13/10/2008

Agenda Latino-americana 2009

 


 


Dom Pedro Casaldáliga *


 


Agenda latino-americana 2009 – À maneira de introdução fraterna


 


Nossa Agenda nasceu e vem caminhando sempre à luz e sob o estímulo da Utopia. Uma Utopia indefinida nos seus contornos e em sua hora, mas irrenunciável a partir do nosso compromisso com o humanismo integral.


 


Cada ano a Agenda tem um tema central, tratado por especialistas que abordam es-se tema de ângulos diferentes. Os temas têm sido maiores, ambiciosos, como o diálogo intercultural, a comunicação, a democracia, a política, o mundo indígena, as migrações, a dívida externa, a Pátria Grande… Temas maiores, digo, porque abrangem pessoas e povos, nosso Continente e o Terceiro Mundo, a solidariedade do Primeiro Mundo e a transformação das instituições internacionais.


 


Tema maior, urgente e conflituoso, tem sido o tema da última edição, 2008: a política que morreu ou que tem que morrer e uma política outra, de justiça, de igualdade, de dignidade, plural em realizações concretas e autenticamente mundiais frente à perversa mundialização do capitalismo neoliberal.


 


Faz séculos que a Humanidade vem forjando mediações para realizar a política, conflituosamente, tateando, em experiências históricas, contraditórias, às vezes, e até inuma-nas.


 


Falar em política era, logicamente, falar de cidadania, de participação cor-responsável, de sistemas, de governos, de partidos. Nesta Agenda de 2009 queremos avançar, com tremor de aventura, perguntando-nos sobre a mediação sistêmica para uma política verdadeiramente humana e mundial.


 


Hoje o rei está nu. O Terceiro Mundo, sobretudo, tem experimentado amargamente a iniqüidade desse sistema homicida e ecocida que é o capitalismo, agora neoliberal e global. “O sistema neoliberal, pondera Mário Soares, está dando sinais manifestos de esgota-mento e de incapacidade; exige-se uma nova ordem econômica mundial”. Com indignação, com saudades, aquecidos por tanto sonho e luta e sangue, respondendo à dignidade ferida da maioria humana, nos voltamos para o socialismo: um socialismo novo, reza o título desta Agenda. Porque evidentemente não se trata de repetir ensaios que deram, muitas vezes, em decepção, em violência, em ditadura, em pobreza, em morte. Não se trata de “olhar para trás com ira”, nem de voltarmos para modelos superados. Trata-se de rever, de aprender do passado, de atualizar, de não se conformar e, por isso mesmo, de vivermos hoje aqui, localmente e globalmente, a sempre nova Utopia.


 


O subtítulo da Agenda afirma categoricamente que a Utopia continua, que não é uma quimera, mas um desafio. Por isso nos perguntamos como estamos de Utopia. Preocupados pela construção diária da política como arte do possível, perdemos de vista o que parece impossível e, entretanto, é necessário? Teremos que conformarmos elegendo governos mais ou menos de esquerda, e continuarmos, submissos ou derrotados, dentro do sistema capitalista da direita? Que resta da velha disjuntiva capitalismo-socialismo? (Não falta quem afirme que já passou a hora das direitas e das esquerdas. A esta afirmação o humorista responde: “Que não haja direita nem esquerda, não significa que não haja acima e embaixo”; “os que têm e os que não têm”, diria Cervantes). Já não é possível o socialismo? Chegamos tarde demais? Não continua sendo a Utopia “necessária como pão de cada dia”?.


 


Mas, que socialismo ou socialismos? Advogamos por um socialismo novo. Com a novidade de uma democracia radicalizada, universal, econômica, social e cultural. “Não haverá socialismo, afirma Boaventura de Sousa Santos, e sim socialismos. Terão em comum reconhecer-se na definição de socialismo como democracia sem fim”.


 


A Agenda nos pergunta que mudanças experimentamos em função das lições que nos deu a história? Que atitudes, que ações são de se esperar hoje de uma militância socialista? Ninguém nasce socialista, o socialista se faz. Pessoalmente e comunitariamente. Há valores referenciais, isso sim, que são colunas mestras do socialismo novo: a dignidade humana, a igualdade social, a liberdade, a co-responsabilidade, a participação, a garantia de alimento, saúde, educação, moradia, trabalho, a ecologia integral, a propriedade relativizada porque pesa sobre ela uma hipoteca social.


 


“Não há estrutura socialista, insiste frei Betto, que produza, por efeito mecânico, pessoas de índole generosa, abertas à partilha, se não se adota uma pedagogia capaz de promover permanentemente emulação moral, capaz de fazer do socialismo o nome político do amor». «É ilusão voluntarista, adverte Wladimir Pomar, estabelecer formas rígidas para as transformações necessárias e para a radicalização da democracia… Elas, as transformações, dependem de muitos fatores que transcendem o nosso simples desejo e demandam tempo e suor. Sem uma visão clara a respeito de qualquer socialismo corre o risco de escorregar, tanto para o democratismo caótico como para o autoritarismo”. Evidentemente um socialismo que mereça este nome rechaça, por definição, toda ditadura e todo imperialismo; e também toda democracia que seja apenas formal.


 


Agusti de Semir constata que “dadas as armadilhas da democracia são muitos aqueles que se situam fora do sistema e falam de trabalhar em rede. Fazem a luta de outro ponto de partida, com foros sociais, ocupação de terra, acolhida aos emigrantes, meios de comunicação alternativos, etc. Trabalhar em rede significa fazê-lo de um modo horizontal porém coordenado, crescer de baixo e de maneira descentralizada, alimentar a autogestão e a ação direita”.


 


“Socialismo, portanto, afirma Paul Singer, significa uma economia organizada de tal modo que qualquer pessoa ou grupo de pessoas tenha acesso a crédito para adquirirem os meios de produção de que necessitam para desenvolver atividades de sua escolha. Isso implica, evidentemente, a eliminação da pobreza, da exclusão social…”.


 


O sociólogo François Houtart propõe quatro princípios-objetivos para um socialismo novo:


 


• Prioridade de uma utilização renovável dos recursos naturais.


• Predomínio do valor de uso sobre o valor de câmbio.


• Participação democrática em todos os setores da vida coletiva.


• Interculturalidade.


 


A Utopia continua, apesar de todos os pesares. Escandalosamente desatualizada nesta hora de pragmatismo, de produtividade a todo custo, de pós-modernidade escarmentada. A Utopia de que falamos, a compartimos com milhões de pessoas que nos precederam, dando inclusive o seu sangue, e com milhões que hoje vivem e lutam e marcham e cantam. Esta Utopia está em construção, somos operários da Utopia. A proclamamos e a fazemos; é dom de Deus e conquista nossa. Com esta ‘agenda utópica” nas mãos e no coração, que-remos “dar razão da nossa esperança”; anunciamos e intentamos viver, com humildade e com paixão, uma esperança coerente, criativa, subversivamente transformadora.


 


 


* Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia

Fonte: Adital
Share this: