São Gabriel da Cachoeira: a parte da Amazônia mais preservada
Era domingo, 24 de maio, quando Edson Damian foi ordenado Bispo da Diocese de São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, tanto com os símbolos romanos tradicionais quanto com os importantes símbolos da cultura indígena. A diocese de São Gabriel da Cachoeira é conhecida como a diocese a mais indígena do Brasil, pois 95% da população que vive na região fazem parte de etnias dos povos originários do Brasil. Nesta entrevista, realizada por telefone, Bispo Edson Damian conversou com a IHU On-Line sobre o desafio de estar à frente da igreja desta região e contou também as peculiaridades de São Gabriel da Cachoeira. “Quem está aqui precisa ter uma saúde de ferro, muita resistência e também muita sensibilidade para traduzir um Evangelho no meio de 22 etnias diferentes”, descreveu ele.
Em 1948, na cidade de Jaguari nascia Edson Damian, o mais velhos dos seis filhos de Jerônimo Damian e Dionilda Taschetto Damian. Concluiu o curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria. Estudou Teologia na PUCRS. Em 1975, foi ordenado diácono por Dom Ivo Lorscheiter. Viveu na Bahia e na Bolívia também. É mestre em Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia Assunção, em São Paulo. De 1999 até a data de sua nomeação, foi missionário em Roraima, onde esteve ao lado dos povos indígenas na luta pela homologação das terras da Raposa Serra do Sol.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Pensando em sua trajetória, como foi ser nomeado Bispo de São Gabriel da Cachoeira?
Edson Damian – Ser nomeado bispo é sempre uma surpresa inesperada. Eu trabalhei dez anos como missionário em Roraima. Fui enviado pela Diocese de Santa Maria, que há 30 anos é a igreja irmã de Roraima. Depois de dez anos aqui, eu já estava de malas prontas para regressar a Santa Maria, para outro padre me substituir e continuar a presença missionária. Eu estava em férias com os meus pais quando, no dia 6 de fevereiro, me chamaram para ir imediatamente a Brasília. No dia 9 de fevereiro, me comunicaram que o Papa Bento XVI havia me escolhido para ser o bispo da Diocese de São Gabriel da Cachoeira. O bispo dessa diocese era o único bispo chinês do Brasil, José Song Sui Wan, e renunciou por motivos de saúde. Então, me disseram que, pelo fato de ter vivido dez anos em Roraima e acompanhado os povos indígenas que lutaram muito para conseguir a homologação da terra da Raposa Serra do Sol, eu tinha o perfil para ser o bispo dessa região, onde há algumas características peculiares.
Uma região indígena
São Gabriel da Cachoeira é a segunda diocese do Brasil em extensão: tem 286.966 quilômetros quadrados. Ela só perde para a prelazia do Xingu. Além disso, é a diocese mais indígena do país. Aproximadamente, 95% da população são constituídas de indígenas, que pertencem a quatro grupos linguísticos divididos em 22 etnias. Além disso, é a diocese mais isolada do Brasil. Faz parte da região conhecida como Cabeça do Cachorro, na divisa com a Venezuela e Colômbia. Ela não tem rodovias; todas as comunidades e aldeia são visitadas através de barcos. Além disso, é missionária, porque aqui existem 15 padres: seis missionários salesianos, quatro missionários do Sagrado Coração de Jesus, dois saverianos e três diocesanos. A presença maior é das irmãs filhas de Maria Auxiliadora, que são 46. Elas estão espalhadas nas principais aldeias indígenas. Então, é uma diocese que apresenta grandes desafios que exigirão o trabalho heroico de quem vem para cá. Conhecendo essa realidade, exitei em aceitar o convite. Tanto é que queriam que eu respondesse imediatamente. No entanto, pedi algum tempo para refletir um pouco mais, para saber se poderia aceitar esse desafio imenso na última etapa da minha vida, porque já estou com 61 anos. Quem está aqui precisa ter uma saúde de ferro, muita resistência e também muita sensibilidade para traduzir um Evangelho no meio de 22 etnias diferentes. Aqui, também existe uma presença grande do exército brasileiro, com aproximadamente 2500 homens, à medida que é uma área de fronteira e há presença do narcotráfico também.
Quem chega aqui em São Gabriel da Cachoeira se dá conta de que é uma das regiões mais bonitas do Brasil. É a parte da Amazônia mais preservada. Os índios são os grandes defensores da mãe-terra e souberam preservar o meio ambiente como ninguém. Aqui, também há muitas corredeiras, cachoeiras e não estradas. Há poucos invasores brancos. Além disso, todas as áreas indígenas foram homologadas, então não existem conflitos em relação ao uso da terra. Os índios usufruem das terras que são da União.
IHU On-Line – Qual a situação do povo que vive na região da diocese de São Gabriel da Cachoeira?
