15/05/2009

Resistência indígena: o resgate das línguas maternas

Todas as línguas indígenas do Brasil estão ameaçadas de extinção. Isso é o que revela um estudo da União das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura – Unesco publicado em fevereiro passado, com base no Atlas das Línguas em Perigo no Mundo, de 2001, que situa as línguas indígenas entre outras 2.500 em perigo de desaparecer nos próximos anos.  


Na década de 70, quando os indígenas no Brasil somavam pouco mais de 100 mil indivíduos, os ideólogos da política indigenista do então governo militar, adiantavam que no ano 2000 todos teriam desaparecido. Mas a resistência falou mais alto e hoje a população é superior a 700 mil indígenas de 231 povos em todo o país, falantes de 180 línguas, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.


A resistência se deu em muitas frentes. Sobretudo a partir da década de 1980, a luta era ao mesmo tempo pela terra, por educação diferenciada e pela assistência à saúde que reconhecesse também as formas tradicionais de cura dos indígenas, entre outras cosias. Esse conjunto foi reconhecido pelo estado e amparado na Constituição Federal promulgada em 1988, nos artigos 231 e 232.


Na era da globalização, porém, o desaparecimento das línguas pode ocorrer não somente pela vontade dos inimigos dos índios, mas por um movimento que afeta todos os povos e culturas do planeta. A resistência, no entanto, continua. Exemplo disso são as atividades realizadas pelos indígenas de Manaus para preservar as línguas faladas e recuperar aquelas que aos poucos estão se perdendo.


De segunda a sábado, o indígena Apurinã Osmar Alípio Batista, 52 anos, percorre as ruas do bairro Mauazinho, na periferia de Manaus, vendendo “din-din” para garantir o sustento da esposa e quatro filhos. Nas tardes de domingo, sua casa é o ponto de encontro de outros Apurinã vindos de várias partes da cidade. Ali, ele ensina a um grupo de 12 “parentes” o que sabe da sua língua materna.


“Todo o meu povo pede reforço comigo. Eles querem que eu ensine também na língua para eles. Por isso eu estou resgatando na cidade a língua dos Apurinã”, conta o professor Osmar. Na década de 70, ele teve as primeiras aulas no extinto Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral, em Manaus e agora se esforça para passar em concurso público da Secretaria Municipal de Educação – Semed, assim que souber de sua realização.


Tal como a maioria dos indígenas na cidade de Manaus os Apurinã vivem na periferia, em áreas sem infra-estrutura ou de risco. Para sobreviver, trabalham na produção e venda de artesanato. Grande parte das mulheres trabalha como empregada doméstica. Uma pequena parcela consegue se qualificar e obter melhor colocação no mercado de trabalho.


No início da década de 90, a Pastoral Indigenista da Arquidiocese de Manaus – Piama, iniciou levantamento sobre a realidade dos indígenas da cidade. Naquela ocasião, muitas famílias recusavam-se a assumir a identidade indígena. Aos poucos, essa realidade foi se transformando. Hoje, a maioria já se identifica. Eles são Tukano, Tariano, Baré, Baniwa, Arapaso (Rio Negro), Tikuna (Alto Solimões), Kokama, Kambeba (Médio Solimões), Apurinã (Purus), Deni (Juruá), Sateré Mawé (Baixo Amazonas), dentre outros.


Entre os dias 22 de abril e cinco de maio passado, a Piama e as organizações de indígenas residentes em Manaus realizaram a Segunda Oficina de Formação Lingüística para Professores e Lideranças. Em vários pontos da cidade e em comunidades localizadas no rio Negro, cerca de cem participantes, de vários povos, discutiram os problemas por eles enfrentados no que diz respeito às práticas para recuperação e preservação de suas línguas maternas.


Para Clarice Gama da Silva Arbella, do povo Tukano, a oficina terá aplicação prática. “Com os alunos eu quero praticar cantando, dançando… Na prática a gente percebe que os alunos aprendem mais cantando, dançando, manuseando a arte, desenhando”, explica Clarice. “É isso que eu vou praticar com os meus alunos”, diz ela.


“Para mim está trazendo uma boa oportunidade de aprender e, ao mesmo tempo, de fazer cartilha para os alunos também aprenderem a falar a língua Tukano”, destaca Clarice. Ela também divide seu tempo entre trabalho, cuidar da família e ensinar outros indígenas nas folgas, aos domingos. Os alunos dela são todos indígenas e não falam a língua materna. As aulas acontecem na sede da Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro – Amarn, na Zona Leste de Manaus.


“Os alunos que freqüentam são os mais interessados em aprender a língua Tukano. Eles são esforçados. Eu percebo que quando a aula é na língua Tukano eles ficam bem atentos e espertos para querer aprender”, diz Clarice. Para ela e seus alunos, o ato de praticar a língua materna no dia-a-dia, em meio a milhões de falantes do idioma oficial, é uma forma de afirmação da identidade de seu povo. “Temos orgulho de mostrar que dentre as pessoas que falam língua portuguesa há também os que falam língua indígena. Hoje a gente não esconde nossa fala. A gente conversa no meio das outras pessoas”.


 


 


Reaprendendo e ensinando a falar


Desde 1986 o Padre Ronaldo MacDonell, dos Missionários de Scarboro, trabalha na Amazônia. Ele assessorou as oficinas de formação lingüística e conta, a seguir, como tem sido seu trabalho.


 


Como o senhor tem observado a realidade lingüística aqui da Amazônia?


Aqui no Amazonas muitas etnias ainda falam bem a língua. Então, a língua de certas comunidades, de certas famílias, é aquela mesma língua, como o Tukano e o Tikuna também. Na cidade de Manaus, a situação urbana é sempre um pouco diferente. Tem os indígenas falantes, por exemplo, os Tukano, do alto Rio Negro, que por várias motivos, acabam vindo e morando na cidade. Eu percebi que as mulheres Tukano são todas falantes, mas as crianças, não. Quer dizer, sendo criados aqui na cidade as crianças são unilíngües em português e agora há a preocupação das comunidades de tentar ensinar a língua para as crianças. Também das outras comunidades – os Kokama – todos os adultos não são falantes. A gente tem que trazer gravações feitas na língua Kokama lá das comunidades do alto Solimões. E eles ouvem essas gravações além  de ler o material escrito. Então com os Kokama, os Apurinã, os Sateré Mawé , estamos fazendo uma tentativa de resgatar a língua com os poucos falantes que exitem,  tentando repassar para as crianças e jovens aqui na cidade.


 


Em 500 anos, os indígenas resistiram para não desaparecer fisicamente.  Há estudos prevendo que dentro de um século a maioria das línguas deve desaparecer, inclusive a maior parte das línguas indígenas.  É possível evitar que elas desapareçam?


Aqui no Brasil, na época da chegadas dos portugueses, estima-se que eram faladas 350 línguas. Hoje, são 180. Para que sobrevivam, temos que aprender essas línguas. As pessoas têm que aprender, tanto as comunidades indígenas que perderam e querem aprender, quanto as comunidades que falam sua língua. Os adultos têm que repassar o valor de falar a língua indígena na comunidade.


Dos lados das instituições, tanto das igrejas quanto das entidades de educação, tem que dar importância para o ensino da língua e dispor de verbas para a produção de materiais didáticos, cartilhas, Cds com cantos na língua, estórias, vídeos mostrando quem fala a língua. Então, tem que ter uma certa consciência do fato que as línguas são ameaçadas, estão morrendo e uma certa vontade, uma política cultural de tomar os passos necessários para defender as línguas.


 


Nesse trabalho com os indígenas como tem sido a participação deles nesse resgate?


 


Lá em Roraima, onde trabalhamos com os Makuxi e Wapichana. os professores são muito interessados e organizados. Várias vezes durante o ano esses professores de língua fazem encontro e estudos justamente para produzir materiais ou discutir a ortografia da língua.


Em Manaus, desde 2006, iniciamos duas oficinas ao ano, com duração de dois dias cada, com as comunidades Apurinã, Kokama, Sateré Mawé e agora com as mulheres Tukano. A gente tenta trabalhar com a comunidade para verificar quais são os materiais à disposição, se existem cartilhas, dicionários, gramáticas, e traduções do espanhol ou do inglês quando for necessário. E tentamos criar uma metodologia para trabalhar junto com o professor da língua se na comunidade existe um professor da língua indígena, então a gente tenta ver como pode ajudar esse professor.


Com os professores a gente tenta dar algum aspecto de análise lingüística, de fonética, morfologia ou sintaxe, e também da semântica. A idéia é usar um pouco a teoria lingüística para analisar as diferentes línguas e, em cima disso, fazer uma lingüística aplicada. Através das oficinas buscamos criar essas metodologias para ser a base do ensino da língua.

J. Rosha – Cimi Norte I


 

Fonte: Cimi Norte I
Share this: