Povo Paresi. O passado e o presente de quem vive isolado, em uma terra
Um grupo étnico, com sua cultura e organização social própria. Assim,
a professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT), Maria Fátima Roberto Machado, define o povo
Paresi, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas
Unisinos – IHU. No entanto, ele representa muito mais, não somente
para o estado do Mato Grosso, pela sua origem e história, mas, também,
para toda a sociedade, sinalizando a necessidade de mais respeito
entre os povos indígenas.
De acordo com a professora, foi com a ajuda dos Parecis, que Marechal
Rondon construiu as linhas telegráficas e estratégicas, que seguiam do
Mato Grosso até o Amazonas, há mais de um século. É por isso, que
Maria Fátima afirma que essa experiência dos Paresi com as linhas
telegráficas é uma das páginas mais extraordinárias da história do
Brasil e que permanece mergulhada no esquecimento. “Nossa dívida com
eles é imensa. Eles nos ensinam muito sobre nós mesmos, são a prova
cabal das piores intenções dos imoti, os não-índios, ou seja, nós, da
falta de maturidade intelectual e moral da nossa sociedade, que se
pretende “civilizada”.
Maria de Fátima Roberto Machado possui graduação pela Universidade
Estadual de Campinas, mestrado em Antropologia Social pela
Universidade Estadual de Campinas, doutorado em Antropologia Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorado pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professora
adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – O que caracteriza o povo Paresi? Quais seus principais
valores?
Maria Fátima Machado – Os Paresi constituem o que denominamos em
antropologia de grupo étnico, com sua cultura e organização social
própria. Eles são habitantes imemoriais de uma imensa região no
divisor das águas do Amazonas e do Paraguai, nas cabeceiras dos seus
mais longínquos tributários, na extensa chapada que, desde o início do
século XVIII, os colonos e exploradores identificaram com o seu nome:
a Chapada dos Parecis. Eles se autodenominam Haliti (“nós”, “nosso
povo”), têm uma língua própria (classificada como Aruak) e sua
organização social tradicional baseia-se na constituição de grupos
endogâmicos auto-suficientes em termos políticos e econômicos,
distribuídos pelo território orientados pelo seu mito de origem,
quando o herói ancestral Wazáre liderou o seu povo e lhes destinou a
moradia nas cabeceiras do imenso chapadão. Assim, surgiram os grupos
haliti, dentre eles os Waimare, os Kaxiniti e os Kozarini, com seus
territórios próprios, dentro do território maior, governados por suas
lideranças locais, organizados de acordo com a orientação mitológica,
através de laços de solidariedade entre irmãos.
IHU On-Line – Qual a importância das antigas estações telegráficas em
Mato Grosso para os índios Paresi?
Maria Fátima Machado – Quando o Marechal Rondon deu início à
construção das Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao
Amazonas, em 1907, encontrou os Paresi vivendo de acordo com sua
cultura tradicional e, através de propostas de amizade e proteção,
contou com o apoio desses índios na instalação das estações,
geralmente nos terrenos das suas próprias aldeias. O trajeto das
linhas, de sul a noroeste, em direção à atual Rondônia, cortou o
território tradicional de dois grupos haliti: dos Waimare e Kaxiniti,
que se tornaram a mão-de-obra das estações. Esse era o propósito de
Rondon, que abriu uma escola para eles, primeiramente na antiga
estação de Ponte de Pedra e, depois, em Utiariti. Vários se tornaram
telegrafistas, estudando no Rio de Janeiro e na antiga estação de
Vilhena (quando a Comissão Rondon já havia sido extinta e os
funcionários não-índios já haviam abandonado os trabalhos), além de
serem responsáveis pelos trabalhos de conservação das linhas, como
guarda-fios.
IHU On-Line – Qual a principal herança deixada pelo Marechal Rondon
aos índios Paresi?
Maria Fátima Machado – Essa experiência dos Paresi com as linhas
telegráficas é uma das páginas mais extraordinárias da história do
Brasil e que permanece mergulhada no esquecimento, trazendo muitas
tristezas e desgraças para eles, principalmente no que se refere à sua
relação com a terra, com o seu território mítico, alvo do saque e da
depredação que significaram as políticas de expansão das fronteiras
econômicas do país, principalmente, desde a década de 1950. Nossa
dívida com eles é imensa. Eles nos ensinam muito sobre nós mesmos, são
a prova cabal das piores intenções dos imoti, os não-índios, ou seja,
nós, da falta de maturidade intelectual e moral da nossa sociedade,
que se pretende “civilizada”. Um povo que reagiu de uma maneira tão
pacífica ao contato conosco, que colaborou com os planos mais caros do
Marechal Rondon (inspirando a sua postura humanitária em defesa dos
índios, com a qual ele se tornou conhecido mundialmente), que
possibilitou uma obra grandiosa de proteção das fronteiras externas do
nosso país, merecendo os maiores reconhecimentos, as maiores
homenagens de nossa parte, viu-se na condição de indigência,
humilhado, implorando das “autoridades” uma migalha de terra, como é o
caso do grupo Kaxiniti que sobreviveu na antiga estação Parecis.
IHU On-Line – Como a Estação Parecis tem reagido ao assassinato da
índia Valmireide Zoromará? Qual a sua opinião sobre o ocorrido?
Maria Fátima Machado – É importante esclarecer que o grupo ao qual ela
pertencia é de origem Kaxiniti, havendo hoje poucos sobreviventes. A
maioria da população Paresi existente, cerca de 1.200 índios, é
Kozarini e isso não é por acaso. Quando o Marechal Rondon chegou as
suas terras, os Waimare e Kaxiniti já conheciam a triste realidade das
epidemias (gripe, varíola, febre amarela), que assolaram as aldeias
desde o final do século XIX, levadas pelos seringueiros de origem
nordestina, que fugiam das secas e exploravam a borracha nas matas dos
rios Arinos e do Sangue. Há depoimentos chocantes, de filhos e netos
dos índios que trabalharam nas linhas, lembrando de 30, 40 mortes por
dia, o que significa que eram aldeias inteiras, pois elas nunca foram
muito grandes, tendo no máximo 50, 60 habitantes, devido às condições
de subsistência no Chapadão.
Um recuo às origens
Como são tradicionalmente grupos endogâmicos, os Kaxiniti e Waimare,
que hoje também reivindicam uma terra na antiga Estação de Ponte de
Pedra, ficaram fora dos casamentos preferenciais dos Kozarini. O grupo
do avô de Valmireide, João Zoromará, viu os seus descendentes se
casarem com imoti, principalmente os trabalhadores pobres das fazendas
de soja da região, inclusive peões dos invasores do terreno da própria
estação Parecis, onde eles sempre habitaram e de onde nunca saíram,
pois ali era uma parcela mínima do antigo território mítico dos
Kaxiniti. Quando a FUNAI demarcou a terra atual dos Paresi (Terra
Indígena Paresi e Terra Indígena Utiariti), a terra da Estação Parecis
ficou fora, mas os Kaxiniti lá permaneceram, porque era ali o seu
lugar.
Em 1973, João Zoromará, convidado para ir a Brasília para uma
solenidade de homenagem ao Marechal Rondon, pediu pessoalmente ao
ex-presidente Emílio Garrastazu Médici a legalização dos 3.600
hectares da antiga Estação, que era o terreno demarcado por Rondon,
cujos marcos foram todos arrancados pelos invasores, recebendo dele um
compromisso verbal, que jamais se concretizou. Hoje, embora os grupos
Paresi vivam situações muito diferenciadas, decorrentes das diferenças
históricas de contato, eles ainda preservam um sentimento coletivo de
pertencimento a um mesmo povo, o que se comprova com os atos de
solidariedade dos Kozárini das aldeias mais distantes.
Assassinato
Em 1993, o acirramento dos conflitos na Estação resultou no apoio de
centenas de Haliti, que para lá se deslocaram e fizeram 14 reféns,
mantendo-os reclusos nas ruínas da Estação, inclusive o invasor
Sebastião de Assis, cujo empregado confessou ter assassinado
Valmireide. Não tenho informações sobre a repercussão do assassinato
entre seus parentes, pois já não os vejo há uns dois anos, mas podemos
concluir que o assassinato de Valmireide é mais um desfecho triste de
uma longa história decorrente de equívocos, omissões do poder público
e do desprezo pelos índios e por seus direitos constitucionais.
IHU On-Line – Como podemos entender tamanha violência contra os
índios? Qual a raiz desses atos?
Maria Fátima Machado – Em Mato Grosso, a ignorância alimenta o
preconceito, que alimenta a omissão, que alimenta o saque, que
alimenta o lucro econômico e político, cada vez mais concentrado nas
mãos de poucos. É um inacreditável círculo vicioso, sem fim. Ajudaria
muito se os índios pudessem romper com o bloqueio, se pudessem falar,
se eles tivessem espaços de manifestação, de representação. A
Superintendência de Assuntos Indígenas, criada pelo ex-governador
Dante de Oliveira para ser um ambiente de (difícil) interlocução,
representa, hoje, explicitamente os interesses empresariais,
instalados no governo do Estado, aos quais os índios só podem dizer
“amém”. É um retrocesso, uma usurpação inaceitável.
