Anistia Internacional: Perspectivas Regionais – Américas
As comunidades Yakye Axa e Sawhoyamaxa de Enxet, na região do Bajo Chaco paraguaio, têm vivido à beira da rodovia Pozo Colorado-Concepción há mais de 15 anos. Apesar das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos em seu favor, elas continuam excluídas de suas terras. Privadas de seus modos de vida e de suas fontes de subsistência tradicionais, de assistência médica e de condições sanitárias adequadas, e dependentes do fornecimento inconstante de alimentos do governo, elas enfrentam um presente de insegurança e um futuro de incerteza.
Desde o extremo norte no Ártico até a ponta mais ao sul da Terra do Fogo, os povos indígenas das Américas têm vivido, há muito tempo, uma experiência de marginalização e de discriminação. Sem poder participar das decisões que afetam suas terras, suas vidas e seus meios de subsistência, os povos autóctones são atingidos de modo desproporcional pela pobreza, mesmo quando habitam áreas ricas em minérios ou em outros recursos naturais. Muitos ainda não desfrutam de reconhecimento constitucional, e suas terras ancestrais são ignoradas ou, então, tratadas de maneiras que deixam desprotegidas as tradições econômicas e culturais indígenas. A extração de recursos, a exploração das florestas, a agroindústria e outros empreendimentos econômicos em terras indígenas costumam vir acompanhados de hostilidades e de violência, pois, em busca de lucro, interesses privados e corporações poderosas desprezam ostensivamente a legislação nacional e internacional. Um ciclo persistente e inabalável de privação e de exclusão social submete os povos indígenas, principalmente as mulheres, a riscos crescentes de agressão, e, ao mesmo tempo, protege seus agressores, que raramente têm de prestar contas do que fazem.
Diante de um legado espantoso de violações de direitos humanos, os povos indígenas de todo o continente vêm se mobilizando para que suas vozes sejam ouvidas. A exigência de respeito pelo seu direito à terra e à identidade cultural, pelo seu direito de não sofrer discriminação,e pelo seu direito, de fato, a todos os direitos humanos, tem sido cada vez mais central e revigorante para o discurso de direitos humanos na região das Américas.
As comunidades Yakye Axa e Sawhoyamaxa conseguiram fazer com que seu caso chegasse a um tribunal internacional e, para isso, contaram com a ajuda de diversas organizações não-governamentais. Esse acontecimento é um reflexo da colaboração e da coordenação crescentes entre os movimentos indígenas e os movimentos de direitos humanos. Tal sinergia permite que defensores, ativistas e militantes adquiram forças, apoio e inspiração de suas próprias experiências e sucessos.
Insegurança
Na Colômbia, muitos dos abusos de direitos humanos cometidos em meio ao conflito armado interno – inclusive homicídios e desaparecimentos forçados – têm o objetivo de remover as comunidades civis que habitam áreas de importância econômica ou estratégica. Diversas comunidades indígenas vivem em regiões que são ricas em minérios e em outros recursos; em terras que pertencem, legal e coletivamente, a essas comunidades. Muitas vezes, essa é a razão de serem atacadas: forçá-las a fugir para outro lugar, fazendo com que a área em que viviam fique vaga para a implantação de empreendimentos econômicos de grande porte. As comunidades que se mobilizam contra esses empreendimentos são chamadas de “subversivas” – uma acusação que costuma vir acompanhada de ataques dos paramilitares. Os grupos guerrilheiros também ameaçam e atacam integrantes de comunidades indígenas que eles acusam de estar do lado inimigo. Apesar de tudo, os povos indígenas da Colômbia têm se tornado militantes cada vez mais corajosos na defesa de seus direitos humanos. Nos últimos meses de 2008, milhares de índios participaram de grandes manifestações em diversas regiões do país. Essas manifestações culminaram, em novembro, em uma marcha até a capital, Bogotá, para protestar contra os constantes abusos contra os seus dieritos humanos e em apoio aos seus direitos à terra.
No México, membros da comunidade Huizopa, do estado nortista de Chiapas, que inclui as etnias Pima e Raramuri, exigiram que uma empresa mineradora que operava em suas terras comunais cumprisse os acordos que fez com a comunidade. As pessoas que apoiaram os protestos tiveram de enfrentar ameaças e a ação da polícia para dissolver as manifestações.
