Indígenas temem impactos
Povos Krahô, Apinajé, Gavião e Krikati, que vivem nas margens do Rio Tocantins, brigam para que sejam reconhecidos como impactados pela Usina de Estreito. Povos não foram incluídos nos estudos para a construção da obra
Texto e fotos: Beatriz Camargo
Parte III – “Vidas Inundadas – Indígenas”
Indígenas do povo Apinajé fazem colares. Preocupação maior é a pressão sobre a Terra Indígena |
As populações indígenas não foram incluídas no Estudo e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da Usina Hidrelética (UHE) de Estreito. Os levantamentos apresentados pelo consórcio privado que toca a obra deixaram quatro povos da região de fora da chamada “área de influência indireta do empreendimento”. Agora, os povos Krahô e Apinajé, no Tocantins, e Gavião e Krikati, no Maranhão, lutam para que sejam reconhecidos como atingidos e principalmente para que tenham direito de opinar sobre os destinos daqueles que dependem diretamente do meio natural em que vivem.
“O meio ambiente significa vida para nós. Estamos comprometendo as futuras gerações. É isso que o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento, iniciativa do governo federal que que reúne investimentos na área de infra-estrutura] quer?”, provocou Sheila Apinajé, representante do Conselho das Organizações Indígenas da Bacia Araguaia Tocantins (Coiat), durante audiência pública realizada no Senado Federal, em maio.
Antônio Veríssimo, liderança Apinajé da aldeia Areia Branca, na Terra Indígena (TI) Apinajé, adiciona. “Esse argumento de que gera emprego é vago. A matança de seres humanos também gera emprego. Guerra também gera emprego. A preservação do nosso rio, por exemplo, também gera emprego: pesca e turismo”, critica. “É a omissão do governo que está gerando o conflito”.
As mudanças no comportamento do Rio Tocantins são apontadas pelos indígenas como o principal impacto sofrido, sobretudo considerando o acúmulo de barragens. A alimentação das aldeias é baseada no consumo de peixe, de animais criados e da roça, em sua maioria de vazante, na beira do rio. O cacique da aldeia Apinajé São José, Orlando Ribeiro, define que pescar, além de ser base da alimentação, também é uma questão de cultura.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) calcula que, considerando os impactos acumulados na bacia do Tocantins, serão atingidas ainda as TIs Avá Canoeiro, Kraolândia, Funil, Xerente, Apinajé, Krikati e Mãe Maria. “As atividades se dão sempre em função do rio. É um onde tem a terra fértil, a gente planta na vazante, pesca… É onde os animais vêm beber água. Desde a Antiguidade os homens ficam na beira do rio”, testemunha Antônio.
O posicionamento acuado dos indígenas se justifica quando a questão em vista em perspectiva. Além dos traumas do passado, os planos prometidos para o futuro na região causam indignação e desconfiança. Duas novas usinas que estão sendo previstas inundarão parte de TIs. A barragem de Serra Quebrada, no município de Itaguatins (TO) e Marabá (PA), deslocará forçadamente as aldeias Riachinho e Butica da TI Apinajé, enquanto que o povo Gavião vai perder parte de seu território tradicional para o lago da Usina de Marabá. Esta última, para se ter uma idéia, prevê a remoção de 40 mil pessoas.
Cerco
O principal impacto da proliferação de obras de infra-estrutura na região é justamente o aumento da pressão sobre TIs. Essa foi uma das conclusões de um estudo de 2006 do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) sobre as conseqüências da hidrovia Araguaia-Tocantins – projeto final da seqüência de barragens nos dois rios – para os povos Apinajé, Krahô e Krikati. “Os ribeirinhos vão sair da beira do rio e serão vizinhos da Terra Indígena”, alertou na audiência o representante da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima), Lourenço Milhomem, Krikati.
O documento do CTI aponta que a migração de pessoas – à procura de trabalho na região, ou fugindo da especulação de terras, ou procurando melhores terras à beira rio – traz pressão para o entorno das TIs, durante todas as fases da obra (da construção ao funcionamento). Essa proximidade pode provocar, na avaliação do CTI, o acirramento dos conflitos. O fenômeno se dá principalmente em TIs mais próximas de zonas urbanas. A TI Apinajé, que se estende pelos municípios de Tocantinópolis (TO), Porto Franco (MA) e Maurilândia (TO), abriga onze aldeias e é cercada por estradas e fazendas, em sua maioria de pecuária.
Rodovia Tranzamazônica contorna Terra Indígena Apinajé; nova estrada está em construção |
A própria história do povo Apinajé sintetiza o problema. Eles já migraram outras vezes, empurrados pelo “asifixia” do cerco de não-índios. “Fomos expulsos no Norte pelo Grão-Pará. Migramos para o sertão [interior] por causa da pressão”, conta Antônio. Problemas com conflitos fundiários, bebida e doenças quase fizeram o povo desaparecer. Nos anos 50 do século XX, a população ficou reduzida a nada menos do que três famílias.
Em 1997, a ameaça veio pelo chão. O Povo Apinajé conseguiu evitar que o asfaltamento da Rodovia Transamazônica atravessasse a TI. A estrada acabou contornando as bordas da área tradicional. Agora, uma nova obra rodoviária está em andamento, desta vez passando bem mais próximo de algumas aldeias. A rota conectará a Transamazônica a Tocantinópolis (TO). “Uma estrada traz muito impacto: os bichos que passam vão estranhar, os carros atropelam os bichos – raposa tamanduá, cotia. [Passar a estrada] dentro da aldeia seria pior, pelos problemas de prostituição infantil, bebida…”, avalia Antônio.
“Vem muita máquina, aquela indústria, aquela fumaça…”, discorre o desiludido cacique Orlando, sobre os impactos que grandes obras (como a própria Usina de Estreito) trazem para os indígenas. “O que é que os jovens vão ter? A nossa cultura estamos recuperando agora e a barragem pode estragar tudo”.
Internas
Para o índio Antônio, a preocupação com grandes obras em si já pode ser entendida como um “impacto” para a vida indígena. Ele conta que o assunto da barragem de Estreito aumenta o conflito interno, porque divide opiniões. “Um não gosta de mim porque sou contra a barragem, o outro é a favor porque está alinhado com o prefeito, com o vereador”.
O dinheiro que a barragem pode trazer (confira a Parte II – Pressão, segunda reportagem da série especial) também divide a comunidade tradicional. “Quando se fala em indenização, a pessoa já quer negociar, ver quanto vai ganhar. É a idéia de que o dinheiro vai resolver todos os problemas da comunidade.”
O cacique Orlando, desconfiado, diz que “vai ter que ter compensação, se não a gente vai parar essa barragem”. A aldeia São José é maior aldeia da TI Apinajé, com telefone público, escola e posto da Fundação Nacional do Índio (Funai). É também das mais próximas da cidade de Tocantinópolis e o cacique Orlando tem ligação com políticos municipais.
Cacique Orlando, da aldeia São José, defende indenizações aos indígenas |
O advogado do Cimi, Paulo Machado, diz que muitas obras, como a Usina de Estreito e a transposição do Rio São Francisco, não tem mencionado a presença de indígenas. Propositadamente. “Se a presença for constatada, muda o processo: o Congresso deve autorizar a interferência nessas áreas”.
Não consultar populações tradicionais sobre o processo fere o Art. 231 da Constituição brasileira e contraria o compromisso assumido pelo Brasil com o mundo. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas reconhecem os direitos das populações tradicionais e indígenas e determinam a consulta sobre qualquer medida que possa afetá-las.
A Funai entrou no debate sobre Estreito depois de concedida a licença prévia. A diretora de socioeconomia do Consórcio Estreito Energia (Ceste), Norma Villela, garantiu aos indígenas, durante a audiência em Brasília, que estavam sendo feitas negociações com o órgão no sentido de “amenizar os impactos às comunidades em várias frentes”. Segundo a proposta do Ceste – formado pela união de empresas de grande porte como Suez Energy International, Vale, Alcoa e Camargo Corrêa Energia -, seria criado um grupo de trabalho (GT) para discutir a questão.
Na mesma ocasião, a coordenadora geral de patrimônio indígena e de meio ambiente da Funai – responsável por licenciamentos que afetam a população indígena -, Iara Ferreira, definiu que o papel do órgão federal nesse processo é estabelecer o diálogo e explicar aos indígenas o que vai acontecer.
“Vamos apoiar a criação do GT para rever a questão indígena, do limite de quem está sendo considerado impactado. Mas isso não é papel da empresa. Quem tem que fazer isso é o governo. Está na lei”, sublinha Sara Sanchez, coordenadora do Cimi da regional Goiás/Tocantins.
Os indígenas não confiam em uma negociação num GT mediado pela Funai. “A Funai é governo e se interessa que a obra saia. Se tiver indenização, o dinheiro vem para ela. Para o índio ela vai dizer que é contra, que vai lutar…”, protesta Antonio, do povo Apinajé. “A Funai reconhece que os indígenas sofrem pressão, mas não tem estrutura nem pessoal para fazer nada.”
Leia as outras partes do Especial – Estreito:
Parte I – Impasse
Parte II- Pressão
Parte IV – Vidas inundadas – Ribeirinhos
Parte V – Horizontes