Análise da conjuntura brasileira atual
A crise mundial
A crise que eclodiu publicamente em setembro de 2008 é, em primeiro lugar, uma crise econômica, resultado da hegemonia do capital financeiro nos últimos trinta anos (neoliberalismo e globalização), que levou à desregulamentação da produção, do comércio, das finanças. Ela tem gerado conseqüências sociais extremamente graves, porque atingem prioritariamente os que não são responsáveis por ela – os trabalhadores e os mais pobres – através de um desemprego massivo e uma enorme precarização do emprego.
Mas não se trata de uma crise meramente econômica, é também uma crise ecológica. O capitalismo desenfreado dos últimos anos acelerou fortemente as mudanças climáticas, aumentando o aquecimento global e acelerando a destruição dos elementos mais essenciais: a água (poluição e desperdício), a terra (erosão, envenenamento), as florestas (desmatamento). A campanha – bem sucedida – a favor do consumismo está promovendo a depredação dos recursos naturais.
É também uma crise energética, porque este desenvolvimento se apoiou na exploração da energia de origem fóssil (petróleo), altamente prejudicial ao meio-ambiente. E não investiu no aproveitamento das energias renováveis (solar, eólica, sobretudo).
É, finalmente, uma crise alimentar, porque investiu na produção de alimentos carregados de agrotóxicos ou potencialmente prejudiciais à saúde humana, ao meio-ambiente e à agricultura orgânica (como os transgênicos). O fato de que parte da humanidade, em pleno século XXI, não tem acesso aos alimentos necessários é uma denúncia do sistema capitalista: há meios suficientes para produzir e distribuir alimentos para todos, mas eles estão submetidos à lógica do lucro. O controle da produção é feito por um pequeno número de grandes multinacionais; e o preço dos alimentos é objeto de jogo na bolsa[1].
Trata-se, portanto, de uma crise de civilização, que coloca em risco a humanidade, por motivos ligados unicamente à lógica do lucro exorbitante para poucos e o rebaixamento da grande maioria à pobreza, à miséria e à fome – sobretudo através do desemprego massivo e estrutural.
A saída não é a retomada do crescimento econômico anterior, é a ruptura com o modelo econômico baseado na exploração e no lucro e o estabelecimento de um modelo de sociedade baseado em uma economia solidária e uma economia ecológica, na relação respeitosa com a natureza, na busca do bem-viver, produzindo aquilo que é necessário, evitando o esgotamento dos recursos naturais. Temos de desmontar a lógica produtivista-consumista.
O Brasil
Desde Collor, os governos brasileiros se submeteram à hegemonia neoliberal; Fernando Henrique foi o grande estruturador do neoliberalismo no Brasil, privatizando 76% do patrimônio público; e o governo Lula deu continuidade não apenas à política econômica neoliberal como à agenda neoliberal, realizando reformas e implementando medidas para completar a submissão do país aos interesses do capital financeiro.
No que diz respeito ao governo Lula, gostaria de chamar a atenção para dois elementos, que me parecem fundamentais.
1. Hoje, o governo brasileiro é o organizador da transferência da maior parte da renda e da riqueza produzida pelo país para a elite mais rica (através do superávit primário, da política de juros altos e do sistema tributário altamente regressivo que temos).
Cerca de 50% do orçamento se destina a pagar os juros e a amortização da dívida (externa e interna), para satisfação dos banqueiros internacionais e nacionais, assim como dos nossos rentistas (que não chegam a 1% da população).
Enquanto isso, a saúde recebe menos de 5%, a educação, menos de 3%, habitação e saneamento, menos de 1%, ciência e tecnologia, menos de 0,5% [2].
2. Nos últimos vinte anos, o país não tem um projeto de desenvolvimento. Além de pagar a dívida, a preocupação do governo é exportar produtos primários (minério de ferro, soja transgênica, etanol, petróleo, principalmente), de baixo valor agregado. O Brasil voltou a ser o que era na República Velha: um país agro-exportador.
E todo o discurso de nossas autoridades enaltecendo Vargas e Juscelino é só para inglês ver, pois ambos foram governos que investiram na industrialização do país, o que o atual governo simplesmente desconhece: o governo não investe um centavo em pesquisa e tecnologia de energia solar, para citar um pequeno exemplo (não só o governo, toda a mídia oficial – comprometida com o ideário neoliberal – desconhece o que seja projeto de desenvolvimento, investimento em indústria, ciência e tecnologia).
Embora não tenha qualquer compromisso com o desenvolvimento do país, o governo quer crescimento econômico (mesmo mantendo as políticas neoliberais – que, por sua própria natureza, reduzem o crescimento). Para atender aos interesses dos grandes empresários, das empreiteiras e do agronegócio, o governo promove a destruição do meio ambiente, desde o desmatamento da floresta amazônica à demolição da legislação ambiental. (Neste ponto, ele se assemelha ao regime militar, para o qual desenvolvimento e defesa do meio-ambiente são excludentes).
