10/06/2009

MEC institui territórios etnoeducacionais e ignora debates indígenas sobre tema

Em seu site oficial, o Ministério da Educação (MEC) anuncia que está em curso a I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena. Segundo o MEC, a conferência foi projetada em três momentos: um primeiro, a ser realizado nas “comunidades educativas”; um segundo, em 17 regiões brasileiras; e, um terceiro momento, a etapa nacional, a ser realizada em setembro de 2009, na capital federal.


 


Então, desde o mês de dezembro de 2008 as comunidades indígenas são “convocadas” a participar de um processo de discussão sobre a oferta de educação escolar indígena, avaliando as bases da atual política, os problemas na gestão das escolas, os desafios em suas regiões e localidades, e propondo formas de superação dos graves problemas enfrentados no cotidiano escolar.


 


O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, definiu este momento como histórico, pois é a primeira vez que o país se organiza para discutir a educação indígena a partir da escola. As animadoras cifras apresentadas no site do MEC projetavam a realização de 2.517 conferências nas “comunidades educativas” mas, na realidade, poucas foram as escolas que tiveram a oportunidade de realizar estes encontros e neles avaliar, segundo a proposta da própria Conferência “Por que queremos escola? O que já conquistamos? O que temos hoje? O que fazer para avançar na educação escolar que queremos?” Houve, porém, aquelas comunidades que conseguiram debater seus problemas e apresentar sugestões concretas de mudança nas formas de oferta de educação escolar, articulada a proposições mais amplas sobre garantia das terras e de outros direitos igualmente desrespeitados, tal como ocorreu entre os Guarani do Sul e Sudeste. 


 


Um documento preparatório anunciava que a I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena seria “um espaço de diálogo e participação”, no qual os representantes indígenas e de outros segmentos da sociedade elaborariam propostas “discutindo as questões principais coletivamente e escolhendo as idéias com que todos concordam” (I CONEEI, documento orientador, 2008).


 


Talvez por considerarmos que as palavras “participação” e “processo” significam muito e não se ajustavam a qualquer contexto, é que as conferências têm deixado um gosto amargo na boca, um descontentamento com a condução de certas pautas e com a tentativa de legitimação de uma proposta previamente delineada. Ao participar de algumas das 17 Conferências Regionais de que houve notícias e informações, foi possível observar que não havia espaço, na programação para que os resultados das conferências nas “comunidades educativas” fossem partilhados, debatidos, servindo assim de “matéria prima” para a formulação de proposta de política e de gestão educacional. Ao contrário, as Conferências Regionais foram projetadas a partir de um outro pano de fundo – o dos territórios etnoeducacionais, proposta que se pretendia aprovar (e o próprio “desenho” das tais Conferências já anunciava certos contornos territoriais previamente definidos). O documento base referendava a proposta de criação destes territórios e, ao final, apresentava-se uma minuta de decreto para a criação deste tipo de estrutura administrativa para a educação escolar indígena.


 


Pois bem, realizadas 10 das 17 Conferências projetadas, e antes, portanto, da realização da etapa nacional, fomos surpreendidos com a edição do Decreto nº. 6861, em 27 de maio de 2009. Esse decreto “dispõe sobre a Educação Escolar Indígena, define sua organização em territórios etnoeducacionais, e dá outras providências”.


 


Sem entrar no mérito do texto legal, ficam as seguintes indagações, acerca da condução do processo: qual a razão para que o Estado brasileiro mobilize esforços e recursos públicos para a realização de um longo e penoso circuito de discussões, envolvendo os povos indígenas se, antes da conclusão dos encontros preparatórios da etapa nacional da Conferência, fica decretado o novo modelo de atenção à educação escolar indígena? Que concepção de participação é esta que propõe o envolvimento direto dos povos indígenas na avaliação do que se tem, em termos de educação escolar, mas não proporciona participação destes na definição do que se terá? E o que fazer com as incontáveis críticas, as propostas de mudanças (parciais ou totais) deste modelo agora definido oficialmente? Como entender o fato de que sete regiões sequer foram ouvidas, já que as conferências ainda não se realizaram nestes locais? Na Conferência Regional do Sul registrou-se a seguinte proposta: “que toda e qualquer deliberação que envolva a questão dos territórios etnoeducacionais respeite e aguarde os resultados das consultas e discussões, que serão levadas a cabo junto aos povos e comunidades indígenas” (Relatório da Conferência Regional do Sul).  Junto a isso, os representantes indígenas ali reunidos registraram a crítica ao fato de que a proposta de territórios etnoeducacionais não tenha sido apresentada ou debatida nas localidades, nas conferências das comunidades educativas. À revelia dessa, e possivelmente de outras reivindicações indígenas, o novo modelo foi decretado.


 


Até mesmo a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), órgão de consulta aos povos indígenas sobre políticas públicas voltadas para suas comunidades, foi pega de surpresa com a publicação do decreto do presidente da República e ministro da Educação. Tal foi o descontentamento com a essa medidada que a própria CNPI aprovou uma moção solicitando ao governo federal a sua imediata revogação.


 


Espantoso observar que, apesar de alguns inegáveis avanços no entendimento de educação escolar indígena, a proposta de territórios etnoeducacionais restringe o direito de participação dos povos indígenas ao âmbito da “consulta” ou, ainda, à noção de controle social, sem possibilidade de participação na definição, na formulação, na deliberação, na gestão, enfim, em esferas que efetivamente podem assegurar que as proposições indígenas sejam efetivamente levadas em conta.


 


 Iara Tatiana Bonin


 Doutora em Educação pela UFRGS


 

Fonte: Cimi
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