Governos e universidades são omissos na formação de professores indígenas
Rosani Fernandes, professora Kaingang, pedagoga, trabalha há 15 anos com educação escolar indígena. Cursa o Mestrado em direito no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Pará (UFPA), que desde 2007 reserva vagas para indígenas e é bolsista da Fundação Ford. Desde 2004 presta assessoria pedagógica ao povo Kyikatêjê da Reserva Indígena Mãe Maria, no Município de Bom Jesus do Tocantins, no Pará. Nesta entrevista, faz uma análise da educação escolar indígena e da implementação da Lei 11.645, além de destacar o papel da imprensa no processo de construção de uma sociedade livre de preconceitos.
1 – Gostaríamos, inicialmente, de uma avaliação da situação atual da educação escolar indígena. Quais são os avanços e retrocessos?
Historicamente, a presença da escola nas aldeias foi pautada na promoção da política de integração e assimilação dos indígenas à sociedade brasileira, na tentativa de formação de cidadãos “aptos” à comunhão nacional. A forte pressão do Estado brasileiro ocasionou a negação compulsória das identidades indígenas, suprimidas, sufocadas e intimidadas pela política de integração nacional que, até a Constituição de 1988, não considerou o direito à cultura, às línguas, às crenças, às tradições e às formas de organização social. Tida como instrumento de conquista, a escola passou a ser gradativamente conquistada pelos povos indígenas: a Educação Escolar Indígena cada vez mais vem sendo percebida como aliada e estratégica na qualificação dos quadros de liderança, sendo ressignificada pelas sociedades indígenas como espaço de diálogo com os conhecimentos não-indígenas, configurando-se instrumento fundamental na construção dos projetos futuros e na garantia de direitos a terra, educação, saúde, atividades produtivas, entre outros, por isso o aumento significativo da demanda por educação escolar nas aldeias.
Em termos legais e quantitativos, a educação escolar indígena avançou muito nos últimos 20 anos, mas a qualidade almejada pelos povos indígenas não tem avançado na mesma proporção. Dados do censo INEP/MEC 2006 mostram que a grande maioria das escolas indígenas funciona em locais improvisados: das 2.422 escolas indígenas, apenas 29,9% têm sanitário, 31,9% têm energia elétrica, a grande maioria das escolas não tem água em condições adequadas para o consumo, nem sistema de esgoto. Sem falar na precariedade das estruturas administrativas e pedagógicas que, na sua maioria, não contam com recursos técnicos, pessoais, tecnológicos para o adequado funcionamento. A categoria de escola indígena ainda não é realidade na maioria dos estados e municípios, como conseqüência, os professores indígenas, as escolas e as comunidades são penalizados com a falta de políticas públicas que garantam a realização de cursos de formação e capacitação de professores e de concursos públicos adequados à realidade das escolas e comunidades.
Além disso, a oferta das últimas etapas da Educação Básica tem sido muito tímida nas aldeias, obrigando alunos indígenas a buscarem formação em locais distantes das comunidades, gerando riscos e insucesso escolar pelas dificuldades de transporte, adaptação e afastamento das atividades culturais dos seus povos. A produção de materiais didático-pedagógicos de acordo com as especificidades culturais e lingüísticas ainda não foi concretizada na maioria das escolas, que busca estratégias de enfrentamento para superação das dificuldades e para fazer valer o direito à educação de qualidade.
2 – E a situação da questão indígena nas escolas?
Constantemente os alunos da nossa escola (Tatakti Kyikatêjê) são convidados para fazer apresentações culturais nas escolas dos municípios vizinhos ao nosso; nessas ocasiões temos nos deparado com inúmeras situações de desrespeito à diferença cultural e completo desconhecimento da questão indígena (com zombarias que revelam o total desrespeito com os povos indígenas). Situações como estas revelam que os alunos das escolas não-indígenas no Brasil não aprendem nos bancos escolares a respeitar a diversidade cultural como riqueza e continuam reproduzindo preconceitos e estereótipos que marcaram negativamente a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, onde a escola é em grande parte responsável.
Quando participei do Fórum Mundial de Educação realizado em Belém, no início deste ano (2009) denunciei a forma como as instituições de ensino superior têm negligenciado o tratamento adequado da questão indígena nos cursos de formação de professores. Como conseqüência, formam professores despreparados para tratar o assunto, o que significa a folclorização e reprodução de imagens distorcidas, distantes da realidade vivenciada nas aldeias. Ao invés de trabalhar para construção de relações de respeito, a postura de muitos profissionais de educação tem incentivado o preconceito com relação aos povos indígenas. É comum nas escolas não-indígenas a questão indígena ser referenciada somente no dia do índio, quando somos lembrados de forma genérica e descontextualizada: “os índios, que moram em ocas, adoram Tupã…” negando assim a grande diversidade cultural e lingüística dos mais de 215 povos indígenas no Brasil.
3 – Como a lei 11.645 se insere nesse contexto?