No Chile, a expansão contínua das indústrias de extrativismo e de exploração de florestas, combinada com o lento progresso na resolução de disputas por terras, continuou a provocar tensões entre as autoridades e os povos indígenas, principalmente em Mapuche. Um acontecimento preocupante, em 2008, foi o fato de um promotor regional ter tentado utilizar uma lei antiterrorista contra manifestantes que apoiavam a causa Mapuche. O governo assegurou, repetidamente, que a lei, da época do regime militar comandado pelo general Augusto Pinochet, não deveria ser usada contra os povos indígenas que buscam o reconhecimento de seus direitos.
Na Bolívia, persistiram uma discriminação e um racismo arraigados. As iniciativas do governo do presidente Evo Morales para promover os direitos dos povos indígenas da Bolívia e de outros setores marginalizados da sociedade enfrentaram a oposição de poderosas famílias de proprietários de terras e da elite empresarial, temerosos de perder seus antigos privilégios. As tensões explodiram em uma onda de violência que culminou com a morte de 19 camponeses no departamento de Pando em setembro. Investigações da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e da Defensoria constataram que as autoridades locais estavam diretamente envolvidas com os homicídios e que a polícia havia se abstido de proteger os manifestantes indígenas e camponeses.
Entretanto, alguns Estados mostram-se cada vez mais dispostos a reconhecer as demandas legítimas dos povos indígenas e a adotar medidas para realizá-las. A decisão do Supremo Tribunal brasileiro, por exemplo, que reconheceu os direitos constitucionais às terras ancestrais dos povos Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona, marcou uma etapa importante em uma batalha que já dura 30 anos, tendo sido amplamente aclamada como uma vitória histórica na luta pelos direitos indígenas na região de Raposa/Serra do Sol. Resultados positivos como esse, no entanto, continuaram sendo exceção, e muitos outros povos indígenas seguem tendo que lutar por suas terras.
Na Nicarágua, o governo finalmente reconheceu o direito da comunidade indígena Awas Tingni a suas terras, cumprindo, desse modo, uma decisão de 2001 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No Suriname, o povo Saramaka, descendente de escravos africanos fugitivos que estabeleceram assentamentos no interior da floresta tropical nos séculos XVII e XVIII, obteve vitória em um julgamento favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em uma decisão sobre concessões para mineração e exploração madeireira no território dos Saramaka, a Corte concluiu que: “O Estado violou, em detrimento dos integrantes do povo Saramaka, o direito à propriedade”.
Violência contra mulheres e meninas
Os grupos de mulheres seguiram exigindo que se tomem providências quanto ao número crescente de homicídios de mulheres na região. Muitos dos corpos das vítimas apresentavam marcas de tortura e, sobretudo, de violência sexual. Apesar disso, a resposta de muitos governos, principalmente os da América Central, continua sendo lamentavelmente inadequada, sendo poucos os homicídios investigados de maneira razoável.
Na maioria dos países do continente, com as notáveis exceções do Haiti e de algumas nações caribenhas, existem leis voltadas a melhorar o respeito pelos direitos das mulheres, em especial o direito de não sofrer violência dentro de casa, na comunidade e no trabalho. Mesmo assim, os progressos na prevenção da violência contra a mulher e na punição dos responsáveis continuaram limitados. Na Nicarágua, por exemplo, as equipes de investigação especial da polícia para lidar com a violência baseada em gênero, infelizmente, ainda não contam com os recursos necessários. E, na Venezuela, a formação especializada para os agentes policiais que lidam com casos de violência doméstica, até o momento, ainda não se concretizou.
A Nicarágua e o Haiti se destacam na região como os dois países em que mais de 50 por cento das vítimas de todos os abusos sexuais registrados tinham 18 anos ou menos. Na grande maioria dos casos, os perpetradores eram homens adultos, muitos dos quais em posições de poder. O abuso sexual de meninas de até 9 ou 10 anos de idade estava inextricavelmente ligado à pobreza, ao desamparo e à exclusão, fatores que expõem essas meninas ao risco de exploração sexual como único meio de sobrevivência. Apesar da natureza generalizada do problema, o estigma associado à violência sexual condenou ao silêncio muitas das sobreviventes.
