Cidadão comum: Elton Brum da Silva! Presente!
O sobrenome de uma pessoa, ao menos no Brasil, carrega um pouco das origens, da ancestralidade, dos vínculos com outras pessoas e, de certo modo, pode informar também sobre os lugares sociais dos indivíduos. Entre os sobrenomes mais comuns e numerosos encontram-se os Silva, da Silva, dos Santos, Souza e suas histórias estão profundamente enraizadas nas culturas que compõem o nosso país.
Onde se situam os Silva, da Silva, dos Santos, os Souza em nossa organização sócio-econômica e política? Obviamente, em todas as partes. Estão em profissões diversas, em instituições como as universidades, compondo também a intelectualidade. Estão na política, nos púlpitos religiosos das mais variadas denominações, nas empresas, na economia e suas infindáveis ramificações.
Mas, o fato de estarem em todas as partes não significa que nosso país oferece igualdade de oportunidades e de condições a todos os cidadãos. A grande e expressiva maioria das famílias brasileiras, em especial aquelas cujo sobrenome não representa prestígio ou nobreza, ocupa uma posição subordinada na pirâmide social, como o sem-terra Elton Brum da Silva, que foi assassinado pela Polícia Militar do Rio Grande do Sul quando reivindicava, juntamente com outros iguais a ele, o direito à terra. Ele lutava pela reforma agrária e sonhava, como os demais Silva, dos Santos, Souza, com a possibilidade de adquirir um pedaço de terra, uma fração das tantas existentes, que hoje estão concentradas nas mãos de poucos proprietários.
A concentração fundiária é um dos principais fatores que originam as desigualdades sociais em todo o Brasil. De acordo com dados do Incra, 50 % do total das terras agricultáveis do país estão nas mãos de apenas 2% de proprietários. Não é por acaso que os 20 maiores proprietários rurais detêm uma extensão de terra semelhante a que vivem e trabalham 3,3 milhões de pequenos produtores da agricultura familiar. Um fosso cada vez mais acentuado, e aparentemente intransponível, se produz hoje entre ricos e pobres. Isso é resultado de condições históricas que possibilitaram maior ou menor acesso aos recursos e às riquezas, mas é apresentado como uma condição natural, ou seja, como se a propriedade da terra fosse uma questão de mérito e de esforço pessoal dos latifundiários e a falta de acesso a ela, por parte dos sem terra, tivesse relação com desleixo ou incapacidade.
O sonho de Elton da Silva era respaldado no direito e na concepção de que as terras devem ser destinadas ao bem comum, devem cumprir sua função social e produzir o suficiente para alimentar cidadãos comuns das famílias Silva, Souza, Santos, Pereira, Oliveira, Moreira e milhares de outras que se encontram abaixo da linha da pobreza.
Na pirâmide social a maioria das famílias de sobrenome Silva, dos Santos, Souza ocupam um lugar comum, que não condiz com sua importância, embora, alguns de seus filhos estejam sentados nas melhores poltronas e até nos tronos palacianos. Mas, isso ocorre por força dos cargos políticos que ocupam, são eles exceções e somente por este motivo, recebem o tratamento de cidadãos especiais.
No Brasil, infelizmente, a cidadania é medida – como afirmou o próprio Lula da Silva ao proteger os atos de corrupção do senador Sarney – pela “importância” do cargo ou função que o indivíduo desempenha na escala do poder. De acordo com essa lógica, Elton da Silva era “apenas” um sem terra, nada mais que isso. E para os que se valem dessa noção de cidadania vinculada ao poder, o sem terra parece não possuir direitos, nem cidadania, nem um nome de prestígio, nem um cargo que respalde suas reivindicações. E também parece não importar a situação da família que sofreu essa perda brutal, os dois filhos, a esposa, os amigos, porque ele era somente um sem terra. O Elton da Silva, por ser um cidadão comum, sem terra, sem cargos, sem importância política, acabou assassinado pelo poder público do Rio Grande do Sul.
