Gestos indígenas: memória desde o exílio
Anuncio Martí*
Quando já levava pouco mais de um ano fora de meu país, como refugiado, me contam como uma anedota um fato que aconteceu em Assunção. Que um dia um companheiro indígena chegou ao balcão do Departamento de Identificações da Polícia Nacional com a intenção de renovar seu registro de identidade. Longe de ser atendido em sua demanda, como ele previa, um convite inesperado caiu de surpresa.
Dois policiais lhe encostaram e pediram que os acompanhasse. O levaram a uma delegacia, e lá ao escritório do senhor comissário. Uma vez sentado perante a autoridade começam a mostrar-lhe algumas fotos. Primeiro a foto de um companheiro refugiado e a pergunta em Guarani: ¡ndépa reikuaa kóape! (você o conhece?); depois a foto da esposa do refugiado e a mesma pergunta; e depois, a folha de um jornal local em que aparece ele mesmo, mais outras lideranças do movimento indígena do chaco paraguaio também exiladas.
A pergunta seguinte foi: ¡mba´e ojapo ha´e pende apytépe! (que faz ele entre vocês?). Perante a primeira e segunda perguntas a resposta do companheiro foi afirmativa. À seguinte inquisição responde o que a polícia já sabia faz muito tempo; pois o dia que surgiu publicamente o M19 de Abril a inteligência do governo colorado do Paraguai não faltou na jornada com seus pyrague kuéra
(delatores, espiões, arapongas) filmando e tirando fotos, pois tinham uma suposta versão de que, pelo nome que tem a organização se trataria de um movimento indígena guerrilheiro, vinculado ao zapatismo mexicano o às FARC colombianas.
¡Moõgui penohe pirapire peñembyaty haguã! (de onde tiram dinheiro para suas reuniões?) foi a pergunta seguinte da polícia. O objetivo era claro: estender a criminalização da luta social e política contra as comunidades e as lideranças indígenas. Queriam responsabilizar o companheiro por imaginárias atividades “terroristas” derivadas de uma suposta presença das FARC no Paraguai.
A resposta do líder indígena sobre a última pergunta da polícia raia simplesmente o realismo mágico. Ele afirma que quando o companheiro da foto, ausente em seu país de origem (refugiado), não pôde dar dinheiro de seu salário, conseguiram ajuda de alguma ONG. Porém, fala que quando não arrumam apoio das instituições para custear seus encontros, irremediavelmente, sacrificam seus estômagos e fontes de subsistência ao vender os animais silvestres, que caçam habitualmente para alimentar-se, aos motoristas que transitam pela rua Transchaco.
Como poderia isto ser assimilado como verdade na mente encolhida de um comissário da polícia paraguaia? Porém o néscio dobrou-se perante a crueza das respostas e índole sossegada do indígena. Este episódio teve um final feliz, porém nunca poderemos saber até que ponto o companheiro esteve perto de uma seção de tortura e por que, posteriormente, lhe deixaram livre o mesmo dia.
Isto é o relato de um fato simples em que a vida de uma liderança indígena foi colocada seriamente em risco. Suas palavras e sua testemunha fiel estão cheias de significados. No mundo indígena a palavra tem um valor superlativo. O maior retorno que se pode esperar da palavra bem dada, da palavra estendida com sinceridade e respeito é a confiança. Porém, a palavra não é só a soma de vocais e consoantes que pronunciamos por necessidade. A palavra é o gesto e também a atitude. A palavra, portanto, não é uma coisa só; são várias coisas ao mesmo tempo. Dela haverá de fluir, como claro manancial, a comunicação aberta e ela deve ser orientada sempre para o fortalecimento de aquele compromisso empenhado a través da palavra. A comunicação que surge do compromisso com e dos excluídos não morre, não se apaga, é solidária por natureza. Ela se coloca acima dos interesses imediatos. Não repousa nos seus laudáveis objetivos, sejam eles científicos, culturais, sociais ou jornalísticas. Não se esgota em si mesma, em suas verdades e descobrimentos.
Ela é fogo que arde nas entranhas das injustiças. Sem tempo, interpela em qualquer época e está sempre cheia de significados para quem luta para libertar-se da opressão. Na atualidade, na era dos valores invertidos, menoscabados, a palavra está comprometida porque o neoliberalismo e sua neocruzada contra “terroristas” nos intimidam e nos empurram para a indiferença, para o não compromisso e o medo.
As palavras e os nomes que pronunciávamos antes em liberdade hoje se voltaram perigosas e inomináveis. Sentimos-nos constrangidos pelas palavras filtradas e controladas pelo sistema opressor, que submeteu em seu arbítrio os termos, mensagens e vocais que são permitidos e os que comprometem. As frases e os gritos que usávamos para libertar-nos hoje nos condenam de antemão. É como a pequena história contada aqui do amigo indígena. Contá-la oprime e ao mesmo tempo merece resposta seu recado. Os verdadeiros gestos de comunicação são capazes de gerar correspondência, reciprocidade, nas mais adversas circunstâncias. Ao decifrar-los podemos descobrir que eles regressam sem espaventos e com uma linguagem simples de interpelação o como gesto de compromisso compartido. Quando a comunicação é sincera, por exemplo, para com os povos indígenas, ela deixa um cunho de confiança e é admitido como símbolo desse compromisso.
Tentei valorizar o gesto de um irmão indígena em aperto, acossado pelo sistema opressor, que se atribui hoje em dia o patrimônio exclusivo da palavra “justiça”. Com todos seus direitos pisoteados e violados, os indígenas são capazes de ensinar-nos que outro tipo de comunicação é possível. A comunicação, em um contexto de violência e impunidade, deve ser palavra dada palavra defendida; porém ademais rebeldia, solidariedade e testemunha.
* Comunicador, militante social e político paraguaio, refugiado no Brasil desde 2003, baixo à proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).