Diante de níveis tão elevados de violência sexual, é especialmente preocupante que a Nicarágua, juntamente com o Chile e El Salvador, continuem a proibir o aborto em todas as circunstâncias – mesmo nos casos em que a gravidez é resultado de estupro, ou quando pode pôr em risco a vida da menina. Há informações de que, no Peru e no Equador, grupos religiosos estão fazendo pressão para que proibições semelhantes sejam adotadas. No Uruguai, apesar do amplo apoio popular para que o aborto seja descriminalizado, o presidente Tabaré Vásquez vetou as reformas que foram propostas nesse sentido, com base em suas crenças religiosas pessoais. No México, em contraste, a Suprema Corte votou a favor de que se permita uma legislação para descriminalizar o aborto no distrito da Cidade do México.
Nos cinco países americanos em que a diminuição da mortalidade materna até 2015 é uma prioridade governamental, as taxas relativas a esse tipo de morte (não há dados separados para os diferentes tipos maternais) diminuíram na Bolívia, no Brasil, no México e no Peru, mas não no Haiti, onde, em 2008, apenas 26 por cento dos partos eram assistidos por uma pessoa habilitada.
Privações
Na última década, muitos países latino-americanos e caribenhos empreenderam esforços para reduzir a pobreza. Apesar disso, embora tenha havido alguns avanços, mais de 70 milhões de pessoas viviam com menos de um dólar por dia. Enquanto isso, as desigualdades sociais e as disparidades na distribuição de riquezas permaneceram altas. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a América Latina continuou sendo a região mais desigual do mundo.
Em muitos países, comunidades marginalizadas e despossuídas, em contextos rurais e urbanos, seguiram vendo negados seus direitos a serviços de saúde, à água potável, à educação e à moradia adequadas. Uma situação já crítica pode ser ainda mais exacerbada com a crise econômica global.
Com relação aos indicadores de saúde, as estatísticas publicadas pelo Fundo de População das Nações Unidas mostraram que os governos da República Dominicana e da Guatemala estavam entre os que menos investiam em cuidados com a saúde pública – meros 1,7 e 2 por cento, respectivamente, do PIB. Esses números contrastavam, visivelmente, com os de Cuba, que investia 6,9 por cento do PIB em saúde, e com os dos Estados Unidos, que se mantiveram em 7,2 por cento do PIB. Mesmo assim, milhares de pessoas continuaram sem seguro saúde nos EUA, o que fazia com que muitos entre os mais pobres e marginalizados tivessem dificuldade para obter assistência médica adequada.
Pena de morte
A maior parte dos países do continente aboliu a pena de morte, seja na lei ou na prática. Entretanto, nos Estados Unidos – uma notável exceção na região – , pena de morte e privação econômica permaneceram intimamente relacionados: a grande maioria das mais de três mil pessoas que aguardam execução são muito pobres para poder pagar um advogado de sua escolha.
Em abril, a Suprema Corte dos EUA emitiu uma decisão segundo a qual a execução por injeção letal não violava a Constituição do país. Em maio, após um intervalo de sete meses, as execuções foram retomadas. Até o final do ano, 37 prisioneiros haviam sido mortos, elevando para 1.136 o número de execuções desde que os Estados Unidos reiniciaram os homicídios judiciais em 1977.
A decisão da Suprema Corte chama atenção devido à opinião distinta do juiz John Paul Stevens, que serve nesse órgão desde dezembro de 1975 e que, portanto, testemunhou toda a era ‘moderna’ da pena de morte nos EUA. Ele escreveu que essa experiência o havia levado à conclusão de que “a imposição da pena de morte representa a extinção desnecessária e sem sentido da vida, contribuindo de forma apenas marginal com quaisquer propósitos públicos ou sociais possíveis de serem discernidos. Uma pena que oferece ao Estado resultados tão insignificantes é, evidentemente, uma punição excessiva, cruel e insólita”. Ele acrescentou ainda que a discriminação racial continuava a “ter um papel inaceitável nos casos de pena capital”.
