09/07/2009

Brasil impede livre trânsito dos povos indígenas de fronteira

Em 1980 o IV Tribunal Russell, reunido na cidade de Rotterdam, Holanda, condenava os governos do Iraque, Irã e da Turquia por, dentre outras coisas, impedirem o trânsito dos Kurdos, cujo território tradicional se estende pelas três fronteiras desses países. Hoje os indígenas, cujos territórios tradicionais se estendem pelas fronteiras do Estado brasileiro e países vizinhos, sofrem com o mesmo problema.


Descobri essa realidade, em viagem à Universidad Indígena de Venezuela, onde por 15 dias prestei serviços voluntários (entre maio e junho de 2009). No retorno ao Brasil, dois jovens indígenas do povo Sanema (grupo Yanomami) solicitaram que eu os acompanhasse até o Estado de Roraima, onde se encontrariam com lideranças Yanomami, dentre elas, Davi Kopenawa.


Há séculos, os Sanema ocupam uma área de floresta entre as bacias dos rios Amazonas e Orenoco, território hoje dividido pelos estados do Brasil e da Venezuela. Imagino que nenhum de nós contestaria o direito desse povo em transitar entre as fronteiras desses dois países. Entretanto, em desacordo com a legislação brasileira e com os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a Polícia Federal Brasileira impediu os indígenas nascidos no lado venezuelano de entrar no país, alegando necessidade de passaporte.


O passaporte envolve uma série de questões que inviabilizam seu uso em casos como este. Como se pode cobrar o passaporte estrangeiro de um povo que só quer transitar em seu próprio território? Como emitir passaporte a pessoas que não têm domínio da burocracia, termo que não faz parte de sua cultura? Como carimbar um visto no interior da floresta e como controlar o trânsito ali? Por outro lado, em uma situação em que o Estado tivesse o completo domínio da fronteira, como poderiam lidar com um povo que não é brasileiro nem estrangeiro, um povo que é nada mais e nada menos que Sanema, Guarani, Tiriyó ou Tikuna? De fato, o máximo que se pode conseguir com o modelo atual é o extermino cultural.


No artigo 36 da “Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas”, aprovada na Assembléia Geral da ONU em 2007, se lê: “os povos indígenas, em particular os que estão divididos por fronteiras internacionais, têm o direito de manter e desenvolver contatos, relações e cooperação, incluindo atividades de caráter espiritual, cultural, político, econômico e social, com seus próprios membros, assim como com outros povos através das fronteiras”. Outro documento, ainda mais antigo, é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1991 que trata da questão da mesma forma. Essa última foi aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro e assinada pelo Presidente da República em 2004. Vejam a propósito o Decreto Nº 5.051/04.


Na Polícia Federal nos apresentamos por espontânea vontade. Clandestinamente, poderíamos ter atravessado a fronteira pela mesma rodovia (BR 174), como o fazem garimpeiros e bandidos. Não posso negar a vontade que tive em conduzi-los sem o aval da polícia. Mas receio que por essa via estaríamos contribuindo para a usurpação dos direitos indígenas.


Esperando o cumprimento da lei permanecemos, Ula Apiama, Kokoy Apima e eu, acampados por cinco dias na cidade de Santa Elena de Uairen. Contamos com a solidariedade dos indígenas Pemon e da Pastoral Indigenista da Igreja Católica para sobreviver ao frio e manter contatos com os companheiros brasileiros e venezuelanos, que se esforçaram para ajudar o estado brasileiro a cumprir com suas obrigações e com o bom censo.


Mas a covardia do estado brasileiro fez com que os Sanema voltassem para sua terra sem realizar os sonhos de manter seu povo integrado, com a mesma sede de sobreviver física e culturalmente e com muita fome de justiça (Leiam um pequeno relato escrito por eles e publicado no sitio: http://www.causamerindia.com/index.php?s=5&cat=s).


É uma realidade injusta e, como tal, só pode levar a um futuro desastroso. Fragmentar um povo é reduzir suas possibilidades de sobrevivência cultural. Isso envergonha o povo brasileiro e desmoraliza seu Estado. Não é uma atitude própria de um país que busca maior reconhecimento no cenário internacional.


Queremos o respeito aos povos brasileiros, venezuelanos, bolivianos… que merecem ser reconhecidos por seus avanços nos campos político e social. Queremos que Sanema, Yanomami, Pemon, Tiriyo, Makuxi, Tikuna, Guarani… possam viver suas culturas com autonomia e trânsito livre pelos territórios que lhes pertencem à milênios.


Presidente Figueiredo (Amazonas), 29 de junho de 2009
Maiká Schwade
Casa da Cultura do Urubuí (CACUí)

Fonte: Adital
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