O enfrentamento da crise
O governo tem procurado minimizar a crise ou seus efeitos sobre o país ou insiste que o Brasil estava melhor preparado para enfrentá-la ou que vai sair mais rápido que os outros etc.
Há certas medidas fundamentais que poderiam reduzir o impacto da crise sobre o Brasil e que o governo não tomou antes nem depois: a principal é o estabelecimento do controle dos fluxos de capital. Esta medida daria autonomia à política econômica e evitaria que o governo se torne refém dos mercados, além de proteger o país contra os ataques externos (como fez a Malásia há dez anos atrás).
A outra medida que teria um enorme impacto positivo seria a auditoria da dívida externa. O Equador acaba de fazer isso e teve 65% do pagamento da dívida suspenso. Com isso, poderíamos, enquanto se realiza a auditoria – entre um e dois anos, por exemplo -, contar com imensos recursos para aplicar na saúde, na educação, no transporte, na habitação, na infra-estrutura e na energia, investimentos que permitiriam um forte processo de geração de empregos. E deixaríamos de pagar uma fortuna que não devemos: a única auditoria que o Brasil fez, em 1931, revelou que 60% da dívida era falsa (não tinha documentos que a comprovassem).
A redução drástica dos juros seria uma outra medida fundamental – adotada imediatamente pelos países desenvolvidos -, que o governo levou vários meses para adotar e, ainda assim, de forma tímida. Por uma simples razão: o objetivo principal do governo não é o emprego, é a inflação – para atender aos interesses do capital financeiro.
A análise da crise internacional revelou que uma das principais causas foi a desregulamentação promovida nos últimos trinta anos: o mercado, desregulado, é fonte de graves problemas e distorções. Muitos analistas apontaram a vinculação entre a crise econômica e a crise ecológica, em razão da desregulamentação, da busca desenfreada de lucro, da exacerbação do consumismo. Vários governos tomaram a dimensão da gravidade desta crise e deram início à busca de uma maior sustentabilidade.
O governo Lula se destaca por sua absoluta insensibilidade para esta questão. Além de ter criado as condições para o afastamento de Marina Silva – o governo aprovou o plantio de soja e de milho transgênicos, entre tantas outras medidas -, os projetos de lei que tem proposto vão na direção oposta à defesa do meio-ambiente, em favor dos interesses do agronegócio e das empreiteiras: haja vista a implementação da construção de grandes hidrelétricas, a retomada de projetos abandonados (Belo Monte; usinas nucleares), a manutenção do projeto de transposição do Rio São Francisco. A cada dia, o presidente discursa para defender os desmatadores, os usineiros (“nossos heróis”), os promotores do agronegócio que estão destruindo a Amazônia e as terras agricultáveis. O BNDES empresta recursos, a juros baixos, para novas usinas de etanol.
A crise revelou, graças à pressa dos governos em enfrentar os aspectos mais danosos da crise, que o discurso sobre a falta de recursos do Estado era totalmente falso. De repente, somas fabulosas e inimagináveis foram colocadas à disposição. No entanto, o governo Lula logo se apressou a dizer que não haveria recursos para cumprir o acordo salarial feito com os funcionários públicos (cerca de R$ 20 bilhões). No entanto, tinha, sim, meios para ajudar os pequenos bancos privados que estivessem em dificuldades (R$ 40 bilhões).
A crise demoliu o discurso neoliberal – “Estado mínimo”, “Estado sem recursos”, “o Estado não pode intervir na economia”, “o Estado é o problema, o mercado é a solução”, “privado é bom, público é ruim”. Não sobrou pedra sobre pedra.
Mas permitiu que os governos aprofundassem a prática neoliberal, transferindo para o setor privado (bancos e corporações) mais recursos públicos do que já se apropriavam antes. As fabulosas somas que foram levantadas a partir de outubro de 2008 e injetadas em bancos e empresas falidos – todos eles diretamente envolvidos na produção desta mesma crise – é impressionante. E todo este dinheiro é público, vem dos cidadãos, daqueles mesmos cidadãos que foram empobrecidos nos últimos 30 anos e que não foram ajudados pelo Estado (seria “paternalismo”) e que continuam a não ser ajudados pelo Estado – antes dos trabalhadores, dos desempregados, dos pobres, é preciso atender a necessidades mais prementes: bancos em dificuldades, corporações em vias de falência.