IHU On-Line – Quais os maiores impasses que envolvem a demarcação de
terras indígenas no Brasil hoje? Em que medida o caso de Raposa Serra
do Sol poder servir de exemplo nesse sentido?
Maria Fátima Machado – Todos nós sabemos o quanto a demarcação
contínua de Raposa Serra do Sol é paradigmática, tanto para os que
torcem contra quanto para os que torcem a favor. Mas nós temos uma
Constituição e o esperável é que ninguém, mas ninguém mesmo, se
esqueça disso.
IHU On-Line – Como a senhora avalia o desempenho da FUNAI e do governo
federal em relação aos povos indígenas?
Maria Fátima Machado – Seria muito fácil jogar pedras na FUNAI, afinal
ela merece todos os hematomas. Um dos esportes preferidos dos inimigos
dos índios em Mato Grosso é bater na FUNAI, embora isso seja, no
mínimo, uma ingratidão, e a história está aí para provar isso. Há
indigenistas e indigenistas, como há políticos e políticos,
missionários e missionários, antropólogos e antropólogos e, por que
não dizer, índios e índios. Hoje, podemos até encontrar um ou outro
índio participando de festas de fazendeiros, fingindo representar o
seu povo, entoando alegre uma cantilena encomendada, criticando a
revisão das terras (dos outros), para a alegria dos convivas. Às
vezes, o preço dessa encenação pode ficar bem caro.
Falta preparo
Ajudaria um pouco se os indigenistas da FUNAI fossem mais bem
preparados em assuntos que são absolutamente básicos na sua profissão.
Por exemplo, é comum ver técnicos com preconceito em relação aos
índios que não se enquadram nos estereótipos de índios, nos clichês
que eles insistem em manter em suas mentes, apesar do confronto
cotidiano com a realidade. Os Paresi da Estação Parecis são vítimas
desse equívoco e acontece a despeito da antropologia já ter discutido,
à exaustão, que “o índio” não é uma unidade cultural, como pensam
ainda hoje os equivocados e apaixonados pelo tema da “aculturação
indígena”, já superados há mais de meio século.
Ruptura cultural
Ser índio é uma identidade legal, acionada para a obtenção do
reconhecimento dos seus direitos específicos, diferenciados, diante do
Estado. Se os Paresi da Estação já não falam mais a língua do seu
povo, é porque sofreram constrangimentos que os levaram a perder esse
traço da sua cultura, o que não significa que deixem de se reconhecer,
e serem reconhecidos, como Haliti, o que ficou demonstrado nos atos de
solidariedade dos Kozarini, em 1993. No lugar de criticar a FUNAI,
prefiro lembrar que tramita no Congresso Nacional, a passos de
tartaruga, o novo Estatuto das Sociedades Indígenas, que deve avançar
no respeito aos índios e seus direitos, em favor do qual nós devemos
lutar.
IHU On-Line – Em suas pesquisas, o que mais lhe marcou como
pesquisadora e como pessoa no contato com os índios? Gostaria de
dividir conosco alguma história?
Maria Fátima Machado – Penso já ter respondido a essa pergunta,
tentando expressar minha posição em relação aos Paresi e todo o seu
sofrimento, do pouco que testemunhei ao longo das minhas pesquisas,
desde 1985, quando eu os conheci. Mas tenho esperança, esperança que
eles encontrem, assim como todos os índios, os melhores caminhos para
se defender e crescer como povos, que é o que eles merecem,
partilhando os benefícios de uma sociedade brasileira cada vez mais
democrática, verdadeiramente democrática, falando por eles mesmos.
Eles me ajudaram a amadurecer como pessoa, mesmo nos momentos em que
brigavam comigo, nos momentos em que divergimos, os quais não foram
poucos. Eles formam uma sociedade rica, complexa, cuja visão de mundo
tem muito a nos ensinar.
IHU On-Line – Como podemos entender os casos de suicídio entre os
índios de Mato Grosso, que têm aumentado, principalmente entre os
jovens? A falta de terra pode ser uma explicação?
Maria Fátima Machado – Talvez você se refira especificamente aos
índios Guarani de Mato Grosso do Sul, embora não sejam os únicos nessa
situação extrema. Eu só posso dizer que ninguém se mata por prazer,
não é mesmo? Isso já deveria ser suficiente para que a população
não-indígena de Mato Grosso do Sul se envergonhasse do mal que causa
aos índios Guarani, encurralados em parcelas ínfimas de seu antigo
território, tão sagrado quanto o território mítico dos Haliti.