Em dezembro, São Cristóvão e Névis efetuou a primeira execução em um país caribenho de língua inglesa desde 2000. Charles Elroy Laplace foi enforcado, no dia 19 de dezembro, pondo fim a uma moratória que durava 10 anos. Em 2006, ele havia sido condenado por assassinato e, em outubro de 2008, seu recurso foi indeferido por ter sido requerido fora de prazo.
Exclusão
A tendência em direção a uma maior estabilidade política que se verificou nos últimos 10 anos foi obscurecida por um aprofundamento da crise de segurança pública.
A intensidade dos abusos cometidos pela polícia, bem como a violência dos criminosos e das gangues, aumentou nas áreas em que o Estado esteve praticamente ausente, permitindo que os grupos de criminosos dominassem grande parte da vida da comunidade. No Brasil, por exemplo, muitas comunidades urbanas empobrecidas continuaram sem poder ter acesso a serviços básicos. Enquanto isso, o envolvimento do Estado com essas comunidades continuou se limitando primariamente a incursões policiais esporádicas de estilo militar. Essas operações, muitas vezes envolvendo centenas de policiais em veículos blindados e helicópteros, caracterizaram-se pelo uso de força excessiva, por execuções extrajudiciais, por tortura e por comportamento abusivo contra os moradores. Na Jamaica, a maioria dos homicídios policiais, muitos dos quais ilegais, ocorreu nas zonas pobres da periferia das cidades.
No México, onde a violência criminal aumentou vertiginosamente, um grande número de militares foi destacado para atuar junto à polícia no combate ao crime. Poucos governos relacionaram o aumento da criminalidade com os abusos cometidos por agentes do Estado. No entanto, os ministros de alguns países admitiram, publicamente, em 2008, que a qualidade do trabalho policial havia ficado abaixo dos padrões nacionais e internacionais. México, República Dominicana e Trinidad e Tobago reconheceram as falhas importantes de suas forças policiais e, como consequência, sua habilidade limitada para oferecer níveis de proteção razoáveis e uma aplicação efetiva da lei em várias comunidades. Apesar disso, as providências tomadas para remover os agentes responsáveis por abusos de direitos humanos ou por corrupção foram insignificantes diante da magnitude do problema, além de terem sido frustradas por obstáculos administrativos e procedimentais.
Muitos governos contribuíram com a queda nos padrões da atividade policial ao fazer de conta que não ouviam as denúncias de tortura ou de homicídios ilegais. Alguns tentaram até mesmo justificar esses abusos como sendo algo necessário frente à situação atual da segurança pública. As comissões independentes de queixas à polícia ou as ouvidorias da polícia continuaram sendo órgãos que, praticamente, só existem nos Estados Unidos e no Canadá. Nos poucos países em que esses órgãos foram criados, eles ainda são bastante ineficazes.
Em determinados países, como Brasil e Guatemala, emergiram durante o ano novas evidências do envolvimento de policiais e de ex-policiais com a morte de supostos criminosos. No estado de Pernambuco, no Brasil, 70 por cento de todos os homicídios cometidos em 2008 foram atribuídos a grupos de extermínio, conhecidos como ‘esquadrões da morte’, formados, principalmente, por agentes do Estado, sobretudo policiais. Na Guatemala, os homicídios de centenas de jovens fizeram voltar à memória de muitos as campanhas de limpeza social da década de 1990, quando crianças que viviam nas ruas, suspeitas de cometerem pequenos furtos, foram torturadas e mortas. O fato de os policiais e de outros indivíduos visarem grupos de rapazes ou de meninos das comunidades pobres, com base na sua aparência e na sua idade, agravou o sentimento de que são excluídos da sociedade dominante.
Em algumas situações, o desprezo pela vida de quem mora nas comunidades excluídas foi especialmente chocante. Em Soacha, por exemplo, um município próximo a Bogotá, na Colômbia, dezenas de jovens foram mortos pelos militares e utilizados para reivindicar os bônus que o governo oferecia por cada ‘guerrilheiro’ morto.