Estudo recentemente publicado pela ONU revela que os países desenvolvidos injetaram no sistema financeiro, no último ano, 18 trilhões de dólares; em ajuda aos países pobres, nos últimos 49 anos (praticamente meio século), investiram 2 trilhões – ou, por ano, 41 bilhões de dólares. Em 2009, há 1 bilhão de pessoas passando fome (1/6 da humanidade)[3]. A FAO afirma que seriam necessários 60 bilhões por ano para acabar completamente com a fome no mundo: bastariam 6% de 1 trilhão de dólares por ano para resolver o problema dos famintos (ou 0,33% da ajuda recebida por bancos e empresas multinacionais). Falando claramente: do ponto de vista dos custos, a fome só não é superada porque os países ricos não têm interesse.
3. Embora tenha políticas assistenciais melhores que os governos anteriores, o governo Lula nada está fazendo para mudar as estruturas geradoras da enorme desigualdade social do Brasil. Nós disputamos o primeiro lugar em desigualdade com o Burundi e Serra Leoa, dois pequenos países africanos. Nosso sistema tributário é altamente regressivo, de modo que, proporcionalmente, os mais pobres pagam muito mais que os ricos: ao invés de ser um sistema de distribuição de renda, ele transfere renda dos mais pobres para os mais ricos[4]. E, no alto da pirâmide social, os mais ricos nada pagam.
A Reforma Tributária preparada pelo governo, atualmente em discussão no Congresso, não mexe na regressividade do nosso sistema. Ao contrário, retira recursos da Seguridade Social: os movimentos sociais, entidades da sociedade civil, e os partidos de esquerda (minoritários), promovem uma ampla campanha para impedir que este item seja aprovado.
Completam o quadro a política de juros altos e o superávit primário: assim, a cada ano, entre 150 e 200 bilhões de reais, expropriados dos trabalhadores, são pagos aos credores internacionais e à nossa elite. Para ter uma idéia do que significa este valor, basta saber que todos os gastos do Bolsa-Família – que atendem a 11 milhões de famílias (ou 44 milhões de pessoas) – não chegam a 10 bilhões de reais.
Uma das promessas mais importantes do candidato Lula em 2002, a Reforma Agrária, foi abandonada. Ela poderia resolver a situação de 4 milhões de famílias, investindo na agricultura familiar – produtora de alimentos orgânicos -, gerando emprego e melhorando a gestão das cidades. Nós temos um país com recursos naturais extraordinários, com 13,7% da água doce do planeta, com o semi-árido mais pluvioso do mundo, com sol o ano inteiro e nossos trabalhadores do Nordeste são obrigados a deixar suas terras – onde não conseguem emprego – para ser explorados nos canaviais de São Paulo, ou para se tornarem escravos nas fazendas seja do Norte, seja do Sul. Se quisesse realmente acabar com o trabalho escravo no país, o governo faria a Reforma Agrária, de modo a que nenhum trabalhador fosse obrigado a se escravizar para sobreviver.
4. O que é mais grave: o processo de despolitização da sociedade, de desmobilização dos movimentos sociais. Animada pelo auxílio assistencial que está recebendo, a população empobrecida vê no governo seu salvador; algumas centrais sindicais, outrora combativas, foram cooptadas pelo governo (cargos, recursos); alguns setores de movimentos sociais, críticos ao neoliberalismo, receiam criticar o governo para não reforçar a campanha de setores da direita, também interessados em enfraquecer o governo. E o governo desenvolve uma bem sucedida campanha de propaganda para se afirmar como defensor dos pobres, ao mesmo tempo em que defende efetivamente os interesses dos “banqueiros, usineiros e empreiteiros” (conforme a feliz análise de Guilherme Delgado). O resultado é a desarticulação e a divisão em parte dos movimentos.
5. Finalmente, para não evitar o assunto do momento, a corrupção no Senado, é preciso dizer o seguinte: o Senado é o palco de muitos corruptos, e de muitos atos corruptos, mas o corruptor é o Executivo. No ano passado, o escândalo envolvia Renan Calheiros: nada lhe aconteceu, porque o governo impediu. Agora, o escândalo envolve Sarney, e o governo parte imediatamente para a sua defesa. Por que? Para garantir o apoio de que precisa para continuar no poder, para aprovar seus projetos, para apoiar seu sucessor (ou sucessora). Como disse o editorial de um jornal de direita, “Lula não tem princípios, tem fins”.
E onde estão os parlamentares federais do PT, tão destacados e tão combativos contra a corrupção na época da CPI do PC, da CPI do Orçamento (1992-1993)? Em silêncio (com pouquíssimas e honrosas exceções). Foi-se o tempo em que o PT era o partido da ética na política (há políticos do PT que são éticos, mas o partido já abandonou esta bandeira há muito tempo). Hoje, o PT, como afirmou seu líder máximo na época de outro escândalo, o do “mensalão”, é “um partido igual aos outros”, que também usa o caixa 2, que também quer cargos, que também quer ficar no poder (a pergunta que nos fazemos hoje é: para que ficar no poder? para fazer o que? onde foi parar o “projeto de sociedade” do PT? qual é o seu “projeto de sociedade”? onde foi parar o “modo petista de governar”?). O projeto do PT hoje é aquele que já foi de Collor, já foi de FHC (e do PSDB): é ficar 20 anos no poder.
