Delfino, a Gaspem poderá ser denunciada também por outras ações, como a participação no despejo de indígenas kaiowá da Fazenda Campo Belo, na região de Porto Cambira (MS), em 2004, a morte do índio Dorvalino Rocha, 39, em Antonio João (MS), na fronteira com o Paraguai, em 2005, e a morte da índia Xurete Lopes, 70, durante desocupação forçada da fazenda Madama, no município de Amambai (MS), em 2007.


 


Estréia complicada


Instalada em Dourados (MS) em 2009, a Usina São Fernando é tocada por uma parceria da Agropecuária JB (Grupo Bumlai), especializado em melhoramento genético de gado de corte, e o Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos produtores e exportadores de itens de origem animal da América Latina.


 


Dono da Agropecuária JB, José Carlos Bumlai foi apresentado em 2002 ao então candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, que gravou ali os programas sobre agronegócio que foram usados na campanha, segundo matéria da revista Dinheiro Rural reproduzida no site da Agropecuária JB. De acordo com a matéria, Lula teria assumido, nos vídeos de campanha, “um compromisso em defesa da propriedade e da produção, afugentando o fantasma de uma reforma agrária radical, que sempre pesou sobre os ombros do PT”.


 


O Grupo Bertin, que está em processo de união com o frigorífico JBS Friboi, maior empresa do setor no mundo, tem 27,5% de suas ações controladas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 2008, a São Fernando, primeiro empreendimento do Bertin na produção de etanol, foi beneficiada com um empréstimo de R$ 338 milhões do BNDES.


 


Em junho deste ano, a usina aderiu ao Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, acordo firmado entre o governo federal e os setores produtivo e sindical. A iniciativa visa propor melhorias aos cortadores de cana para melhorar a aceitação do etanol brasileiro como combustível “limpo” no mercado internacional, mas acabou excluindo questões básicas como a alimentação.


 


Para completar, o Compromisso Nacional abriga três usinas que fazem parte da “lista suja” do trabalho escravo. Procurado para comentar o ataque ao acampamento indígena, o Bertin, através de sua assessoria de imprensa, afirmou que “os seguranças da usina [São Fernando] não andam armados e não se envolveram em nenhum conflito. Não temos nenhuma notícia em relação ao fato e estamos apurando a informação. A Usina São Fernando não é proprietária de nenhuma terra na região”.


 


Já o diretor-superintendente da Usina São Fernando, Paulo César Escobar, confirmou que “existe um contrato de parceria agrícola entre a Usina e a Fazenda Serrana, ou seja, a usina planta cana na área de fazenda e divide os frutos com o proprietário”. Ele teria sido informado que “o conflito não ocorreu na área de plantio de cana (onde ocorre a parceria com a Usina São Fernando), mas em outra parte da fazenda”, o que contraria o parecer emitido pela Funai. O diretor também negou qualquer relação com a Gaspem, que teria sido contratada pelo proprietário da Fazenda Serrana. A Gaspem foi procurada pela reportagem, mas não houve quem se manifestasse pela empresa.


 


Histórico de conflitos


Há seis anos, o grupo Guarani-Kaiowá do Curral de Arame está acampado às margens da BR-463, há aproximadamente 7 km de Dourados. Segundo a Funai, por duas vezes o grupo tentou voltar aos territórios originários, ocupado atualmente por grandes fazendeiros. Em junho de 2008, houve uma ocupação de um pequeno pedaço da Fazenda Serrana, próximo à mata da Reserva Legal da área, onde os indígenas fizeram pequenas roças.


 


De acordo com o MPF, naquela ocupação a estratégia da fazenda foi “sitiar os índios através dos serviços da empresa de segurança Gaspem, que impedia que a Funasa [Fundação Nacional de Saúde] e a Funai promovessem atendimento e assistência médica. Naquele tempo, os índios só puderam ser visitados pelos órgãos indigenistas graças à intervenção da Polícia Federal”.


 


Com a reintegração de posse, os índios foram obrigados a ocupar a outra margem da BR-463, por causa de obras de duplicação da rodovia. Cerca de vinte pessoas formaram o Acampamento Apyka’y, onde construíram seis barracos e passaram a viver na dependência de cestas básicas da Funai.

Fonte: Repórter Brasil
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