A Caminho – artigo de Egon Heck (Cimi MS)
Enquanto se realizavam os rituais da despedida derradeira de Günter, companheiro missionário, no entardecer frio e chuvoso de mais um dia de inverno, em Lajeado, no Rio Grande do Sul, busquei entrar em sintonia com a partida e chegada, em mais uma caminhada nas dimensões da vida. A melhor maneira de fazê-lo foi percorrer, sofregamente, as pegadas registradas magistralmente, “A caminho das malocas Zuruahá”[1]. Ali, Günter revela sua profunda perspicácia e sabedoria ao retratar a vida da gente e da natureza exuberante do rio Purus,com sensibilidade de artista e alma de poeta. Coincidentemente, o prefácio do livro é de Dom Erwin Krautler, então presidente do Cimi, em 1988, e atualmente exercendo esse mesmo serviço na entidade. Na Apresentação destaca que “Desde sua fundação, as duas entidades (Cimi e Opan) escolheram como objetivo de ação o apoio aos povos indígenas na recuperação, demarcação e garantia de suas terras, na defesa de seu direito de viverem segundo suas culturas e na reconquista do seu direito de serem eles mesmos os sujeitos de sua história, sem tutela ou paternalismo.” A obstinação em conhecer e o compromisso com a vida Günter veio ao Brasil por inspiração do Pe. João Dorstauder, missionário jesuíta, que durante décadas dedicou sua vida aos povos indígenas na diocese de Diamantino, Missão Anchieta, no Mato Grosso. Fez contatos com povos isolados e viveu até sua velhice entre os Kayabi e Apiaká, no rio dos Peixes. Günter aprendeu muito sobre a Amazônia em três décadas de andanças atentas, de olhares curiosos, de mente aberta, de perspicácia, com as ferramentas que a antropologia, a filosofia e a teologia lhe propiciaram. Ao falar dos ribeirinhos da região diz que “mesmo tendo seu curso afogado em uma única massa de violência e exploração, costuma bater o remo como homem livre, independente, sempre em busca de um convívio social alegre e festivo. Domina a dependência econômica que o leva a praticar o extrativismo suicida por mecanismos de controle contraditórios. Resistência e resignação tornam-se sinônimos” (pg.24). Em seguida afirma que “o próprio Deus não escapa incólume desse imenso Oasis alagado. Um Deus entronizado em mil reflexos de raios solares, emergindo em movimentos vacilantes, e tão amigo daquele mundo a flutuar”. Em outra passagem afirma que “o homem interiorano é risonho e alegre, e sabe das coisas. Suas práticas de vida independem de formas socioeconômicas. Produzindo o homem constrói sua própria armadilha e, cativo, libera forças para sua existência estranha”(pg.54) Poderíamos desfilar inúmeras passagens que demonstram o olhar crítico para entender a vida que desliza nos rios e barrancas da Amazônia. Günter foi compreendendo sempre mais essa realidade e se comprometeu com ela até os últimos instantes. E foi esse ímpeto de paixão que o motivou a um permanente andar nas veredas escondidas nas imensidões da floresta e rios. Gunter amou os Suruha talvez como ninguém. Identificou-se com seu modo alegre e livre de ser, procurou entender sua história, cultura e sociedade, cheia de desafios. Lembro que a cada compreensão mais profunda de realidades constitutivas e desafiadoras, como o suicídio, ele se sentia profundamente gratificado e mais disposto a contribuir com o presente e futuro daquele povo. Longe de sentir-se ”dono” procurou também se distanciar do mesmo, dando oportunidade para que outros assumissem o compromisso com a vida e futuro dos Zuruaha. Protetor dos “povos livres” Tua ousadia em conhecer os desconhecidos, transformou tua ação e compromisso com a vida, em conseqüências contraditórias: quiseste contatar os Zuruahá para exigir respeito a seu território e vida livre, conforme os ditames de sua cultura, organização social e decisões. Lá foi a Fundação Nacional do Índio (Funai), com seus “amancios” abrindo caminhos da invasão e integração. Lutaste para que a cultura e religião Zuruaha continuassem sendo os pilares da identidade e base de projetos de vida e futuro do povo. Pelas trilhas da invasão seguiram os missionários proselitistas do Jocum, com o propósito de converter esse povo e extirpar os hábitos que não se enquadram na visão ocidental cristã. Propuseste-te a estabelecer limites à ganância das frentes econômicas do saque dos recursos naturais, especialmente madeira, sorva, animais… Mas a marcha dos projetos de “desenvolvimento” continuam acelerados pelo Programa de Aceleração do Crescimento e seus pacotes capitalistas. Tua última luta contra ações e caminhos predatórios na Amazônia aconteceu dias antes de entrares em estado de sedação. Na Procuradoria Geral da República, em Brasília, foste deixar o grito das graves conseqüências que poderá trazer o asfaltamento da BR 193 para vários povos e comunidades indígenas em situação de isolamento voluntário. Com profundo conhecimento, como talvez nenhum outro neste momento, enumerastes dezenas de povos que sofrerão impactos destrutivos de mais um “caminho de invasão e morte”. Partiste em meio a uma enorme controvérsia carregada de preconceitos, que, generalizando a questão do infanticídio, acaba reforçando a discriminação e etnocídio contra os povos indígenas. A luta continua. Mais do que nunca, será importante o testemunho e conhecimento que deixaste e agora como intercessor e protetor da vida