24/03/2009

Alegria e apreensão

Data histórica para os povos indígena do país.  Momento memorável coroando quase 35 anos de luta por um sagrado direito. Espaço de futuro, vida e paz para milhares de pessoas subjugadas secularmente. Dia de vitória, de glória, de registro de uma das belas e singelas páginas de conquistas dos povos indígenas do Brasil. Dia da Vitória da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no extremo norte do país, em Roraima. O sangue derramado por mais de 20 lideranças, as inúmeras prisões, torturas e toda sorte de sofrimento, não foram em vão. A terra sagrada tornará a ser mãe honrada, sustento e base para  milhares de seus filhos vilipendiados e escorraçados durante décadas. O sol voltará a brilhar mais forte, a brisa será mais serena, as chuvas estarão regando as sementes da vida, os rios voltarão a respirar sem veneno. A base da paz e da felicidade está novamente estabelecida. Não será nada fácil. Mas as condições de construção coletiva de uma autonomia e solidariedade dos Makuxi, Wapichana, Taurepang e Patamona estão dadas. A terra volta a ser livre, território  indígena, mãe terra,  espaço de bem viver.



Os condições e a apreensão


“No entendimento do Cimi, o STF extrapolou o que foi pedido pelos autores da ação popular julgada, na medida em que estabeleceu uma normatização para todos os procedimentos de demarcação de terras indígenas no país. Tal condição deve ser entendida num contexto de cerceamento de direitos dos povos indígenas, das populações tradicionais, do campesinato e outras, em favor da expansão do interesse do capital privado no campo.”(nota do Cimi, logo após o final do julgamento no STJ)



Enquanto transcorria essa derradeira fase do julgamento da Raposa Serra do Sol, recebi várias ligações de lideranças Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, querendo saber como estava a projeção de resultado dos juizes do Supremo, previsão de tempo para acabar essa agonia, e como esse dia poderia ser por eles festejado. Simplesmente respondia, que a vitória estava certa, o final imprevisível e as conseqüências poderiam ser duras para os demais povos indígenas, em permanecerem as condições impostas à regularização das centenas de terras indígenas e de outras populações tradicionais e sem terra no Brasil.



Mesmo dando o devido desconto às “falácias levianas”, conforme  comentou uma autoridade ao se referir às prolongadas horas de um exercício de leitura de textos muitas vezes desconexos, conectados  nos preconceitos e o que de mais deplorável verberou a direita neste país. Mesmo assim temos motivos para preocupações do conjunto das proposições que acabaram se transformando num conjunto de condições, do tipo dos dez mandamentos que são dezenove que se resumem em: dificultar o reconhecimento das terras indígenas e restringir o seu justo protagonismo e autonomia. Portanto laos aos nobres gestos de defesa dos direitos e da constituições e um pé atrás sobre o uso e interpretações das condições que vão na direção da restrição dos direitos indígenas.





Ódio do Progresso



Poderia soar um tanto fantasioso, essa preocupação com as 19 condições aprovadas pelos Ministros do Supremo. Isso se já não tivéssemos no editorial de um dos grandes jornais do Mato Grosso do Sul, o desfile dos preconceitos e do ódio que é alimentado contra os Kaiowá Guarani, em especial. Começa espalhando inverdades, como o de que o TAC – Termo de Ajustamento de Conduta (para identificação de 36 tekohas – terras tradicionais Guarani Kaiowá) tivesse sido iniciativa da Funai, à revelia, inclusive do Ministério Público Federal. Nada de mais falso, uma vez que o MPF intermediou a vontade indígena, com certa resistência em instâncias da Funai. E arremata o referido editorial “Para agravar ainda mais o problema, a Funai ainda sofre influência de organismos marginais como o Conselho Indigenista Missionário(grifo nosso) ONG que tem se especializado em fomentar a discórdia entre os índios e o setor produtivo rural” (Editorial de O Progresso, Dourados, 20 de março 2009 , pg. 2). Continua sua catilenária contra as Ongs, citando a Anistia Internacional, dizendo que “essas Ongs violam a soberania nacional ao tentar impor projetos que nada tem a ver com a realidade dos índios brasileiros” (idem) Já na semana anterior a presidente da ONG fazendeira Recovê, em Ponta Porã declarou: “Roseli recomendou aos produtores que impeçam a entrada de qualquer pessoa em suas terras, “mesmo que tenham uma autorização do Presidente da República”, disse. Segundo a advogada, a portaria não prevê que os produtores sejam avisados antes da vistoria. “Apenas o governo do Estado será avisado”.



Não seria demais perguntar aos que se arvoram de tal nacionalismo que são incapazes de enxergar que grande parte das terras brasileiras estão sendo passadas para mãos de grandes grupos estrangeiros, assim como a maior parte das usinas e plantação de cana no Mato Grosso do Sul está sob o comando o capital multinacional, com as benções e benesses dos políticos e governantes locais, se isso não os preocupa. Nunca é demais perguntar porque tanto apoiavam a Funai quando essa exercia um poder de repressão contra os índios e seus aliados, enquanto deixava de cumprir os deveres que o Estatuto do Índio e a Constituição do país determinavam, como no caso da demarcação de todas as terras indígenas até 1978 e 1993 respectivamente?



Ainda há poucos dias o governador e parlamentares do Mato Grosso do Sul estiveram na Casa Civil exigindo a revogação das portarias de demarcação das terras Kaiowá Guarani. Até quando estarão gastando dinheiro público para impedir um direito constitucional a quem está sendo secularmente vilipendiado, suas terras e recursos naturais roubados?



Parece que um pouco de bom senso e senso de justiça não faz mal a ninguém. Enquanto continuarem pregando ódio contra os índios e seus aliados, certamente não estarão trilhando o caminho que apregoam com seu progresso. Pelo contrário estarão semeando violência e colhendo tempestades.



Egon Heck


Cimi MS


Campo Grande,

Fonte: Cimi MS
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