“Guerra ao terror”
Prosseguiram as preocupações com o tratamento dos cidadãos estrangeiros detidos pelas forças dos Estados Unidos na chamada “guerra ao terror”; mais de 200 homens permaneciam presos na base naval que os EUA mantém na Baía de Gantánamo, em Cuba. No entanto, em 2008, verificou-se algum progresso nas contestações às tentativas do governo de excluir essas pessoas da proteção da lei. Em julho, em um julgamento histórico, a Suprema Corte dos EUA rejeitou os argumentos do governo de que se poderia negar aos detentos de Guantánamo o direito de habeas corpus, com base no fato de eles não serem cidadãos estadunidenses e de terem sido capturados e mantidos fora do território soberano dos EUA. Em novembro, o presidente eleito Barack Obama confirmou seu compromisso de que, assim que tomasse posse, em janeiro de 2009, fecharia a unidade de detenção em Guantánamo e asseguraria que os EUA não recorreriam à tortura.
Silenciados
Os defensores de direitos humanos na América Latina continuaram a liderar iniciativas para fazer com que as vozes de tantas vítimas fossem ouvidas, muitas vezes enfrentando os consistentes esforços que buscam silenciá-las. Nos dias 4 de fevereiro e 20 de julho, milhões de pessoas saíram em passeata, na Colômbia e em todo o mundo, para protestar contra os sequestros praticados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). No dia 6 de março, milhares de pessoas também tomaram as ruas da Colômbia para exigir o fim dos abusos de direitos humanos cometidos pelas forças de segurança e pelos grupos paramilitares. Quatro meses depois desse evento, Jhon Fredy Correa Falla, integrante do Movimento Nacional de Vítimas de Crimes de Estado (MOVICE), que organizou a manifestação de março, foi morto a tiros por pistoleiros que passaram em motocicletas. Na Guatemala e em Honduras, vários defensores dos direitos humanos foram assassinados devido ao seu trabalho em defesa desses direitos.
Em muitos outros países, esses defensores ainda tiveram de enfrentar reações cada vez mais hostis das autoridades. Na Venezuela, por exemplo, a expulsão do diretor para as Américas da Human Rights Watch, em setembro, após a publicação de um relatório com críticas da organização, foi seguida por uma onda de declarações públicas acusando ONGs e ativistas locais de serem “pró-yankees”, “contrários à revolução bolivariana” e “apátridas”.
Alguns governos recorreram ao mau uso do sistema de justiça criminal para obstruir o trabalho dos defensores de direitos humanos. Um exemplo disso está no México, onde cinco lideranças da Organização do Povo Indígena Me’ phaa (OPIM) no estado de Guerrero, foram detidas em abril, acusadas de homicídio. Apesar de uma decisão no âmbito federal, tomada no mês de outubro, de que não havia provas que implicassem quatro deles, e apesar dos depoimentos de testemunhas oculares, afirmando que o quinto homem estava em outro local no momento do homicídio, os cinco permaneciam detidos no final de 2008.
Na Nicarágua, nove defensoras de direitos humanos enfrentavam ações judiciais por seu envolvimento no caso de uma menina nicaraguense de nove anos que obteve permissão para fazer um aborto legal depois de ter sido estuprada em 2003. Embora diversos profissionais e outros funcionários estivessem envolvidos no caso da garota, os alvos da ação foram apenas as mulheres defensoras dos direitos humanos, as quais possuem um histórico ligado à promoção da saúde sexual e dos direitos das mulheres.
Os defensores que promovem os direitos de comunidades há muito consignadas às margens da sociedade – povos indígenas, comunidades de afro-descendentes, pessoas identificadas como gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros – geralmente correm maiores riscos. Em Honduras, por exemplo, lideranças da comunidade afro-descendente de Garifuna, no povoado de San Juan Tela, foram ameaçadas e forçadas, sob a mira de armas de fogo, a assinar um documento que passava as terras da comunidade a uma empresa privada. No Equador, Esther Landetta, uma proeminente ambientalista e ativista pelos direitos das mulheres, foi alvo de repetidas ameaças e intimidações devido ao importante papel que desempenhou em transmitir as preocupações comunitárias sobre os possíveis efeitos negativos das atividades de mineração irregulares na província de Guayas.
A repressão e a intimidação dos defensores de direitos humanos na região das Américas pode ter se manifestado nas mais diversas formas; porém, em todos os casos investigados pela Anistia Internacional, houve um aspecto preocupante que sempre esteve presente: os responsáveis não eram levados à Justiça.
