Mapa Guarani: além das fronteiras dos países
Quando espanhóis, portugueses e demais europeus, junto com a Igreja Católica, um pouco mais de 500 anos atrás, chegaram impondo-se com a espada e a cruz, ninguém perguntou aos povos que eles “descobriram” se queriam demarcar e compartilhar o território, onde por azar e ambição colonialista chegaram. Não passou muito tempo e surgiram as fronteiras dos “karai” (branco-estrangeiro em língua guarani), com seus limites e novos países. A vida harmônica e milhares de anos de história de muitos povos indígenas ficaram interrompidas para dar passo ao genocídio. Na América do Sul, grande região alugada e delimitada pelo capital agroexportador, financeiro e comercial, também por conta colonialista, um desses povos nativos massacrados foi à grande nação guarani.
Aproximadamente 140 anos atrás ocorreu uma nova invasão dentro do território Guarani e novas fronteiras foram demarcadas pelos “karai”. Ali estavam os fazendeiros, latifundiários, grileiros, mercadores da terra, do subsolo, da floresta e dos rios, de nacionalidades diversas. Com o colonialismo de rosto novo, porém de antigos donos, a delimitação e demarcação do território Guarani se aprofundou e avançou sobre os últimos bosques das comunidades invadidas e dizimadas. Novamente ninguém perguntou a seus donos se eles aceitariam abandonar seus últimos redutos para morar amontoados em reservas ou em diminutas ilhas. Desde o entendimento ou a visão dos indígenas e desde o legado que deixou a rapina dos invasores, pode-se afirmar que os brancos fizeram seu mapa a imagem e semelhança de seus interesses a sangue e fogo em solo indígena, quando a cruz ou as missões religiosas, que usavam como pontas de lança não funcionavam.
Mapa dentro do mapa
Quando os invasores europeus antigamente e os fazendeiros e senhores do agronegócio mais recentemente fizeram seu mapa, delimitando arbitrariamente fronteiras, desconheceram o limite e o “mapa” indígena, representados pela presença milenária do povo guarani e por sua organização social, política, cultural e religiosa. Estes elementos sempre estiveram onipresentes e marcaram claramente o espaço físico do território Guarani. Porém o mais marcante é que o mapa Guarani sempre esteve e está delimitado pela presença de seres humanos, que supera todas as longevidades das leis, das bulas e das constituições dos conquistadores de antes e de turno. Se antigamente colocaram o mapa do “novo mundo” dentro do mapa guarani hoje estão colocando o mapa do agronegócio dentro do que resta de território dessa nação primogênita. Essas colocações ou superposição do mapa do invasor acima do mapa milenar acontecem por médio da violência. Refletido isto cabe perguntar: E se acontecesse hoje o contrario? Se fosse desenhado um mapa do povo agredido e oprimido por mais de 500 anos por acima do mapa do agressor?
Guarani Retã: uma ousadia
A ousadia já aconteceu. Uma parte do Mapa Guarani (Guarani Retã) é uma realidade. O mapa foi processado com a utilização de avançada tecnologia existente na área da ciência geográfica. O trabalho multidisciplinar abarcou a região das fronteiras entre Paraguai, Argentina e Brasil. O Mapa “foi possível graças às contribuições intelectuais e organizativas de muitas pessoas e instituições da região trinacional”, e a colaboração de organismos que apóiam a luta indígena como a Embaixada Real da Noruega, Survival Internacional, DKA, Horizonte 3000 e CAFOD.
No Guarani Retã, percebemos inseridos dentro de Argentina, Brasil e Paraguai, competindo com os províncias/estados/departamentos, as “cidades” do povo Guarani. Segundo consta no caderno que acompanha o Mapa Guarani foram identificadas 500 aldeias, aproximadamente, no documento cartográfico. E olhando o Mapa é fácil perceber que “os Guarani constituem uma das populações indígenas de maior presença territorial no continente sul americano”. Os Pai Tavyterã/Kaiowá, Mbyá, Aché, Ava/Ñandeva, que formam os povos guarani, são os que foram identificadas tendo plena presença no Mapa Guarani, na região de fronteira do Paraguai, Argentina e Brasil. O Guarani Retã mostra “onde vivem, quantos são, como se denominam seus lugares e quais são as ameaças de destruição de seu espaço de vida”. Dá uma perfeita leitura da presença das hidrelétricas, das comunidades deslocadas por essas construções, indica a vida que se mexe entre a agricultura mecanizada, cidades e pântanos, pastos e beiras de rodovias, matas e confinamentos.
Os nomes das aldeias, povoados, reservas, comunidades, em língua guarani, são sugestivos e variados e vão se juntando como se fosse uma grande manifestação sem fim de astros e estrelas espelhados e espalhados sobre a terra, sem que os interrompam limites ou fronteiras nenhuma. Embora ilhados, estão unidos, comunicados. Embora submetidos, empurrados, e oprimidos pelo outro mapa que não deixa que os enxerguem, são como exércitos de resistência contra a destruição das ultimas reservas e oxigênios que restam nos seus tekoha tradicionais. O mapa Guarani será uma ferramenta de luta dos povos guarani e será preciso que sua existência cartográfica e humana seja considerada pelos governos nacionais perante o privilégio exclusivo que têm os mapas dos agressores, os de sempre e os de turno, na hora de privilegiar só o mapa do lucro e do agronegócio.