Alguns dias se passaram e não muito longe do Rio Grande do Sul, no Planalto Central, a Suprema Corte do país não quis punir um ex-ministro de Estado, o senhor Antônio Palocci. O iminente e atual deputado federal fora acusado de quebrar o sigilo bancário de um cidadão comum, um dos Santos, Francenildo dos Santos Costa. A pergunta que fica é, se fosse o dos Santos, sem cargo importante e sem prerrogativas de foro privilegiado, a praticar um pequeno delito ou ter tido alguma desavença com o ex-ministro, o que teria acontecido?
A cidadania dos comuns, no Brasil, é a que se destina a grande maioria das pessoas negras, indígenas, brancas – jovens, adultas, velhas – aos homens e mulheres que precisam de emprego e de terra para sobreviver. A cidadania dos especiais é exclusiva de latifundiários, de grandes empresários, de banqueiros, de senadores, deputados, ministros, governadores, secretários de estado, prefeitos. É também prerrogativa do presidente da República, que coincidentemente é um Silva transformado em cidadão especial pelo voto dos milhões de outros Silva, Santos, Souza. No entanto, no exercício da função pública, o presidente optou por agradar preferencialmente setores privados e os cidadãos especiais.
Nesta racionalidade política, dita democrática e popular, se destinam aos Silva, dos Santos, Souza algumas políticas compensatórias, tais como as cestas básicas, as bolsas disso ou daquilo, como se isso bastasse para amenizar as dores e horrores vividos por quem não tem acesso aos recursos indispensáveis para viver. Aliás, estas compensações, que atuam sobre os efeitos e não sobre as causas das desigualdades, são referendadas e decantadas por muitos sociólogos, analistas de conjuntura, intelectuais de esquerda e de direita e por políticos como sendo um grandioso feito do governo Lula da Silva.
A mencionada “política” compensatória certamente não trará cidadania, ao contrario disso, ela serve de maquiagem para uma situação de miséria generalizada. Ela congela os elevados números de pessoas que vivem na linha da pobreza, e assim assegura a continuidade de uma realidade que deveria ser radicalmente transformada. E somente haverá a possibilidade de uma efetiva redistribuição de renda, o acesso ao emprego, aos serviços essenciais, a demarcação e regularização das terras indígenas e quilombolas, a reforma agrária a partir de uma transformação que atinja as bases sob as quais estão assentadas as desigualdades e os privilégios sociais. Sem isso, como evitar que outros Elton da Silva venham a ser assassinados enquanto reivindicam terra para viver?
A cidadania plena, sem distinções entre pessoas comuns e especiais, ainda precisa ser conquistada pela imensa maioria da população brasileira. Mas, a certeza que fica é a de que e isso não acontecerá pela boa vontade de agentes dos poderes públicos. O que temos acompanhado, quando se trata de assegurar os direitos sociais, são a omissão e negligência das pessoas que estão à frente destes poderes. E, dentre os agentes de instituições que deveriam zelar pelo bem estar de todos, vemos aqueles que estimulam ou protagonizam violências, como o assassinato do Elton da Silva. E aqui, é bom registrar, não se trata de um tiro deflagrado acidentalmente, mas de uma ação violenta e repressiva, que não ocorreu de modo isolado, mas que marca uma lógica de criminalização aplicada a todos os movimentos de luta que ousam levantar-se contra as desigualdades e os privilégios neste país, em especial no que concerne às lutas fundiárias.
Nos últimos anos dezenas de outros lutadores, com nomes e sobrenomes comuns, também foram assassinados em lutas pela reforma agrária, pela demarcação das terras indígenas, pelos direitos dos seringueiros, em defesa da natureza, pela dignidade das mulheres agricultoras, pelos atingidos por barragens. Mas, como lição deixada por muitos desses lutadores, declaramos que as violências praticadas contra os que defendem a mãe terra se transformam em rebeldia, em utopia, em fermento e em luz na caminhada pela vida e pela justiça.
Roberto Antonio Liebgott