25/08/2009

Infância protegida: uma lição dos povos indígenas

Na edição do dia 9 de agosto de 2009 o programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, apresentou uma longa reportagem sobre o ritual de batismo do povo indígena Tuyuka, habitante do Estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia. O Yeriponá baseriwi, ritual de dar o nome, não era realizado há 40 anos. Por essa razão, ao retomarem essa prática, os indígenas recuperam um bem cultural valioso do qual haviam sofrido uma alienação forçada.


 


O rito de iniciação é a “porta de entrada da criança na sua sociedade”, na verdade, trata-se de um segundo nascimento, o nascimento cultural, onde toda a comunidade acolhe o neonato e imprime nele a sua marca, a identidade Tuyuka que será culturalmente construída a partir de seu ingresso na vida do povo. Ao nascimento biológico são acrescidas as marcas do humano, simbolizadas através de muitos signos que expressam a identidade do grupo.


 


Segundo Paulo Suess, “os ritos e costumes de socialização indígena variam bastante de um povo para outro. O que não varia é a atenção comunitária que o individuo experimenta ao nascer em uma aldeia indígena”.


 


Como bem demonstrou a reportagem acima referida, no ritual do batismo há um compromisso assumido por toda a comunidade. Todos assumem publicamente a responsabilidade em cuidar da criança e ajudá-la a inserir-se na vida social e cultural. Dessa forma, aos adultos cabe o papel de, juntamente com os pais, transmitir à criança os seus usos, costumes e tradições, procurando sempre fortalecer os vínculos de identificação dela com seu meio. Nas imagens mostradas pela TV, durante o ritual a criança passou de colo em colo, sendo acariciada, sentida, protegida e desejada por cada mãe da comunidade e, por último, acolhida pela anciã do povo que lhe pronunciou palavras de boas vindas ao seio comunitário.


 


Essa relação de carinho e proteção dos povos indígenas com seus filhos despertou a atenção dos primeiros colonizadores. O jesuíta Fernão Cardim, que chegou ao Brasil no ano de 1583, assim escreveu ao referir-se aos índios Tupinambá: “amam os filhos extraordinariamente (…) e não lhes dão nenhum tipo de castigo”.


 


É possível imaginar a surpresa causada aos portugueses os bons costumes indígenas em cuidar bem de seus filhos, pois na Europa os costumes eram bem diferentes. As crianças, em geral, eram submetidas a castigos humilhantes e espancamentos. Além do mais, era grande o número de recém-nascidos jogados pelas ruas das cidades e lugares ermos que acabavam por morrer sem socorro. Em razão disso, no ano de 1675 foi fundada em Lisboa a casa dos expostos para acolher os filhos enjeitados.


 


A casa dos expostos foi uma instituição criada na Idade Média com a finalidade de combater a prática do infanticídio. No local, havia uma roda giratória onde as pessoas podiam abandonar as crianças com a garantia de ter preservado o anonimato. Sua origem está associada a uma iniciativa do papa Inocêncio III. Chocado com o grande número de bebês que apareciam mortos no rio Tibre, o papa criou, em Roma, o primeiro hospital para acolher as crianças abandonadas e assisti-las.


 


Pesquisas históricas, referentes aos séculos XVIII e XIX, confirmam o abandono e morte de crianças, em larga escala, também no Brasil, nas cidades mais populosas de então, a exemplo do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. De acordo com a historiadora Alcileide Nascimento, “foram os portugueses que introduziram esse costume na vida colonial, pois entre os povos indígenas e africanos não existe registro de que fosse uma prática recorrente”.


 


Constatação semelhante irá fazer Maria Luiza Marcílio, também historiadora. Ao analisar documentos sobre a exposição de crianças no período de 1785-1830 no Estado de São Paulo, informa que “em Ubatuba, por exemplo, vila predominantemente constituída de pequenas roças de subsistência, dificilmente o caiçara abandonava seus filhos. Vai aí também, com certeza, forte influência do índio nessa população de mamelucos, pois aquele nunca expunha seus bebês” [grifo nosso].  Isso nos leva a crer que já naquela época a prática do infanticídio entre os indígenas fosse restrita a povos ainda em situação de isolamento, em geral nômades, já que não havia registro de casos entre os povos aldeados.


 


Somente a partir do terceiro século do período colonial a problemática da criança passou a ser enfrentada pela administração pública no Brasil. Antes disso, parecia haver certa “naturalização” das práticas de abandono dos recém-nascidos, não obstante a grande quantidade daqueles que morriam pelas ruas e calçadas, geralmente atacados por cães e porcos ou pisoteados pelos cavalos que transitavam facilmente pelos becos onde os bebês eram deixados. Nesse período, foi instituído no Brasil o uso da roda dos expostos. No total, 13 casas estiveram em atividades desde a Colônia até a República. A casa dos expostos de São Paulo manteve-se aberta até o ano de 1950.


 


Essas referências históricas contestam a idéia do infanticídio enquanto prática tradicional nociva dos povos indígenas, como pretende o deputado Henrique Afonso, em Projeto de Lei de sua autoria (PL 1057/2007). Pois como se vê, lamentavelmente, trata-se de prática comum às mais variadas culturas, inclusive às grandes civilizações antigas da Grécia e Roma onde era permitida.


 


Refletindo sobre a situação de abandono de crianças no passado, não podemos nos esquecer da realidade social da infância na atualidade. A cada dia somos confrontados com o crescimento do número de menores infratores, das crianças utilizadas pelo tráfico de drogas, das vítimas das práticas de pedofilia e exploração sexual infantil, além daquelas que ajudam seus pais na degradante tarefa de catar lixo nos grandes lixões ou são submetidos aos exaustivos trabalhos na zona rural, dentre outros.


 


Os povos indígenas, paradoxalmente denominados selvagens, uma maneira preconceituosa de a eles nos referirmos, nos ensinam que lugar de criança é na aldeia, no seio da família, aonde o menor é bem amparado.  


 


Saulo Ferreira Feitosa


Secretário Adjunto do Cimi


 

Fonte: Cimi
Share this: