Respeito e dignidade nas diversas formas de ser sul- matogrossense
Fazer um retorno ao passado nos possibilita pensarmos quem somos e entendermos as atuais condições das sociedades indígenas de Mato Grosso do Sul. O que temos construído em nosso imaginário nos mais de quinhentos anos de Brasil, se reproduz cotidianamente, quando não vemos no outro, a humanidade construída na diferença. Continuamos a ver indígenas, camponeses e negros com uma desumanidade profunda, que não cria caminhos de recriar a identidade sul-mato-grossense na diferença, na luta e o direito de outrem, mas sim no descaso, na violência como tem sido tratadas as lutas pela terra dos Guarani e Kaiowá. E, nestes últimos dias, na violência cometida por fazendeiros na comunidade Guarani Laranjeira Nhanderu e na comunidade Apika’y. O primeiro caso, ocorrido no município de Rio Brilhante, no dia quinze de setembro, onde capangas a mando de fazendeiros queimaram suas casas e parte dos pertences, ainda deixados depois do despejo, ocorrido por ordem judicial no dia onze de setembro. E o segundo acontecimento, se deu no dia 18 de setembro, onde um grupo de dez homens atacou o acampamento às margens da BR – 483, ferindo um indígena Kaiowá a tiros e incendiando casas (barracos) e objetos.
Neste contexto, percebe-se que colocar fogo na casa dos outros virou uma prática entre os fazendeiros de Mato Grosso do Sul. Além de queimarem suas casas de sapé, seus barracos de lona, no meio da fumaça negra e acinzentada minimizaram a humanidade de crianças, velhos e adultos que ali respiraram a fumaça. Fumaça esta, que se levantava novamente para expô-los enquanto infiéis, sem legitimidade do direito a terra, enquanto animais que nada tem a oferecer a sociedade sul-mato-grossense, exceto sua mão-de-obra nas aberturas de fazendas, estradas e, nos dias de hoje, no corte da cana-de-açúcar nos canaviais do agronegócio do estado. Ou seja, estado de sul-mato-grossenses que nega a identidade indígena, mesmo sendo construída em detrimento dos seus territórios ancestrais, mas também, no clamor da sua resistência e Re-existência.
Quem estava aqui quando a América ou o que hoje conhecemos por Brasil foi conhecido/ ”descoberto” pela Europa? Quem eram aqueles caracterizados como selvagens, bárbaros, preguiçosos, nas crônicas de viajantes de espanhóis, portugueses e franceses que primeiro tiveram contato com o Novo Mundo? Eram os índios! E ser indígena é resistir, se recriar nesses mais de quinhentos anos de Brasil e de dizer que bárbaros, selvagens, preguiçosos são aqueles que se levantam indiferentes ao direito à vida, fomentando a violência e desrespeitando a dignidade humana. Desconhecemos a cultura indígena, mesmo convivendo com ela cotidianamente, como acontece no município de Dourados, e ainda continuamos a reproduzir uma mitologia dos tempos medievais e da conquista européia, estigmatizando o índio enquanto selvagem, bárbaro, preguiçoso e entre outros adjetivos.
Temos que repensar a propriedade da terra e, assim, revermos se tem ou não autenticidade as demarcações dos territórios tradicionais indígenas, sendo que, esta redefinição passa pelo imaginário, nas concepções mitológicas e fabulosas que temos sobre/dos índios. As questões difundidas por fazendeiros por meio da mídia, se colocam a partir do não reconhecimento do índio, pois o índio não é mais índio, devido a determinadas conjunturas e características do tempo da conquista, no qual o índio não faz parte. Ou seja, o índio não anda pelado, não mora em uma oca, mas sim, usa roupa, tem celular e mora, também, em casa de alvenaria. Neste contexto, nega-se ao índio, seu movimento na história, sua transformação, seu direito de se afirmar e de lutar por seus direitos ancestrais.
Quem pode dizer quem é, ou não é índio, neste Brasil são as sociedades indígenas, e se partimos do pressuposto de não serem mais os mesmos do tempo da conquista, teremos que repensar se os brasileiros que vivem em outros países deixaram de ser brasileiros, por falarem inglês, francês, espanhol e adotarem outros hábitos culturais “não-brasileiros”. Contraditoriamente, mesmo aqueles que negam a existência indígena se contradizem na negação da sua existência, salientando que índio não trabalha, pois quem trabalha no Estado de Mato Grosso do Sul é não-índio. Mas, ao negar a existência indígena, salientam que estes não precisam de terra, porque os índios que encontramos cotidianamente, no caso do município de Dourados, nas escolas, lojas, canaviais e entre outros lugares, não trabalham. Como deixaram de serem índios se continuam a ser reconhecidos nas ruas da cidade enquanto tal? Os coronéis do passado e do presente utilizaram e utilizam a mão-de-obra indígena no clamor do que chamam de progresso e desenvolvimento. O índio que ora é índio e ora não é, são índios quando a referência é o não-trabalho, ou seja, o ócio, pois o índio não trabalha. As terras demarcadas para indígenas são improdutivas, são “mato”, como assim colocam os fazendeiros referente à aldeia Panambizinho, comparando-a com áreas de colonos que fazem divisa com a aldeia, com uma plantação de milho (Jornal O Progresso, 30/04/2009). Neste contexto, nega-se ao índio sua relação com a terra, seu modo de se relacionar com a natureza, com os animais, com a grande biodiversidade presente na aldeia Panambizinho. Formigueiros, diversos tipos de borboletas e diversos frutos da terra, mandioca, milho entre outros cultivos, é sim o mato do Kaiowá e Guarani, na grande biodiversidade da natureza, raramente encontrada nas fazendas e latifúndios de Mato Grosso do Sul, tomadas por monoculturas de cana-de-açúcar, soja e eucalipto.