6. Felizmente, não há só isso: por todo o país, há movimentos sociais e setores de outros movimentos sociais, há entidades da sociedade civil, há trabalhadores e estudantes que estão se organizando, se mobilizando, tomando posição frente a esta situação, frente a este governo neoliberal. Entre outras, gostaria de chamar a atenção para a articulação de movimentos e entidades chamada Assembleia Popular, que reuniu em 2005 oito mil pessoas de todo o país, em Brasília, e que continua a se articular e a gerar mobilizações. A Assembleia produziu um livreto que se chamou “Mutirão por um novo Brasil: o Brasil que queremos” – um texto que vale a pena ser consultado por quem quer um projeto de sociedade a partir da perspectiva dos movimentos sociais, dos trabalhadores. E há muitas outras iniciativas na nossa sociedade às quais devemos estar atentos, na luta pela transformação social. Na América Latina, há hoje governos populares realizando mudanças fundamentais, a mostrar que é possível construir um outro mundo (Bolívia, Equador, Venezuela e, possivelmente, Paraguai – e já estão surgindo outros países).
O que fazer?
Seguem algumas sugestões, certamente insuficientes.
– Fazer uma intensa campanha pela instalação da CPI da Dívida, para reforçar uma ampla campanha pela instalação da auditoria da dívida externa.
– Denunciar o caráter anti-ecológico da política econômica deste governo: utilizar para isso também as redes internacionais (partidos, ONGs, organizações internacionais, órgãos de comunicação), que têm poder de influência.
– Denunciar o descompromisso do governo com a soberania alimentar e o envenenamento dos nossos alimentos pela atual política a favor dos transgênicos e a desconsideração quanto ao uso dos agrotóxicos.
– Denunciar a regressividade do nosso sistema tributário, que transfere renda dos pobres para os ricos.
– Reforçar os meios de comunicação alternativos de que dispomos – que são poucos, têm poucos recursos e enfrentam enormes dificuldades – porque a batalha da comunicação é fundamental em nossa luta.
– Aproveitar a crise para promover um amplo debate sobre o tipo de economia de que precisamos, não mais produtivista-consumista, mas para atender às necessidades de nossa população – alimentação, habitação, saúde, educação, transporte coletivo (trens, barcas, metrô, ônibus), produção agrícola familiar e orgânica, pesquisa científica e tecnológica etc. Como vamos gerar emprego sem passar pelo incentivo à produção automobilística? (o automóvel é parte intrínseca do modelo atual). Ou nós mudamos a economia agora – em que a crise abriu uma oportunidade de mudança – ou não teremos mais tempo.
– O presidente está cobrando coragem dos governos dos países desenvolvidos para estatizar bancos. Precisamos aproveitar este seu novo ânimo para exigir que ele, Lula, tenha coragem para reestatizar a Vale do Rio Doce, reestatizar a Petrobras, suspender os leilões das áreas de exploração do petróleo, etc. E para que nós, cidadãos, assumamos o controle dos bancos e das empresas em que o Estado está investindo o nosso dinheiro para sua recuperação: se o dinheiro público é quem salva os bancos, eles são nossos (Susan George, apud Caccia-Bava, Le Monde Diplomatique, junho/2009).
– Incentivar, apoiar, ajudar a criar formas de intervenção da sociedade civil de forma a exercer o controle social da esfera pública, tais como: os Grupos de Acompanhamento do Legislativo existentes em vários municípios do país, por iniciativa dos movimentos sociais; os mandatos participativos, em que cidadãos organizados participam do mandato do parlamentar. É preciso criar meios para tornar efetiva a soberania popular: parlamentares e ocupantes de cargos executivos devem estar sob permanente pressão e fiscalização por parte dos cidadãos, para atender a suas reivindicações.
[1] E a desinformação sobre os efeitos negativos dos alimentos transgênicos sobre a saúde humana revela a falta de liberdade de informação que caracteriza o sistema capitalista, supostamente defensor da liberdade: os cidadãos não podem saber que estão sendo envenenados, para não prejudicar os negócios, para não interromper o consumo, para que a produção continue a gerar lucros.
[2] Cf. Auditoria Cidadã da Dívida: www.divida-auditoriacidada.org.br – 2009.
[3] BBC Brasil, publicado em www.uol.com.br – 24/06/2009.
[4] Cf. estudo do IPEA, apud Folha de São Paulo, 01/07/2009.