Mesmo nesse cenário, o ano de 2008, em diversos países, viu a justiça dar alguns passos na direção das vítimas, há muito silenciadas, das graves violações de direitos humanos cometidas durante os regimes militares das décadas de 1970 e 1980.
No Paraguai, o presidente Fernando Lugo desculpou-se publicamente às vítimas que tiveram seus direitos humanos violados sob o governo militar do general Alfredo Stroessner. Em dezembro, a Comissão de Verdade e Justiça publicou seu relatório com recomendações relativas às violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar (1954-1989) e a transição para a democracia. A Comissão identificou mais de 20 mil vítimas e recomendou que o Ministério Público investigasse todos os casos.
No Uruguai, dezenas de ex-militares foram chamados a depor contra o general Gregorio Álvarez, chefe do governo militar entre 1981 e 1985, e contra Juan Larcebeau, oficial reformado da Marinha, acusado dos desaparecimentos forçados de mais de 30 pessoas.
Na Argentina, no primeiro julgamento deste tipo, duas pessoas foram condenadas e sentenciadas a penas de prisão por “apropriação” da filha de um casal que fora vítima de desaparecimento forçado em 1977. O ex-capitão do exército que roubou a criança e a entregou ao casal condenado foi sentenciado em abril a 10 anos de prisão.
Em El Salvador, duas organizações de direitos humanos propuseram uma ação em um tribunal espanhol, no mês de novembro, contra o ex-presidente salvadorenho Alfredo Cristiani (1989-1994) e 14 militares, em conexão com o assassinato de seis padres jesuítas, de sua governanta e da filha dela, em 1989.
O Brasil continuou sendo um dos poucos países da região que ainda não fechou as feridas abertas pelos abusos do passado. Ao negligenciar as pessoas que sofreram torturas e outros abusos, o Estado brasileiro não apenas desrespeitou os direitos humanos dessas vítimas, como permitiu que esses abusos fincassem raízes.
No México, houve solenidades para comemorar o 40º aniversário do massacre de estudantes na praça Tlateloco, na Cidade do México; porém, essa lembrança não esteve acompanhada por avanços no sentido de levar os responsáveis à Justiça.
Em outros casos, alcançou-se certo progresso em fazer com que os responsáveis por violações de direitos humanos mais recentes tivessem de prestar contas. Na Colômbia, dezenas de integrantes das forças armadas, muitos dos quais eram oficiais de alta patente, foram destituídos por causa de seu envolvimento na execução extrajudicial de civis. Na Bolívia, a velocidade sem precedentes com que a comunidade internacional agiu para assegurar que se investigassem as mortes de 19 camponeses, em setembro, criou esperanças de que os responsáveis seriam levados à Justiça. Em outubro, o governo boliviano protocolou um pedido de extradição junto ao governo dos EUA, referente ao ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e a dois ex-ministros acusados de envolvimento em genocídio, devido ao papel que desempenharam nos assassinatos de 67 pessoas durante manifestações ocorridas em El Alto em 2003.
Nos Estados Unidos, após uma investigação de 18 meses sobre o tratamento de detentos que se encontravam em custódia estadunidense, uma comissão do Senado concluiu que autoridades do alto escalão do governo dos EUA haviam “solicitado informações sobre como usar técnicas agressivas, redefinindo a lei para criar uma aparência de legalidade e autorizado seu uso contra detentos”. A comissão constatou, entre outras coisas, que a autorização dada pelo ex-secretário da Defesa Donald Rumsfeld para que técnicas agressivas fossem utilizadas em Guantánamo “foi uma causa direta do abuso contra os detentos naquele local”, a qual contribuiu para o abuso de detentos sob a custódia dos EUA no Afeganistão e no Iraque.
Conclusão
Por toda a região das Américas, os defensores de direitos humanos continuaram a trabalhar por um mundo em que todos possam viver com dignidade, e em que os direitos humanos sejam respeitados. Para que isso aconteça, muitas vezes os defensores têm de desafiar as poderosas elites sociais e econômicas, bem como a inércia e a cumplicidade de governos que não estão honrando suas obrigações de promover e de defender os direitos humanos.