Se a questão é trabalho, devemos repensar o trabalho e quem trabalha em Mato Grosso do Sul, pois fazendeiros/latifundiários perderiam a legitimidade sobre suas terras, porque, na maioria das vezes, nem em suas terras trabalham, mas sim contratam trabalho alheio, muitas vezes, subordinando trabalhadores à condições degradantes de trabalho. E, ainda, raramente moram em suas fazendas, mas moram em bonitas e confortáveis mansões na cidade, desconsiderando o trabalho no qual exploram de índios, no corte da cana-de-açúcar, nas fazendas, carvoarias e entre outros.
A questão da terra, ou melhor, do acesso a terra no Brasil e no atual Estado de Mato Grosso do Sul não é uma discussão de índios, mas envolve todas instâncias da sociedade no atual estado de conflito que se coloca o Estado de Mato Grosso do Sul, no tocante as vistorias/demarcações dos territórios tradicionais. As lutas pela terra dos Guarani Kaiowá torna-se uma luta para além das disputas territoriais entre fazendeiros e indígenas, ou seja, põe em xeque as responsabilidades do Mato Grosso do Sul, que no passado, disponibilizou terras indígenas, “ditas sem gentes”, para colonização à colonos, vindos principalmente do sul do Brasil. Neste contexto, diante da legitimidade do acesso à terra, temos que repensar nossos estereótipos referentes às sociedades indígenas, e perguntarmos em quais condições tem se dado hoje os conflitos de disputas pela terra que permeiam o Estado de Mato Grosso do Sul. Também perceber a autenticidade dessas lutas e a importância da terra tradicional para a sobrevivência dos Guarani e Kaiowá, repensando a legitimidade da propriedade privada. No âmbito das disputas pela terra de fazendeiros e indígenas, partimos do pressuposto que fazendeiros têm grandes extensões de terras na posse de uma pessoa ou família, enquanto que para os indígenas, a demarcação das terras, no sul de Mato Grosso do Sul serão distribuídas nas mãos de várias famílias, de uso coletivo e não individual. Assim, devemos novamente perguntar, porque os fazendeiros têm grandes extensões de terras em suas mãos, contrapondo-se a legitimidade da luta pela terra dos Guarani Kaiowá, suas habilidades para o trabalho/tipo de trabalho e da identificação destes enquanto indígenas no século XXI e a produtividade e função social de suas terras.
No Estado de Mato Grosso do Sul, índio é índio quando está na aldeia, quando é preguiçoso, pois índio não trabalha, pelo fenótipo e genótipo. Contudo, quando clama e reclama por seus direitos perde seu direito de ser aquilo que diz ser. Os indígenas nos mais de quinhentos anos de Brasil são renegados enquanto sujeitos da história e, enquanto, os sul-mato-grossenses os negar como parte integrante da diversidade cultural, continuaremos a reproduzir o que no tempo da conquista se fez presente, ou seja, um índio incivilizado. Pois os europeus eram civilizados, bárbaros e selvagens/animais, afirmando uma humanidade e dignidade européia em detrimento de outras matrizes de racionalidade, repetindo o que os denominados civilizados fizeram no passado com as diversas sociedades indígenas: violentaram, extinguiram, roubaram suas terras, abusaram de suas mulheres e, posteriormente, se colocaram e se colocam como proprietários legítimos das terras ancestralmente ocupadas por indígenas centenas de anos antes que espanhóis ou portugueses soubessem da existência de um continente chamado América, uma terra chamada Brasil e um Estado, conhecido pelas belezas pantaneiras, mas não reconhecido pela diversidade étnica e cultural que tem o Estado de Mato Grosso do Sul. Neste sentido, pensar a luta das sociedades indígenas implica repensar o imaginário preconceituoso e estereotipado que temos construído nos mais de 500 anos de Brasil, e assim, nos atermos mais na diversidade de línguas, costumes, tradições, diversas formas de executar trabalhos, sentir e ser sul-mato-grossenses.