08/12/2008

Mozarildo e a Missão Calleri – carta de Egydio Schwade

Em aparte concedido pelo seu colega, senador João Pedro/AM, no dia 11/11/08, você afirmou que o Pe. Calleri foi “a mando da Igreja Católica para contatar, civilizar e catequizar os índios Waimiri-Atroari”.


 


Gostaria de lhe informar que esta não é a verdade dos fatos. E não fica bem a um senador da República, humanista e médico, do alto do Senado da República espalhar “penas” ou mentiras para todos os lados.


 


Como senador o senhor tem fácil acesso aos documentos da FUNAI da época, ou aos Diários Oficiais aí mesmo no Senado. Lá você poderá encontrar abundância de documentos que comprovam que o Padre João Calleri, da Prelazia de Roraima, foi aos Waimiri-Atroari por solicitação do Presidente da FUNAI, Queiroz Campos, para “promover a aproximação, o contato e o aldeamento dos índios Waimiris” com “recursos materiais oferecidos pelo Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas, pelo Departamento de Estradas de Rodagem, pela Força Aérea Brasileira e por unidades do Ministério do Exército”. As orientações para a execução do trabalho da expedição também foram dadas pela FUNAI e constam dos mesmos documentos. Sobre outros dados e detalhes da expedição, bem como, sobre a filosofia de trabalho do Pe. Calleri, consulte as memórias de Queiroz Campos em: “A VERDADE DE CADA UM”. Ali, na pg. 143 poderá ler um texto de Calleri sobre seu trabalho junto aos Yanomami, quando já se preparava para ir aos Waimiri-Atroari: “Não fui ao Catrimani para civilizar… nem tampouco para evangelizar, ensinando aos índios o Sinal da Cruz. Nem serei eu a falar aos índios sobre alfaiates e costureiras. Há coisas mais importantes do que estas agora: ganhar a total confiança de outras malocas para ajudá-los a lutar na velha batalha contra a fome e as doenças da floresta. Lentamente hei de mostrar aos índios que aquela terra é dos brasileiros e que eles são mais brasileiros do que eu e você”.


 


Como pode ver o Pe. Calleri foi muito menos civilizador e catequizador do que o senador de Roraima de hoje que não aceita o índio dono de sua terra, a não ser que se integre no mercado civilizatório imaginado por ele, pelos fazendeiros, pelos mineradores e pelos seus pares no palácio do governo daquele Estado.


 


A propósito, quero lhe lembrar que leio e escuto outros políticos da Amazônia culparem apenas o Pe. Calleri pelo fracasso da expedição da FUNAI aos Waimiri-Atroari em outubro/68. Em verdade, é preciso que se analise a mentalidade de políticos, fazendeiros e mineradores da época. Como pressionavam a construção da BR-174, não para chegar de Manaus a Boa Vista, mas para ter acesso rápido ao minério do Pitinga, à corredeira de Balbina para construir a Hidrelétrica, trazer energia para a Zona Franca de Manaus e dar “comida” às empreiteiras desocupadas. Verifica-se então, que esta pressão chegou ao ponto de obrigar o Pe. Calleri a mudar o roteiro de sua ação, iniciando o trabalho onde o fracasso era previsível. Ou seja, no Abonari onde os índios já estavam sendo agredidos pela rodovia e não no Alalaú. Em poucas tragédias fatais com morte dos participantes civilizados, no seu confronto com os povos indígenas daquela época, ficaram tão evidentes as causas de seu desfecho, como no caso Calleri. O equívoco ou a ilusão do Pe. Calleri foi querer afastar os índios da BR-174 para salvar as suas vidas da ferocidade de outros funcionários do governo que consideravam o índio um empecilho que devia ser removido a qualquer custo, ferocidade, ainda hoje seguida pela maioria dos políticos de Roraima que querem encurralar os índios desse Estado em pequenas “ilhas” para abrir espaço ao agronegócio.


 


Mozarildo, não faça afirmações sem conhecer os fatos e o contexto em que aconteceram. A FUNAI havia sido recém-criada (dez/67) e reinava na sociedade brasileira uma grande esperança de que uma política pró-índio nasceria. Daí a colaboração da Igreja com a almejada mudança. Naquele mesmo ano, como estudante gaúcho da UNISINOS, defrontei-me com uma situação muito semelhante, mas com desfecho inverso, isto é, com a morte de centenas de índios.


 


Em janeiro de 1967 descia o rio Arinos, rumo à cidade de Porto dos Gaúchos/Mato Grosso, para fazer um levantamento demográfico. A certa altura os índios, conhecidos como Beiços de Pau, lançaram flechas contra nossa embarcação. Durante o levantamento, descobri que os índios tinham motivos para essa atitude agressiva. Anos seguidos foram vítimas indefesas da agressividade e do preconceito por parte da população daquele município. Um mês depois, na nossa volta, um grupo de Beiços de Pau, se apresentou pacificamente na margem do rio Arinos fazendo gestos para que o barco encostasse. Alguns tripulantes jogaram roupas, enquanto os índios ofereciam cestas e colares. Receoso, temendo que algum irresponsável se aproveitasse dessa situação e fosse contatá-los levando-lhes doenças e encontrando casualmente o funcionário da FUNAI, João Américo Peret, lhe relatei a minha preocupação pelo futuro dos Beiços de Pau. Dois meses depois, quando já se tornara público a atitude pacífica dos índios, a FUNAI encarregou Peret de “pacificá-los”. Na sua primeira entrada, Peret se fez acompanhar de um grupo de jornalistas de Fatos e Fotos e Cruzeiro e com eles fizeram o que denominaram de “pacificação”. Levaram aos índios a gripe. Um dos jornalistas relatou em sua revista, minuciosamente, como tudo aconteceu. Resultado: em dois meses esse povo de aproximadamente mil pessoas estava reduzido a 43. Não ouvi até hoje nem uma só autocrítica da FUNAI, do Governo e nem a voz de um só senador lamentando esse crime de lesa pátria que custou a vida de quase mil índios Beiços de Pau, no mesmo ano da morte de Calleri e de seus companheiros e companheiras de expedição. Calleri morreu em missão da FUNAI que visava remover o estorvo do projeto da rodovia BR-174, que foram os Waimiri-Atroari. Os Beiços de Pau morreram inocentes por irresponsabilidade de um funcionário da FUNAI que lhes ocasionou doença fatal.


 


Por outro lado, foi exatamente do desastre desta missão da FUNAI, que surgiu em meados daquele mesmo ano de 1968, o primeiro pedido do órgão à Igreja Católica, constando sob a “Autorização n. 1” do Presidente da FUNAI, Queiroz Campos, no caso, dirigido à Missão Anchieta, para socorrer os 43 sobreviventes, o que foi feito pelos jesuítas Antonio Iasi, Thomaz de Aquino Lisboa e Vicente Cañas. Graças ao trabalho deles aquele povo não se extinguiu.


 


Aqui entra a questão das ONGs indigenistas. É leviana a maneira como você e o deputado Átila Lins/AM, tratam as ONGs. Vocês as jogam todas, indistintamente, no mesmo saco. Essa generalização tem a finalidade de atingir exatamente as que nunca se enquadraram nas vossas acusações. Com isto você, médico, cria problemas irremediáveis para a sua consciência. Quando acusa tenha a coragem de citar nomes. Do contrário, é um leviano.


 


Resido à margem da Manaus-Boa Vista, em território que há meio século atrás fazia parte da terra Waimiri-Atroari. Acompanho de perto, desde 1980, a história desse povo, o qual minha esposa eu, autorizados pela FUNAI, alfabetizamos pela primeira vez na sua língua materna. Fomos expulsos pelo Presidente da FUNAI, Romero Jucá, hoje seu colega de senado, como se fôssemos estrangeiros interessados no minério dos índios. Atrás dos mesmos argumentos que você usa contra as ONGs indistintamente ainda hoje. Políticos do alto da Câmara Federal e do Senado pisaram duro sobre o nosso trabalho, valendo-se de argumentos e de vaidades inventadas, ou, talvez, até de interesses próprios ocultos.


 


Mas, também, guardamos dessa dolorosa experiência um elogio nunca esquecido, pronunciado pelo tuchaua da aldeia onde lecionamos um ano e meio. Na noite do dia 6 de dezembro de 1986, na hora de nossa expulsão, sentado na soleira da porta do posto da FUNAI na aldeia Yawará/Roraima, vendo o primeiro trabalho de alfabetização do povo Waimiri-Atroari interrompido, cabisbaixo e profundamente triste, o tuchaua nos disse: “Egydio, você, Doroti e CIMI, todos fracos como nós!”


 


As suas repetidas acusações contra as ONGs indigenistas e sua insistência contra Raposa Serra do Sol, como território contínuo dos índios, me faz lembrar aquela frase carregada de etnocentrismo que o velho senador Sêneca repetia diariamente no Senado Romano: “ceterum censeo Cartaginem delendam esse!” “De resto eu penso que Cartago deve ser destruída”. Ou parafraseando para o senador de Roraima: “De resto eu penso que os povos brasileiros que não se enquadram na Roma de hoje devem desaparecer!” Os cartagineses, povo do norte da África, resistiam ao seu enquadramento ou integração no modelo romano e aos seus projetos megalomaníacos, como os povos indígenas resistem ao agronegócio, aos arrozeiros, às companhias de mineração, à construção de hidrelétricas em seus territórios.


 


Mozarildo, não iluda a si mesmo; se você não fornecer a história verdadeira aos seus filhos e netos, um dia, revirando o seu arquivo, ou o do Senado, ou os arquivos e bibliotecas de suas Universidades, eles irão encontrar a história real dos povos indígenas de Roraima: Makuxi, Waimiri-Atroari, Wai Wai… Cuidado, você terá dificuldades de convivência dentro de sua família. Quem sabe amaldiçoem um pai ou avô como “senador leviano”, como “falso humanista” e como “médico irresponsável”.


 


Da Casa da Cultura do Urubuí – ONG familiar não registrada.


De Presidente Figueiredo/AM – 24-11-08

Fonte: Adital
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