dos povos ameaçados. Teologia do carinho, o jeito carinhoso de ser Não era afeito a grandes debates teológicos. Tinha muito bem fundamentada teologicamente sua atitude missionária de respeito e diálogo com as religiões dos povos indígenas. Procurou entender a religião Zuruahá e outros povos do Purus, como os Apurinã, Deni, Paumari, Jarawara, Jamamadi, Juma, dentre outros. Seu primeiro trabalho foi com os Pakaa Nova, transferidos para o Xingu. A atitude de inculturação o levava a partilhar ao máximo possível a vida em diálogo respeitoso com a alteridade e valorização da cultura dos diversos povos. Fazia-o com total dedicação, com disposição impressionante. Essa atitude de respeito e diálogo também era o princípio que norteava sua convivência com os companheiros(as) de trabalho. Não era de seu feitio falar mal de ninguém. Seu jeito alegre de conviver prevalecia aos raros momentos de teimosia e mau humor. Desenvolveu e cultivou a “teologia do carinho”. Quem conviveu e partilhou mais intensamente todos esses anos de caminhada com ele pode testemunhar Mas isso o instigava e motivava na defesa de suas convicções e princípios de vida. Tinha um jeito alegre, livre e carinhoso de ser. Enfrentaste as intempéries tropicais, como as inúmeras malárias, os bandos de pium, carapanã, mutuca, mucuin e outros insetos, por alguns considerados os maiores defensores da Amazônia, pois se eles não existissem talvez ela estivesse mais devastada. Venceste picadas de cobra, arraia, mordida de escorpião e acidente de carro. Venceste a hepatite, o tifo. Porém a morte veio tão inesperada e enigmaticamente a teu encontro. Agora, protege a causa pela qual deste a vida e a nós que estaremos honrando tua memória continuando a causa. Cuxiuara, adeus O barco singra lentamente as centenas de voltas e estirões do Purus, Tapauá, Cuniuá, Pretão e outros tantos rios da bacia do rio Purus. A viagem continua. A bordo, a saudade e a lembrança. Desde a juventude e disposição inquebrantável daquela primeira viagem em 1978, até a derradeira viagem em maio de 2009, transcorreram três décadas de incontáveis viagens de barco – em especial com o Cuxiuara – de canoa, a pé, nos varadouros e picadas, enfrentando banzeiros e calmarias, furos e paranás. Tere, Chico, Astor, Cacilda…a viagem continua…Os Zuruhá precisam continuar recebendo o respeito, carinho e proteção contra as fúrias invasoras. Outros tantos povos e comunidades em situação de isolamento voluntário continuam precisando de políticas que lhes permitam viver e sobreviver em seus territórios respeitados. O melhor jeito de dizer adeus é continuar a missão de lutar pela vida e direitos dos povos indígenas. É o que certamente faremos, enquanto Prelazia de Lábrea, Cimi, Opan e outros tantos que partilhamos com Günter esse seu caminhar pela vida dos povos indígenas, em especial da Amazônia, do Purus, dos Suruaha…Contamos agora com a proteção de Günter, com quem continuaremos , com obstinação e teimosia, a exigir respeito e direitos dos povos, não do passado, mas do presente e futuro. Essa pequena homenagem ao companheiro Gunter, quero oferecer com muito carinho àqueles que partilharam mais diretamente muitos momentos da vida com ele, e de maneira muito especial a família querida, com quem dividia as alegrias, esperanças e dores – Tere, Aninha e Mateus. Quando encontrei com ele em fevereiro, em Manaus, ele me disse com muito orgulho e brilho no olhar: “Como é bom, a gente, quanto volta cansado dessas inúmeras viagens nos rios e florestas, ter uma família para ancorar e refazer as energias…” “Novos horizontes”. Com os companheiros e companheiras Doroti, Marlene e outros membros da Opan aprendeste desde cedo as tensões e contradições de uma Amazônia que começava a ser “desbravada” e sua população e natureza profundamente agredidos. Assumiste o lado dos mais fracos, dos invadidos, dos desprezados e discriminados, especialmente os povos indígenas. A “teologia da enxada” fundamentou tuas convicções, quando terminaste a Teologia, na terra e inspiração de D. Helder Câmara. Pelo porto vieram os gaúchos, dando até o nome ao município, porém tu vieste pelo chão, com a clara intenção de colocar-se ao lado da vida e não da destruição. Ao prestar nossa homenagem a Günter, sua vida obstinadamente entregue à causa dos povos indígenas, queremos lembrar também de maneira muito especial e com muito carinho da sua família na Europa, que o acompanhou de longe, e talvez nem sempre conseguindo entender a radicalidade da dedicação de Günter aos povos indígenas e à Amazônia, ao Reino de Deus, à justiça e aos prediletos de Deus: os pobres. Em sua trajetória de solidariedade, profundo diálogo e respeito, como antropólogo e como missionário, fez inúmeros amigos por esse Brasil afora e na Europa. Colocou toda sua sensibilidade, sabedoria e conhecimentos a serviço de um mundo melhor, a partir dos mais ameaçados, os povos em situação de isolamento voluntário e de risco. O único conhecimento que não precisou usar na Amazônia foi se “brevê” de piloto de avião. Passou a maior parte de sua vida nos rios, barcos e canoas, quando não nos varadouros e picadas da floresta amazônica. Günter segue seu caminho, conosco ficará para sempre a bela lembrança de seu testemunho . Egon Heck Cimi MS Brasília, 17 de julho de 2009 Com contribuição de Terezinha Weber.