Edson Damian – Os povos indígenas têm seu modo original de viver, com a cultura da subsistência. Logo que cheguei aqui, fui visitado por uma doutora que acompanhou durante anos uma pesquisa minuciosa na região de Santa Isabel sobre o cultivo da mandioca, o alimento principal dos povos indígenas. Ela e uma equipe de pesquisadores se surpreenderam com a variedade de mandiocas que são cultivadas pelos índios, pela capacidade que eles têm de cruzar as espécies e, assim, produzir espécies novas. E uma coisa que nenhum laboratório do país fazia: a utilização da semente da mandioca para cruzar as espécies e, assim, ter espécies novas, mais resistentes a pragas, capazes de melhorar a produção. Eles descobriram também que, quando a indígena casa com um rapaz de uma aldeia distante, a parte mais importante do enxoval é levar essa variedade de espécies de mandioca para a localidade onde ela irá residir. Isso porque a mulher é a principal encarregada pela agricultura e, portanto, sabe usá-la muito bem. Então, estão fazendo um banco de dados para preservar as espécies de mandioca cultivada pelos índios. É tão bonito ver pessoas estudiosas descobrindo a riqueza dos povos indígenas, que vivem milenarmente nessa região tão pouco conhecida e isolada do nosso país.
IHU On-Line – Qual é a principal luta dos povos indígenas dessa região?
Edson Damian – Os povos indígenas daqui são muito bem organizados. Assim como em Roraima, eu tive a oportunidade de acompanhar o CIR – Conselho Indigenista de Roraima, uma das organizações-modelo do Brasil. Aqui, também existe algo do gênero, que é a Federação das Organizações dos Indígenas do Rio Negro, que congrega aproximadamente 75 associações indígenas espelhadas na região. Os povos indígenas estão também organizados internamente por 150 radiofonias, ou seja, eles têm uma comunicação muito grande. E, logo depois da ordenação, minha primeira visita como bispo foi a essa organização. Chegando lá, tive uma agradável surpresa e eles também, porque disseram: “Nós estávamos nos organizando para fazer uma visita ao novo bispo e este, no primeiro dia de trabalho, veio nos visitar”. A FOIR tem uma equipe como coordenação: são grande cinco regiões, e cada um dos coordenadores representa uma região que compõem o colegiado desta organização. Eu já conhecia três deles e me perguntei de onde. Um deles me disse: “Bispo, ontem fui eu quem colocou o cocar na sua cabeça”. Outro disse: “Foi eu quem colocou o colar indígena”. E o terceiro disse: “Foi eu quem lhe dei o bastão indígena”. Minha ordenação foi muito inculturada nessa região. Recebi tanto os símbolos de acordo com o rito romano quanto os símbolos da liderança dos povos indígenas. Fiquei muito emocionado quando recebi os símbolos da cultura e das tradições dos povos indígenas.
IHU On-Line – São 22 etnias, certo? Como está sendo a comunicação com elas?
Edson Damian – Das 22 etnias, 18 falam sua própria língua. Mas aqui também existe uma coisa bonita: os primeiros evangelizadores dessa região, como não podia deixar de ser, foram os nossos heroicos jesuítas. Eles estiveram aqui até a expulsão do Marques do Pombal. Eles implantaram a língua geral, o nheengatu. Muitos dos índios falam sua língua materna e, além disso, falam o nheengatu, que estabelece uma ligação entre eles. Mas a maioria também fala português, porque os missionários salesianos, que estão aqui desde 1914, tiveram a preocupação de alfabetizar os povos indígenas. Primeiro, os índios são alfabetizados na língua materna e depois aprendem também o português. Assim, muitos se expressam muito bem em português.
IHU On-Line – Como o senhor vê a espiritualidade dos povos indígenas e como ela dialoga com a espiritualidade cristã?
Edson Damian – Estou chegando e ainda tenho um grande caminho a percorrer e um vasto mundo a conhecer. Por isso, no dia da ordenação, pedi licença aos povos indígenas para pisar nesse solo sagrado deles e que me acolhessem como um hóspede que pretende ser um irmão e um servidor. Já existe uma caminhada por parte dos missionários, mas é um mundo que ainda preciso conhecer. No entanto, Deus está presente em todas as culturas e precisamos respeitar a cultura dos povos indígenas sem violentá-las, e, assim, transmitir o Evangelho.
IHU On-Line – E como o senhor analisa a sua trajetória até aqui?
Edson Damian – Deus tem seus caminhos misteriosos. Quando me convidaram para ser bispo e pedir para pensar, nessa semana eu percorri meu itinerário. Vi o filme da minha vida e, de certo modo, fui percebendo como Deus foi me preparando para esta missão que será a última da minha vida, além de também a mais difícil e mais exigente. Depois de ordenado padre, durante dois anos pude conviver com os irmãozinhos do Evangelho, de Charles de Foucauld. Morando em Salvador, na Bahia, trabalhando como varredor de rua, eu tive esse contato com a exploração, os preconceitos, o racismo que pesa contra os povos afro-brasileiros. No ano seguinte, fui à Bolívia e vivi um ano lá no meio dos povos indígenas camponeses. Depois, voltei ao Brasil, para Santa Maria, fui para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), também fui assessor da CNBB e pude conhecer o Brasil inteiro. E, então, parti para Roraima. Fiquei dez anos e foram os mais difíceis, mas também os mais felizes da minha vida. Lá, pude trabalhar numa igreja perseguida pela opção que fez pelos povos indígenas. Então, esses dez anos em Roraima foram me preparando para essa missão. Eu tive a tentação de não assumir porque receio o quanto será difícil e exigente. No entanto, quando percebi que Deus me deu muito mais do que mereço, eu aceitei. Além disso, a igreja me proporcionou tantos contatos, conhecimentos e experiências que seria uma ingratidão recusar o convite para essa missão. Por isso, escolhi como lema para o exercício do meu episcopado: “Com Jesus, amar e servir”. Para mim, as duas palavras que resumem a vida prática e o evangelho de Jesus são amar e servir.