É válida na medida em que obriga o ensino da cultura indígena nas escolas, mas somente significará mudança se os profissionais de educação estiverem preparados para tratar a questão indígena de forma adequada. Nesse sentido, a sensibilidade e o respeito à diversidade cultural dos povos indígenas é fundamental à postura dos professores, que devem desafiar-se a primeiro conhecer e respeitar os povos indígenas para trabalhar a temática no sentido de construir relações de respeito com tais sociedades. O preconceito que corrói as relações e afasta as pessoas é construído e reproduzido em casa, na família, na escola, nos meios de comunicação, nos livros didáticos e se revelam cotidianamente nos comentários de mau gosto, nas piadinhas, no desconhecimento que ignora a diversidade como riqueza cultural, que é confundida com inferioridade.
Os povos indígenas não devem ser tratados como primitivos por primarem pela reprodução da cultura, das línguas e dos costumes milenares. Os chineses, japoneses e outros povos não ocidentais têm conciliado cultura e modernidade, mas quando se trata de povos indígenas os rótulos são logo estampados: quando se apropria dos recursos tecnológicos “deixou de ser índio”, quando preserva a cultura “é atrasado”, quando se trata de garantia de territórios “é muita terra para pouco índio”. A cultura é dinâmica, portanto, se modifica, agrega novos elementos e deixa outros para trás. O que queremos é o respeito às nossas formas de organização social como sistemas complexos e completos, com organização política, econômica, jurídica e religiosa própria. Mas será que os professores estão preparados para trabalhar a partir dessa demanda? Ou vão continuar reproduzindo o preconceito, os estereótipos a incompreensão e a intolerância nas escolas e na sociedade?
4 – O que está sendo feito pelos governos (Federal e estaduais) para a implementação da lei? De quem é a responsabilidade?
Penso que a responsabilidade de construir relações de respeito e tolerância é de todos, cada um pode fazer sua parte, desde que desafie-se a conhecer e respeitar os povos indígenas e a diversidade cultural do Brasil. Não tenho percebido grandes avanços nesse sentido nas esferas públicas ou privadas, o assunto parece ser ainda tratado como algo menor, não desperta interesse por se tratar de povos que foram historicamente marginalizados na historiografia oficial desse país. Acredito que, na medida em que os índios estiverem em maior número nos bancos universitários, nas instituições públicas, nas universidades, marcando posição com relação à questão é que vamos ter uma maior conscientização nesse sentido, o protagonismo dos povos indígenas, a organização e reivindicação do movimento indígena é nossa principal ferramenta para essa tarefa.
5 – E como garantir que ela seja implementada nos estados?
Deve ser fruto de ações conjuntas e qualificadas, acredito que possa ser implementada com a presença e cobrança do movimento indígena, lideranças e comunidades. Se somente garantir a existência de leis fosse suficiente estaríamos bem. A efetividade é que é o “nó” da questão, e isso se faz com consciência política, amor ao próximo, respeito ao “outro” e com o desejo de construir um mundo melhor, com menos preconceito, violência e desigualdade social. Conheço pessoas que são extremamente sensíveis às causas das minorias, em especial à questão indígena, são vozes solitárias que muitas vezes buscam aliados na multidão, mas não desistem de tentar fazer coro em prol da causa na qual acreditam.
Minha orientadora, Dra Jane Beltrão, é um exemplo disso; quantas vezes a vi lutando pela criação de vagas para povos indígenas na universidade, desafiando sua instituição a pensar cursos específicos para povos indígenas, pelo seu compromisso político com a causa, sensibilidade e articulação. Tivemos aprovado recentemente na Universidade Federal do Pará (UFPA) o curso de Etnodesenvolvimento específico para populações tradicionais, adequado às demandas dos povos indígenas. Minha presença no Curso de Mestrado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFPA, que reserva vagas para povos indígenas, é fruto da mobilização de pessoas como a Jane, que acreditam ser possível construir a igualdade respeitando as diferenças culturais, para que universidade e sociedade aprendam que construir relações igualitárias pressupõe conviver com as diferenças e não eliminá-las ou continuar excluindo-as de espaços tidos historicamente como privilégio de poucos.
6 – Como entende a influência das avaliações nacionais (Prova Brasil e Saeb) na educação escolar indígena? Em São Paulo , por exemplo, o Saresp (avaliação local) coloca as escolas indígenas como as piores. É possível esse tipo de comparação? Isso explicita a tentativa de padronização do ensino?
Penso que os parâmetros de avaliação devem levar em conta uma série de fatores, entre eles, a história das escolas e das comunidades e a relação do Estado com as mesmas, ou seja, a forma como a educação escolar é conduzida pelas secretarias estaduais e municipais de educação. Penso que não devemos abrir mão da qualidade de ensino para as comunidades indígenas, mas não acredito em padrões de qualidade que não respeitem a autonomia e especificidades das comunidades. Infelizmente ainda temos técnicos de secretarias, secretários, burocratas, prefeitos, enfim, pessoas que não acreditam que os povos indígenas necessitem ou mereçam educação de qualidade, mesmo com toda legislação acumulada que garante esse direito (Constituição de 1988, artigos 231 e 232, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT), e o resultado é a não aplicação devida dos recursos, o descaso e o fracasso.
