Nota da Associação Brasileira de Antropologia
Causa perplexidade e profunda indignação a forma como foram
conduzidas as operações que, desde o dia 20/10, a Polícia Federal vêm
realizando em áreas habitadas pelos indígenas Tupinambás nos
municípios de Ilhéus, Una e Buerarema, no sul da Bahia. O cumprimento
de mandatos de reintegração de posse serviu de pretexto para uma
ostensiva exibição e um uso indiscriminado de verdadeira parafernália
de guerra, envolvendo um helicóptero, o lançamento de bombas de efeito
moral e a intervenção de um contingente de mais de uma centena de
homens fortemente armados. Dessa ação resultaram 23 pessoas feridas,
além de atos inteiramente absurdos e inexplicáveis – como a detenção
de um ônibus escolar repleto de crianças indígenas; a prisão de
menores; a destruição de casas, veículos e galpões; o confisco de
facas de cozinha, canivetes e até de instrumentos agrícolas. Inúteis
enquanto instrumento de instauração da ordem, tais iniciativas só
contribuíram para instilar o pânico, a insegurança e a revolta entre
as famílias indígenas, favorecendo tão somente o aumento do
preconceito e estigmatização de que os indígenas são vítimas há
décadas no contexto regional.
Se a intenção do Ministério da Justiça ao mobilizar a Polícia Federal
foi de antecipar-se a uma possível ação arbitrária e violenta da
Policia Militar, pretendendo assim evitar a repetição de cenas
lamentáveis de intolerância étnica e cultural, tal como ocorrido em
abril de 2000 em Porto Seguro, nas comemorações dos 500 Anos (cujos
registros fotográficos consternaram o Brasil e o mundo), não foi assim
infelizmente que as coisas sucederam. Viu-se, ao contrário, em um
contexto político federal e estadual completamente distinto, a
re-edição daquele triste episódio, contribuindo apenas para sinalizar
aos regionais o desrespeito com que são tratadas as famílias indígenas
e o completo desapreço por seus direitos, seus bens e sua segurança e
bem estar. Pior, através da feroz perseguição ao cacique Rosivaldo
Ferreira (Babau), exibiu-se explicitamente o ódio de que são vítimas
os legítimos representantes e porta-vozes do segmento indígena da
sociedade brasileira.
Fica claro o total desconhecimento pela força-tarefa da PF tanto das
peculiaridades do caso quanto da inexistência de uma indispensável
sintonia com as ações desenvolvidas pela FUNAI e por outros órgãos
governamentais. Enquanto a PF se enredava em uma escala repressiva e
passional, a FUNAI e a Procuradoria Geral da República haviam
conseguido suspender na justiça as liminares de re-integração de
posse, obtendo um novo prazo para a conclusão dos estudos técnicos ora
em realização na região. Uma conceituada antropóloga, indicada como
perita pela ABA, encontra-se atualmente em campo, integrando uma
equipe técnica da FUNAI para conclusão dos estudos de identificação.
Dentro desta área, conflagrada pela desastrada intervenção da PF,
existem casas, lavouras, escolas, posto de saúde, galpões e
construções destinadas ao beneficiamento da produção agrícola e
programas de preservação ambiental, inclusive com investimentos do
MEC, FUNASA, MDA e MMA. O cacique Babau, que está sendo perseguido
como um perigoso facínora, constitui uma das mais expressivas
lideranças do movimento indígena brasileiro, uma personalidade
bastante conhecida dos antropólogos pela lucidez e coerência com que
argumenta e defende a valorização do patrimônio das culturas indígenas.
É fundamental reverter os efeitos lesivos das ações praticadas pela
PF, apurando responsabilidades, garantindo a segurança dos líderes
indígenas, de pesquisadores, indigenistas e funcionários que atuam na
assistência a essas coletividades, implementando com a maior brevidade
todas as iniciativas necessárias ao reconhecimento dos direitos
indígenas.
24/10/2008