09/09/2009

Razões que fundamentam a negação dos direitos dos Povos Indígenas

Há cerca de dois anos, 36 famílias Guarani-Kaiowá, das centenas que vivem confinadas em condições degradantes de vida, cansadas de esperar que suas terras tradicionais fossem reconhecidas e demarcadas decidiram retomar um pequeno pedaço, no qual foi criada a aldeia Laranjeira Ñande Ru, no município de Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul.


 


As famílias enfrentaram grandes desafios. Já foram ameaçadas por jagunços e proibidas de plantar, mas mesmo assim se mantiveram firmes, aguardando a criação do Grupo de Trabalho (GT) da Funai para proceder a identificação e a demarcação da terra. O GT foi constituído e iniciou os trabalhos, mas acabou sendo suspenso por uma decisão judicial, em decorrência de pressões e ações de fazendeiros. Como o GT foi impedido de estabelecer o reconhecimento da posse e do usufruto indígena sobre a terra, a desembargadora federal e presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Marli Ferreira, determinou o despejo da comunidade da terra retomada.


 


Quais as razões que levam fazendeiros e juízes a empreender tanto esforço para impedir os estudos antropológicos naquela região? Se as terras em questão não são indígenas, por que fazer tamanho alarde, mobilizando instâncias do governo federal, como o Ministério da Justiça, a Presidência da República e o Poder Judiciário para inviabilizar a realização dos trabalhos da Funai?


 


Fatos como esses mostram que a questão fundiária está no centro dos conflitos e mobiliza interesses diversos. Os povos indígenas têm direito a posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e isso é explicitamente assegurado no Art. 231 da Constituição Federal. A Carta Magna responsabiliza a União em demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens indígenas. O parágrafo quarto deste mesmo artigo estabelece que as terras “são inalienáveis e indisponíveis”, e os direitos sobre elas são “imprescritíveis”. E no parágrafo sexto, afirma-se que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”.


 


Não restam dúvidas, portanto, que a demarcação das terras deve ser assumida como uma prioridade.  Também é indiscutível a obrigatoriedade do cumprimento das normas estabelecidas na CF pelos poderes públicos – o Executivo, o Judiciário e o Legislativo. Mas, no caso específico de Mato Grosso do Sul, os preceitos constitucionais têm sido flexionados pelos interesses e pressões de pesados e poderosos grupos econômicos e políticos, aglutinados em torno do agronegócio. Tais segmentos ambicionam explorar o solo, subsolo, a natureza e as águas existentes dentro dos limites das terras indígenas. Estes grupos influenciam decisivamente o governo do Estado e seus parlamentares, bem como o governo federal, sua base de sustentação, os partidos que lhe fazem oposição. Seu poder de ação também se faz sentir em importantes decisões tomadas no âmbito do poder Judiciário, tal como vem ocorrendo, no caso específico da aldeia Laranjeira Ñande Ru.


 


Embora amparados pela nossa Carta Magna, os índios ficam entregues à própria sorte e, em função disso, ampliam-se assustadoramente o número de violências praticadas contra eles. Entre os anos de 2006 e 2008, ocorreram 209 assassinados de indígenas no país e, especificamente em Mato Grosso do Sul foram registrados 122 destes assassinatos, o que representa quase 60% das vítimas. Submetidos ao descaso, ao desrespeito e à humilhação cotidiana, muitos Guarani-Kaiowá perdem a esperança e a vontade de viver. Nos últimos três anos ocorreram 95 casos de suicídios.


 


No tocante ao patrimônio indígena, a ineficiência dos órgãos de fiscalização, que se encontram sucateados e sem os recursos humanos necessários, contribui para as invasões das terras indígenas. Das 847 terras, mais de 80% estão invadidas. Além de retirarem madeira, pescados, minérios etc., os invasores intimidam as comunidades com rajadas de tiros desferidos contra suas casas ou deixando listas com nomes de lideranças a serem assassinadas.


 


Os dados relativos às violências praticadas contra os povos indígenas manifestam a existência de um abismo entre o direito, criado pelo legislador, e a realidade vivenciada pelos mais de 241 povos em nosso país. Em sua maioria, eles estão submetidos aos mais cruéis problemas humanos: fome, doenças infecto-contagiosas, assassinatos, confinamentos, acampamentos de beira de estradas, escravidão em canaviais, usinas e fazendas, destruição de suas matas, contaminação das águas, perseguição aos povos em situação de isolamento e risco e devastação de seu habitat tradicional.


 


É também notória e visível a omissão do governo federal quando examinamos os dados acerca das demarcações e regularizações de terras indígenas. Não custa lembrar o prazo de cinco anos, estabelecido pela CF de 1988 (Ato de Disposições Transitórias Art.67), desde sua promulgação, para que o Estado Brasileiro as regularizasse. Já transcorreram 21 anos, deste prazo, e as terras indígenas, em grande maioria, não foram devidamente demarcadas. Durante os últimos três anos (2006-2008) o governo federal apenas homologou 20 terras, declarou 39, e identificou 28. Permanecem sem providências, pelo menos 216 terras. Dados parciais de 2009 relativos aos procedimentos demarcatórios, indicam um quadro ainda mais desolador para os povos indígenas: até os primeiros dias do mês de setembro, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva identificou duas terras, declarou seis, e não homologou e nem registrou qualquer terra indígena.


 


Infelizmente todos estes dados reforçam a triste certeza de que os povos indígenas, apesar de inegáveis conquistas e de seu protagonismo frente a alguns espaços políticos, enfrentarão grandes desafios na luta pelos seus direitos. Com o avanço acelerado de grandes empreendimentos econômicos, que objetivam a exploração da terra e de seus recursos, as pressões sobre os povos tendem a crescer. Pelo menos 48 obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) afetarão diretamente as terras destes povos, em todas as regiões do país.


 


Dentre estas obras, podemos citar a hidrelétrica de Belo Monte que, se construída, afetará mais de 25 mil moradores do município de Altamira (PA), e destruirá pelo menos 100 quilômetros de largas cachoeiras, corredeiras, arquipélagos florestados, canais naturais rochosos, além de pedras gravadas e outras relíquias arqueológicas. Conforme ressalta Rodolfo Salm, esta região é um verdadeiro monumento fluvial do planeta. Não bastasse o incalculável dano social e ambiental, os custos financeiros desta hidrelétrica também são elevados: estima-se um gasto de 25 ou 30 bilhões de reais, em grande parte recursos públicos, investidos em uma usina que funcionará em toda sua capacidade apenas três ou quatro meses do ano.


 


Em outras regiões os povos indígenas serão afetados pela devastação causada por empreendimentos de monocultivo, por exemplo. E os efeitos deste tipo de agricultura predatória já são sentidos pela população dos Estados do sul do país, nos quais se plantam gigantescas áreas de eucalipto e de soja. Nesta região o Povo Guarani é um dos mais prejudicados e luta por pequenas porções de terras em encostas de morros ou sobre as raras capoeiras ainda existentes. Nas poucas áreas com recursos ambientais mais resguardados os Guarani são impedidos de viver ou delas são expulsos, acusados de depredarem as matas.


 


Este novo século, do qual já vivemos uma década, exigirá muita convicção de todos os segmentos sociais e das pessoas que acreditam e que lutam pela justiça.  São muitas as “facilidades” e benefícios anunciados nos discursos em defesa dos mega-empreendimentos. Mas a lógica que rege esses investimentos é a da lucratividade a qualquer preço e, munidos de novas e poderosas tecnologias, eles devastam mais rapidamente os bens naturais da terra. Os pesquisadores das áreas biológicas e ambientais têm alertado que, nos últimos 50 anos, o homem consumiu mais recursos naturais do que nos últimos 2000 anos. E é neste planeta que estamos todos inseridos, e que desejamos construir nossos projetos de futuro. Os povos indígenas podem nos ensinar a rever muitas de nossas prioridades e a pensar em alternativas mais coletivas e solidárias, que considerem o ser humano como um dos fios no tecido da vida de todo o planeta e que possibilitem o bem viver e a dignidade de todos os povos e culturas.


 


Porto Alegre (RS), 08 de setembro de 2009.


Roberto Antonio Liebgott


Vice-Presidente do Cimi.

Fonte: Cimi Sul - Equipe Porto Alegre
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