Separar o Joio do Trigo
A regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, tem pela frente um grande desafio a ser enfrentado: como separar o joio do trigo?
Ricardo Verdum
Antropólogo, assessor do Inesc
A regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, tem pela frente um grande desafio a ser enfrentado: como separar o joio do trigo? Como fazer para que as boas intenções – que move alguns setores de governo – não sejam atropeladas pelo interesse exclusivo no “negócio da terra”?
Como fazer para que a medida chegue a quem na terra trabalha e dela retira o sustento da sua família? Antes dessa pessoa e seus familiares serem enxotados (por jagunços, pistoleiros e grileiros), a mando dos velhos coronéis, ou dos coronéis do asfalto, que mantêm um olho no espelho retrovisor da sua highlux e outro nos mercados de futuro da carne bovina, da soja e da cana-de-açúcar?
E os territórios indígenas ainda não regularizados pelo Estado brasileiro? A Lei 11.952/09, sancionada pelo presidente Lula da Silva no último dia 25 de junho, afirma que não serão passíveis de alienação ou concessão áreas “tradicionalmente ocupadas por populações indígenas”. Mas serão ampliadas as capacidades humanas, financeiras e técnicas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para, preventiva e preliminarmente, identificar eficientemente o território de direito dos povos indígenas na Amazônia Legal?
Como fazer para que as famílias agroextrativistas sejam beneficiadas pela iniciativa? Como fazer para que terras hoje ocupadas por comunidades tradicionais e famílias quilombolas não sejam invadidos por terceiros, diretamente ou por intermédio de “laranjas”, afoitos interessados em beneficiar-se das novas regras de privatização de terras na Amazônia?
A nova Lei anuncia que ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) serão dadas condições para realizar vistorias de fiscalização dos imóveis rurais de até 4 (quatro) módulos fiscais. Esperamos que sim!
Ao MDA também estão sendo transferidas, pelo prazo de 5 (cinco) anos, renovado por mais cinco, as competências do Incra para regularizar as áreas rurais na Amazônia Legal e o poder de expedir títulos e efetivar doações de áreas urbanas.
Também caberá ao MDA, em colaboração com o Ministério do Planejamento (MPOG), a criação de um sistema informatizado, a ser disponibilizado na internet, que segundo é anunciado, visa “assegurar a transparência sobre o processo de regularização fundiária” de que trata a Lei.
E para fiscalizar se houve desmatamento irregular em área de preservação ou de reserva legal das ocupações regularizadas? Quem o fará e com que condições? A Lei é pouco clara sobre isso.
Por outro lado, a lei prevê a instituição de um “comitê” que avaliará, “de forma sistemática”, diz, a implementação das disposições da Lei, contando para isso com a participação de “representante da sociedade civil organizada que atue na região amazônica”. Supondo que esse(s) ou essa(s) representante seja alguém atento aos riscos acima mencionados, que poder terá ele/ela para promover análises independentes e divulgá-las livremente, por exemplo, ao Ministério Público ou às organizações da sociedade civil mais diretamente “representativas” do(s) prejudicado(s)?
Se considerada a crescente permeabilidade do governo federal às pressões dos setores econômicos que historicamente vem se apropriando das terras da União, o que inclui obviamente os territórios tradicionalmente ocupados pelos povos indígenas; o “costume” das elites políticas no país de fazerem uso da máquina administrativa e dos recursos públicos para eleger e reeleger candidatos de interesse; e a relativa passividade de vários movimentos sociais, que com raras exceções, têm tido dificuldades para enfrentar (conceitual, analítica e metodologicamente) as transformações havidas nas técnicas de dominação e domesticação das insatisfações sociais e individuais, tudo parece indicar que muito joio virá junto com o trigo.
A não ser que…