Muitas escolas têm funcionado pela coragem e insistência das lideranças e comunidades que têm na instituição uma aliada para os projetos comunitários, na medida em que possibilita a apropriação de conhecimentos necessários para isso. Sempre conto a “historia” da técnica de uma secretaria de educação de um Estado que respondeu a uma demanda por cadeiras de uma escola indígena da seguinte maneira: porque esses índios não sentam no chão ou nos paus, pra que querem cadeiras? Isso não é só revoltante, é desumano.
7 – E o que considera uma educação de qualidade?
Penso que, se os recursos destinados à educação fossem aplicados devidamente e com consciência política, teríamos melhores condições de ensino e aprendizagem em todas as escolas públicas do país. É preciso investir nos profissionais da educação como agentes de mudança que tenham a escola como espaço estratégico para construção de uma sociedade melhor, onde a educação não seja “bancária” como afirma Paulo Freire, mas lugar de reflexão crítica da própria condição de existência. O Estado brasileiro precisa avançar nessa discussão e superar a desigualdade. Constantemente assistimos a cenas que nos revoltam, de desvio de recursos públicos, de baixos salários, de condições desumanas de transporte escolar que colocam em risco a segurança de crianças e jovens que buscam na escola alternativas melhores de vida, penso que a escola deve cumprir seu papel social nesse sentido. Concluo com as palavras do mestre Paulo Freire: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.”
8 – E a educação indígena? Quais são as especificidades?
Primeiro é preciso diferenciar educação indígena e educação escolar indígena: a primeira diz respeito aos próprios processos de ensino e aprendizagem de cada povo e que independem da escola para acontecer; a educação escolar indígena constitui necessidade criada pós-contato. Com relação à educação escolar nas comunidades indígenas, acredito que deve atender às demandas do povo em que está inserida, respeitando as formas de organização social e propiciando o acesso ao que é de direito dos povos indígenas: bibliotecas, laboratórios de informática, infra-estrutura adequada, merenda escolar que respeite as particularidades alimentares das nossas comunidades, construção de escolas que considerem os padrões arquitetônicos das aldeias, entre outros. Deve também possibilitar a apropriação da escola da forma como o povo indígena considerar adequado, com autonomia necessária à condução do processo.
A comunidade indígena deve ter claramente definido para que quer escola, penso que este é o pressuposto básico, cabendo às secretarias cumprir seu papel na efetivação dessa escola. Nesse sentido, a formação de professores indígenas para condução de tais processos é essencial, conciliando valorização cultural e lingüística com os novos conhecimentos demandados pelas comunidades. O plano de carreira para os professores indígenas é a garantia da continuidade dos trabalhos e a superação das dificuldades geradas pelas contratações temporárias que não respeitam os critérios das comunidades nem propiciam o acúmulo de experiências dos profissionais que atuam nas comunidades indígenas (no caso dos não-indígenas que buscam estabilidade e saem das aldeias).
As ações afirmativas são essenciais para que os professores indígenas tenham acesso a cursos de formação superior e, assim, possam reelaborar os processos educacionais escolarizados nas comunidades de acordo com as expectativas dos povos. Já pudemos presenciar alguns avanços nesse sentido, de universidades que têm acúmulos significativos e servem de referência, mas são experiências que precisam ser ampliadas para superação do descaso com que a educação escolar indígena ainda é tratada e para que tais especificidades sejam respeitadas. Não adianta garantir que a educação escolar indígena seja específica, intercultural, bilíngüe e diferenciada se não forem viabilizadas as condições materiais para tal tarefa.
9 – Quais são suas dicas para a cobertura da mídia sobre a questão indígena na educação?
A mídia pode contribuir na medida em que se dispor a ouvir os indígenas, conhecer e mostrar a realidade das comunidades e trabalhar para construção de relações de respeito às diferenças. A maneira exótica como a questão indígena vem sendo tratada na mídia (com raras exceções), esconde nossas lutas, enfrentamentos diários, dificuldades, histórias de perdas, violência física e simbólica que nossos povos foram e são cotidianamente obrigados a enfrentar. A influência nos meios de comunicação daqueles que têm interesse nas nossas terras, nas matas, nas riquezas dos subsolos, na construção de empreendimentos econômicos que impactam negativamente nossas terras, tem propiciado a divulgação de informações que visam à formação de opiniões contrárias à garantia dos nossos direitos, que geram intolerância e incompreensão e que negam o passado e o presente de expropriação, grilagem e diminuição drástica dos nossos territórios. As hidrelétricas, mineradoras, rodovias, linhas de transmissão de energia elétrica têm “invadido” nossas terras que já são diminutas, colocando em risco a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Como formadores de opinião, os meios de comunicação social devem estar atentos para não continuar reproduzindo injustiças e preconceitos.