Povo Truká: uma trajetória de lutas, lutos e libertação
Em memória de Mození Araújo, guerreiro e mártir do povo Truká.
No dia 23 de agosto, mais uma liderança truká, Mození Araújo, irrigou com seu sangue o árido solo do sertão pernambucano. Registros históricos revelam que desde o período colonial muitos guerreiros do local deram suas vidas em defesa da vida de seu povo.
O território tradicionalmente ocupado pelo povo Truká inclui um arquipélago formado pela majestosa Ilha da Assunção e dezenas de ilhotas. É, portanto, banhado pelas águas de Opara, que recebeu dos colonizadores o apelido de Rio São Francisco, sendo hoje carinhosamente referido pelos habitantes tradicionais e a população ribeirinha em geral como Velho Chico. A fertilidade das terras e sua estratégica localização, possibilitando acesso fluvial aos estados de Pernambuco e Bahia, despertaram muito cedo a cobiça dos invasores do interior do Nordeste.
Ainda no século XVII, durante o chamado ciclo do gado, atividade produtiva utilizada como estratégia de expansão e penetração interiorana do projeto colonizador europeu, as terras truká começaram a ser invadidas pelas fazendas. Relatórios do frei Martinho de Nantes, capuchinho francês que atuou nas missões sertanejas, descrevem as batalhas travadas pelos indígenas habitantes das ilhas do São Francisco contra os criadores de gado, apoiados pela Casa da Torre, localizada no litoral baiano. Fundada por Garcia D`Ávila e sustentada por sua descendência, a Casa da Torre se constituiu numa espécie de quartel general para promoção das invasões e esbulhos das terras pertencentes às populações originárias da região.
Ao longo dos anos, muitos invasores usurparam o território da Assunção. Além dos fazendeiros, também a Igreja e o governo de Pernambuco, a primeira no início do século passado e o último a partir da década de 60, integraram o rol dos grileiros.
Todo o sofrimento vivido nas décadas mais remotas, bem como a bravura e feitos heróicos dos guerreiros de então, ainda permanecem presentes na memória truká. Graças ao exercício da oralidade, de geração em geração, a história se atualiza e ganha contornos contemporâneos, servindo como instrumento de conscientização e mobilização das novas gerações.
É esta consciência, sempre atualizada, que nas últimas duas décadas vem impulsionando o povo Truká a expulsar, de uma vez por todas, os invasores de seu território, exorcizando em definitivo o fantasma da família D`Ávila e construindo uma nova história, com suas terras totalmente livres da presença de intrusos.
No momento, o projeto de Transposição das águas do Rio São Francisco, empreendimento do governo federal, representa uma nova ameaça às terras tradicionalmente ocupadas pelo povo. Mas a sabedoria e a experiência acumuladas durante séculos de lutas de resistência, são motivo de garantia e certeza de que, mais uma vez, a vitória será dos Truká.
O ressurgimento do Reino da Assunção
Não obstante à incansável e invencível resistência dos seus ocupantes originários, no início dos anos 80, grande extensão das terras da ilha da Assunção e numerosas ilhas pequenas encontravam-se sob o domínio dos invasores. Poucas famílias indígenas conseguiam se manter em algumas ilhotas de difícil acesso, enquanto outras eram utilizadas como mão-de-obra barata pelas fazendas invasoras.
No ano de 1981, os Truká iniciam uma reação contra aquela situação de opressão em que se encontravam e retomam parte da terra invadida pela SEMEMPE – Companhia de Sementes e Mudas de Pernambuco. Nesse período, foi assassinado o líder Antonio Bingô. No ano seguinte, o povo realizou nova retomada, outra vez nas terras invadidas pela SEMEMPE. A polícia de Cabrobó e funcionários da empresa estatal reagiram com muita violência. Em função dessas ações da comunidade, a Funai começa a reagir e dois anos depois inicia o processo de demarcação da terra, até hoje não concluído.
O procedimento demarcatório permaneceu parado durante muitos anos. Neste ínterim, uma grande ofensiva de violência avança contra o povo: seqüestros, torturas e assassinatos, passam a ser praticados contra os indígenas pelos pistoleiros das fazendas, que além da atividade agropecuária, passaram também a cultivar maconha. Este cultivo, nos anos 90, propagou-se pelo sertão pernambucano, na região denominada polígono da maconha.
Em face do grande número de crimes e da total impunidade, em 1992, o Cimi Nordeste publicou um documento-denúncia intitulado Truká: violência, impunidade e descaso, tendo a divulgação do mesmo despertado o interesse da Anistia Internacional, que repercutiu as denúncias alí registradas e solicitou providências por parte das autoridades nacionais.
Diante da completa inoperância do governo brasileiro, os Truká, treze anos depois da primeira retomada, reiniciam o processo de reocupação do arquipélago. Em maio de 1994, ocupam a fazenda de Apolinário Siqueira, um dos últimos coronéis da região, conhecido por Xinxa, o rei da cebola, e temido por todos. Em 1995, retomam outra faixa de terra que se encontrava sob a posse do fazendeiro Cícero Caló. A mobilização do povo manteve-se num processo contínuo, culminando com a retomada definitiva de todo o arquipélago, no ano de 1999, quando todas as fazendas foram ocupadas, tendo sido expulso todo o gado nelas existentes. Como há apenas uma ponte que liga a grande ilha da Assunção ao continente, mais precisamente à cidade de Cabrobó, a ponte serviu como corredor para a gigantesca boiada, que não tendo para onde se deslocar, se dispersou pelas ruas da cidade, provocando grande tumulto entre os moradores.
Nessa histórica e heróica empreitada, as lideranças e alguns membros da comunidade sofreram toda sorte de perseguição e violação de seus direitos. Foram violentamente reprimidos por agentes do poder público, sendo a Ilha da Assunção invadia várias vezes por policiais federais e militares, que espalhavam terror entre a população e praticavam torturas físicas e psicológicas. Como parte da estratégia de criminalização das lutas do povo, muitos indígenas foram processados. O cacique Aurivan, mais conhecido como Neguinho truká, chegou a ser preso.
Mesmo depois da expulsão dos fazendeiros, a polícia ainda continuou a perseguir as lideranças. No ano de 2005, quatro policiais militares invadiram a terra indígena e assassinaram o líder Adenílson Vieira e seu filho Jorge, quando estes se encontravam numa festa da comunidade com cerca de 600 pessoas. A principal testemunha ocular dos dois homicídios era Mození Araújo, assassinado há 8 dias.
Com o arquipélago já totalmente livre de intrusos, a luta agora está direcionada para recuperar a parte do território tradicional que fica no continente, à margem esquerda de Opara. Por esse motivo, em 2007, as comunidades truká se mobilizaram mais uma vez e ocuparam uma fazenda localizada na área em que estão sendo construídas, pelo exército brasileiro, as obras para transposição das águas do São Francisco. É mais uma batalha homérica para o valente povo do rio.
Contudo, a recuperação do domínio total sobre o arquipélago, hoje sob a posse plena de seus habitantes originários, provocou mudanças substanciais na vida do povo.
No imaginário Truká, seu território tradicional conforma um reino. A Ilha da Assunção representa o coração desse reino. A idéia de reino que durante o processo de colonização se configurou na memória de alguns povos indígenas do Nordeste, não corresponde às tradicionais monarquias, constituídas por um poder totalitário opressor que domina outros povos e os expropria de seus territórios e riquezas naturais. Refere-se a um reinado mítico, onde não há soberanos nem vassalos. Trata-se de um reino com contornos escatológicos, “governado” pelos encantados que se constituem nos principais protetores da terra sagrada onde aqueles povos habitam. Aproxima-se mais da idéia de Reino de Deus da teologia cristã. O esbulho praticado contra suas terras representou um processo de dessacralização, laicização e profanação do espaço sagrado, os territórios tradicionais.
A expulsão dos invasores das ilhas e a conseqüente recuperação territorial, significa muito mais que uma simples posse fundiária, representa o fim do exílio, mais do que isso, a recriação do espaço sagrado, do território mitológico, o reencontro das pessoas e do povo consigo mesmo. É o renascimento do Reino da Assunção e esse sentimento está registrado na obra de produção coletiva das comunidades, recentemente publicada – No Reino da Assunção, Reina TRUKÀ.
De canela cinza à Nação Truká
Até os anos
A frase por ele imortalizada traz consigo todo o simbolismo do significado da consciência coletiva de pertencimento a um povo e dentro dessa coletividade a importância de cada indivíduo, cada guerreira, cada guerreiro, com sua trajetória de vida, com a marca de seu corpo, antes canela cinza, agora corpo expressão da alteridade, da dignidade, da honradez, da identidade Truká, da qual Mození sempre continuará a fazer parte, pois, “o que criamos passa a ficar no mundo com nossa marca, com a marca de nossa presença ou, então, de nossa ausência, mas sempre nossa marca”.
Brasília, 31 de agosto de 2008.
Saulo Ferreira Feitosa
Secretário Adjunto do Cimi