“Nossos índios” e nossa Constituição
Um “julgamento histórico”. Esta foi a máxima afirmada por membros de organizações não governamentais, entidades de apoio aos povos indígenas, por representantes do governo federal, por muitos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), por setores da mídia e por lideranças indígenas, no que se refere ao julgamento sobre a regularidade ou não do procedimento de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
A decisão do STF pela manutenção da demarcação em área contínua da referida terra indígena foi, sem dúvida, uma vitória para os povos que habitam as regiões da Raposa e Serra do Sol, no estado de Roraima e que lutam incansavelmente há várias décadas pela integralidade desta terra, mesmo que sobre ela já se tenham estabelecidas ressalvas e/ou condicionantes por ocasião da publicação da portaria declaratória 534/2005 do Ministério da Justiça. A referida portaria determinou a manutenção de municípios dentro da área e o acesso das pessoas às estradas existentes dentro dela, incluindo-se o livre trânsito de soldados do Exército e da Polícia Federal.
Ao final deste longo processo, duas perguntas inquietaram a quem acompanhou todas as etapas do julgamento: Por que os ilustres ministros e ministras do STF não julgaram apenas o mérito da ação apresentada pela petição 3388 (originada de uma ação popular impetrada por Augusto Botelho, que pedia a revogação do procedimento de demarcação da terra indígena)? Por que assumiram uma tarefa que extrapolou o foco de sua intervenção, neste caso em concreto, fixando condicionantes sobre os direitos indígenas já expressos na Constituição e, com isso, determinar o que é justo ou injusto acerca dos preceitos legais de demarcação das terras indígenas? Tais condicionantes deveriam ser estabelecidas pelo Poder Legislativo, no texto do Estatuto dos Povos Indígenas, cuja tramitação encontra-se paralisada no Congresso Nacional desde o ano de 1994.
Pois bem, o resultado do julgamento e as condições impostas pelo voto do ministro Menezes Direito, seguido pela quase maioria dos ministros e ministras, determinou que a causa em julgamento não era apenas a demarcação da área Raposa Serra do Sol. E assim sendo, o alcance desta decisão deverá afetar todas as terras indígenas do Brasil, tanto aquelas com os procedimentos de demarcação em curso, quanto às demais áreas reivindicadas, ou aquelas que sequer tiveram os seus procedimentos administrativos iniciados pelo órgão indigenista.
Ao final das três etapas de julgamento (27 de agosto e 16 de dezembro de 2008, 18 e 19 de março de 2009), a sentença foi proferida estabelecendo-se 19 condicionantes para a efetivação dos procedimentos de demarcação e que deverão ser seguidos pelo Poder Público. Algumas destas condicionantes já estão expressas no texto constitucional, mas há aquelas que inauguram uma nova forma de relação do Estado com as terras e com os direitos indígenas, colocando em risco garantias como: a) o usufruto exclusivo das terras que os povos indígenas ocupam (e sobre as quais a Constituição já estabelece ressalvas, quando se comprova o relevante interesse da União ou em situações de risco à soberania); b) o direito das comunidades indígenas serem consultadas sobre obras planejadas, que causarão impactos em suas vidas, sobre as terras e seus recursos ambientais, tais como estradas, hidrelétricas, parques, pelotões do Exército; c) o direito dos índios de reivindicarem a revisão dos limites de terras demarcadas de maneira insuficiente (poderiam ser mencionados inúmeros exemplos de demarcações que resguardaram apenas parcialmente as terras tradicionais identificadas e comprovadas em estudos antropológicos, arqueológicos, históricos, sociológicos), ou de pleitearem a demarcação de áreas tradicionais que lhes foram usurpadas em processos recentes de colonização. Quanto a esta última questão, não podemos esquecer das inúmeras situações em que as famílias indígenas foram retiradas de suas localidades e exiladas em terras de outros povos, para que os estados assegurassem seus projetos desenvolvimentistas. Um exemplo expressivo foi a colonização das terras no oeste catarinense, processo que se estendeu até meados do século passado, sendo os Guarani e Kaingang privados do usufruto de suas terras até que se estabeleceu um novo marco constitucional que possibilitou a recuperação parcial de seus domínios.
Em resumo, as condicionantes impostas pelo STF são uma clara manifestação dos interesses desenvolvimentistas, hoje ressignificados, por exemplo nos Programas de Aceleração do Crescimento. Eles se sobrepõem às garantias sociais e aos direitos coletivos, resguardados a partir de um longo e expressivo processo de negociação que se instituiu durante a elaboração da atual Carta Magna.
Todavia, a mais grave das imposições (enfatizada no voto do relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto e, posteriormente reafirmada pelos ministros Menezes Direito, Ricardo Lewandovsky, Marco Aurélio, Celso de Mello e pelo presidente do STF Gilmar Mendes em uma de suas intervenções) é a que estabelece um recorte temporal para que uma terra seja demarcada como sendo de ocupação tradicional. Para os ministros da Suprema Corte, as demarcações serão possíveis quando comprovado que os indígenas estavam na posse da terra por ocasião da promulgação da atual Constituição Federal, no ano de 1988. Este marco temporal estabelecido tem como objetivo impedir que novas demarcações ocorram. Desse modo, a Funai terá mais dificuldades em demarcar terras, ainda que existam fartos estudos e comprovações antropológicas de sua tradicionalidade e das condições, a partir das quais, os povos indígenas tenham sido privados do direito de nelas terem permanecido.
Tal condicionante favorece abertamente os setores econômicos ligados ao agronegócio, aos agrocombustíveis, às empresas geradoras de energia elétrica, mineradoras, empreiteiras, empresas de celulose, em síntese, todos os grupos que exploram ou desejam explorar as riquezas das terras indígenas. Além disso, para estes setores da economia, o STF apresenta um conjunto de argumentações interpretativas (jurisprudência) da Constituição que os favorecerá em ações judiciais impetradas e nas ações futuras contra demarcações de terras que lhes interessam explorar. Ou seja, a nossa Suprema Corte passou a ensinar, a partir deste julgamento, como usar o tão mencionado direito ao contraditório, aquilo que o ministro Nelson Jobim tentou realizar (quando foi ministro da Justiça) através do Decreto 1775/96 e não conseguiu.
Com o discurso de que o “STF deve resolver as pendências” no que tange aos “nossos índios”, expressão proferida por diversas vezes no julgamento, os ministros e ministras do STF corroeram ainda mais a Constituição, que por muitos é considerada “a Constituição Cidadã”. Esta nossa “Carta Magna”, ao longo dos anos, vem sofrendo enormes mutilações em função das dezenas de emendas constitucionais impostas pelo Congresso Nacional, bem como por equivocadas interpretações adotadas por alguns dos ministros superiores que, em última instância, deveriam ser os guardiões da nossa lei maior.
E isso tudo faz sentido quando percebemos os olhares que se dirigem para a questão indígena, alguns têm muito de solidariedade, outros, porém são repletos de desconfiança, de preconceito e se orientam unicamente por interesses econômicos. Para alguns, os povos indígenas devem ser respeitados nas suas diferenças e, conforme estabelecido nas normas constitucionais, a eles cabem o direito às terras que tradicionalmente ocupam e a União o dever de assegurá-las. Mas, para muitos outros, a desconfiança e a intolerância predomina, de modo particular entre aqueles que deveriam zelar pelas leis e pela boa execução do serviço público.
Um dos exemplos de má interpretação da Constituição Federal foi oferecido pelo ministro Marco Aurélio quando, ao ler por mais de seis horas seu voto vista, caracterizou os indígenas como pessoas que precisam se integrar à sociedade; que necessitam de educação; que devem se apropriar de nossos conhecimentos; que devem se relacionar e consumir nossos bens e ainda os considerou uma ameaça à soberania nacional. Para justificar tais argumentações, muniu-se de análises de pessoas que não possuem qualificação para discutir o tema, tal como o filósofo da UFRGS professor Rosenfield, o general Augusto Heleno, o deputado federal Aldo Rabelo, entre outros tidos como defensores da Amazônia e da nossa soberania.
Estas posições demonstram falta de compreensão sobre o alcance dos artigos 231 e 232 da nossa Constituição, tanto do referido ministro, como de seus inspiradores. O ministro Marco Aurélio sequer fez menção, em seu voto, de que as terras indígenas são patrimônios da União, portanto, elas estão submetidas aos mesmos preceitos de soberania e de controle que regulam a totalidade do território nacional. Elas merecem a mesma proteção e vigilância.
Por fim, é inacreditável pensar que os defensores da soberania, como os mencionados acima, não se manifestam quanto a forte intervenção das grandes empresas privadas internacionais implantadas no país com isenção de impostos e outras subvenções. Empresas que depredam o meio ambiente, explorando-o, consumindo as energias das águas, das terras e ainda espionam a nação, roubam os conhecimentos tradicionais e levam as riquezas para fora do Brasil. Mais tarde retornam com força agigantada para explorar novas riquezas. E contra estes invasores de nosso solo quais as vozes de soberania que se levantam? Somente a dos pobres, dos ambientalistas, dos quilombolas, dos pequenos agricultores, dos atingidos por barragens, dos ribeirinhos e dos povos indígenas. E os brados dos arautos da política, das leis e da soberania são ouvidos? Não! Geralmente suas palavras são de incentivo a estas invasões territoriais.
Porto Alegre (RS), 26 de março de 2009.
Roberto Antonio Liebgott