Um conflito de governo no âmbito da Política de Saúde Indígena
No ano de 1999 quando a lei Arouca (que instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, tendo por base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas) foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, imaginava-se que o Governo Federal, através de seu Ministério da Saúde, implementaria uma política de atenção à saúde indígena nos moldes do que a lei determinava.
Pelo contrário, naquele ano as ações e serviços em saúde foram transferidas para terceiros e, portanto, as responsabilidades de governo foram entregues para Ongs, prefeituras e organizações indígenas. Como conseqüência, coube ao Ministério da Saúde, através da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), apenas o estabelecimento de convênios com as terceirizadas, fazer o repasse dos recursos e cobrar a sua aplicação.
O modelo perdurou até o início de 2008, quando o Ministério Público Federal do Trabalho solicitou judicialmente que esta política de atenção à saúde terceirizada fosse considerada ilegal. Na ocasião, se estabeleceu um prazo para que o Ministério da Saúde reformulasse o modelo de assistência, rompesse com todos os convênios e realizasse concursos públicos para contratação dos profissionais em saúde indígena.
O movimento indígena e as entidades indigenistas, ao longo dos últimos anos, vêm solicitando medidas no sentido de que seja constituída uma Secretaria Especial de Saúde Indígena, no âmbito do Ministério da Saúde, para coordenar as ações e políticas destinadas a estas populações. A esta Secretaria devem estar vinculados os profissionais em saúde, e ela deve contar com um orçamento definido para assegurar as ações e serviços no âmbito dos Distritos Sanitários Especiais, tendo eles autonomia administrativa e financeira mediante plano distrital aprovado depois de amplamente debatido e aprovado pelos usuários e prestadores de serviço.
No dia 29 de agosto o Ministro da Saúde apresentou ao Presidente da República, para apreciação, o Projeto de Lei 3.958/2008, que altera a Lei 10.683/2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios e cria a Secretaria de Atenção Primária e Promoção da Saúde e na qual estará vinculada a saúde indígena. Na exposição de motivos deste projeto, o Ministro da Saúde propõe a transferência das competências e atribuições exercidas pela Funasa para essa Secretaria. A lei prevê ainda a criação de 128 cargos em comissão do Grupo de Direção e Assessoramento Superiores – DAS destinados ao Ministério da Saúde. O referido projeto, depois de analisado pelo presidente da República, foi apresentado ao Congresso Nacional e atualmente está em tramitação na Câmara dos Deputados.
Esta iniciativa do governo federal desencadeou um conflito entre funcionários e técnicos da Funasa, algumas lideranças indígenas e prestadores de serviços terceirizados com a cúpula do Ministério da Saúde. O conflito deixa evidente o descontentamento do movimento indígena com as medidas adotadas, como a imposição de um projeto de lei apresentado pelo Ministério da Saúde sem submetê-lo a uma discussão mais ampla.
Pode-se dizer que a proposta embutida na nova lei constitui um retrocesso na medida em que, ao invés de criar uma Secretaria Especial de Saúde Indígena, propõem a vinculação das ações e serviços em saúde indígena a uma secretaria com responsabilidades diversas. Além disso, ainda não existe uma idéia clara de como e com que estrutura esta “secretaria ambivalente” funcionará e, no que tange a saúde indígena, que relação será estabelecida com os Distritos, quais recursos serão disponibilizados, que modelo de atenção vai adotar e se a execução das ações se dará de forma direta, terceirizada, municipalizada ou através de fundações estatais a serem criadas.
O Projeto de Lei também provocou descontentamento de funcionários da Funasa com o Ministro da Saúde e por conta disso, a Fundação vêm organizando reuniões com representantes de povos indígenas pelo país a fora. Nestas reuniões, a pretexto de avaliar o modelo de atenção em curso, buscam a adesão dos indígenas para pressionar o governo, no sentido de que este reveja sua decisão e, portanto, que a Funasa se mantenha como responsável pela saúde indígena. Além disso, a Funasa mantém em Brasília inúmeras pessoas, dentre elas indígenas e representantes das prestadoras de serviço, para que estabeleçam contatos e conversem com representantes dos mais variados segmentos sociais e órgãos de Estado, em uma espécie de lobby para evitar que o projeto seja aprovado.
Enquanto essa discussão acontece, vemos a grave situação de saúde a que estão submetidos muitos povos indígenas, com quadros de endemias de hepatite, malária, tuberculose e outras doenças que se alastram de maneira assustadora. E isso mostra claramente a inadequação do modelo de assistência terceirizado e centrado na Funasa. Por outro lado, preocupa-nos o fato de que os povos indígenas, destinatários de tais políticas, sejam mantidos de fora das definições mais importantes, que urgentemente precisam ser assumidas. O projeto de lei apresentado pelo governo federal parece ser muito mais um paliativo, uma solução confortável para retirar da ilegalidade a atual política de saúde indígena, sem efetivamente manifestar um interesse em implementar uma nova política que respeite as determinações constitucionais, a Lei Arouca e as recomendações das Conferências Nacionais de Saúde Indígena.
Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi.