Dignidade na Estrada – por Egon Heck
Valdirene pede para todos os marchantes estenderem a mão. “Esse é o nosso gesto de compromisso com esses nossos irmãos indígenas, que há pouco aqui se apresentaram. Eles estão aqui, conosco, talvez um tanto desfigurados, pela história de violência desses quinhentos anos. Eles eram milhões. Foram massacrados. Mas hoje estão aqui, a lutar a exigir seus direitos. E nós que somos lutadores de uma nova sociedade temos um compromisso muito grande com esses nossos irmãos indígenas. Principalmente porque nossa luta é comum pela terra. Mas eles mais do que ninguém tem direito a terem o quanto antes suas terras reconhecidas. E nisso nós temos que ser solidários com eles. Lutar e dar todo a apoio a eles”. Emocionada ela foi dizendo”somos todos índios, precisamos estar ao lado deles…” Fortes aplausos.Ela ainda lembrou dos muitos companheiros sem terra e lutadores da transformação da sociedade, que tombaram e que certamente estão dando força à marcha. Assim foi encerrada a noite cultural da marcha em Anhanduí.
A apresentação antes da fala de encerramento foi dos Kaiowá Guarani. Apresentaram algumas danças rituais e foram entusiasticamente aplaudidos, tendo sido solicitado mais apresentações. Eles atenderam com mais uma dança. Foi um dos momentos fortes de entrosamento, de conhecimento, de valorização, de solidariedade e compromisso. Já na parte da manhã a questão indígena, e mais especificamente a demarcação de suas terras é um dos doze itens da pauta da Marcha da Terra no Mato Grosso do Sul.
Às quatro da manhã hora de despertar. Uma noite fria tirou o sono de alguns. Porém o calor humano, pois mais de 300 pessoas estavam dormindo num grande barracão da Associação dos Trabalhadores, evitou que o frio fosse mais doído. A lua repartia com as estrelas o espaço celeste. Quanto a marcha partiu parecia uma grande procissão de fumantes. Todos soltavam o ar que tomava forma visível ao contato com o frio. Pontualmente às 5 horas deixamos Anhandui, para logo entrar novamente na BR 163. Grande agitação de caminhões e carros. Muitos camioneiros expressavam seu gesto de solidariedade à marcha através de longas buzinadas. São bom número de camioneiros que também se sentem igualmente explorados pelos sistema e seus patrões e que sonham com dias melhores, de justiça e liberdade. Uns, gentilmente reduzem a velocidade para não impactar os caminhantes. Porém tem outros, que com muito desdém, desaprovam a caminhada.
No asfalto a marcha avança com muita dignidade. A grande maioria com chinelos de dedos nos pés, força, consciência e dignidade no coração e na mente. É gente humilde, talvez até muitos sejam privados de grandes conhecimentos escolares. Tem apenas a sabedoria da vida e da luta. Mas estão aí com muita dignidade. “Não somos sem defeitos, e somos humanos e limitados como qualquer outra pessoa, porém o que temos é um grande sonho, uma forte razão para lutar e viver. Isso nos torna dignos, isso nos faz vibrar e lutar,” disse Valdirene na sua fala na noite anterior.
Na mesma apresentação foi também lido um “manifesto Kaiowá Guarani em Marcha”. No documento expressam as razões de estarem marchando com outros companheiros(as) sem terra e quilombolas.
Por que marchamos?
Dia de descanso, pois muitos estavam “esgualepados”, mas principalmente momento de socializar a reflexão sobre a realidade atual e as razões da marcha. Foram debatidos os13 pontos que constam num folheto sobre a V Marcha Estadual – Terra Trabalho e Soberania. Os treze pontos pelos quais estamos marchando, são basicamente a questão da terra para os acampados sem terra, povos indígenas e quilombolas e política agrária que garanta condições dignas de vida ao agricultor familiar. Além disso são elencadas várias reivindicações concretas, que certamente serão razão de negociações com os órgãos públicos quando a marcha chegar
Na reflexão sobre “A reforma agrária como saída para a crise” reforçam o entendimento de que “a reforma agrária é uma forma de combater a concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos. Defendemos a distribuição da terra que é um bem de todos…” No texto é citado um dos grandes desafios e exemplos de enganação como a implantação da usina sucroalcooleira de Rio Brilhante. Foram prometidos centenas de empregos, porém o trabalho é todo mecanizado, aumentando ainda mais o êxodo rural e a miséria nas periferias das cidades
“A terra que é um bem da natureza e está diretamente ligada com a soberania de um país virou mercadoria, diversas empresas estrangeiras, como as usinas, estão se apropriando de imensas quantidades de terra para fazer especulação sem nenhum compromisso com o meio ambiente e o País…”
A marcha, apesar dos pequenos problemas normais, e um certo baque físico pela distância já percorrida, continua, firme, animada e com muita disposição de chegar
Do Km 443 da BR 163 – na marcha pela terra e pela vida