21/07/2008

Mato Grosso do Sul em guerra?

Povo Kaiowá Guarani sofre com pressões de políticos e empreserários que tentam barrar o reconhecimento de suas terras


 


“Se 26 prefeitos, deputados estaduais e federais não conseguirem derrubar isso [TAC], podemos mudar para outro canto”, afirmou o governador Puccineli. (Jornal Eletrônico Campo Grande News,17/07/08)


 


“Essas portarias já trazem um clima de guerra para o estado”, apontou o presidente da Famasu (federação da Agricultura do Estado do MS), Ademar Silva Júnior. (Jornal Eletrônico Campo Grande News,18/07/08)


 


Antes mesmo que se comece a cumprir o preceito constitucional e a determinação estabelecida pelas Portarias nº 788 a 793, de 10 de julho, e publicadas no Diário Oficial dia 14, que constituem Grupos Técnicos de identificação das terras Kaiowá Guarani no Mato Grosso do Sul, já se encontra armado um batalhão de choque anticonstitucional e antiindígena.


 


A determinação é clara: impedir a identificação das terras Kaiowá Guarani. A lógica é manifesta, com o discurso muito ouvido nos corredores e ruas da região, “para que dar terra para um bando de bugres bêbados!”. A estratégia está definida. Mobilizar todos os poderes, desde vereadores a senadores, de prefeitos a governador, de pequenos proprietários rurais a grandes multinacionais, desde a polícia às milícias particulares, numa grande força tarefa para impedir que se realizem as identificações e o reconhecimento das terras tradicionais (tekohá) Kaiowá Guarani.


 


Vale lembrar, que os trabalhos são apenas para se identificar quais são e quais não são as terras do povo Kaiowá Guarani no estado de Mato Grosso do Sul conforme o que a Constituição Federal determina como sendo “as indispensáveis” a sua reprodução física e cultural. Trata-se apenas da primeira etapa do procedimento de demarcação estabelecido pelo Decreto 1.775/96, no qual ainda serão abertos os prazos estabelecidos no referido decreto para as contestações dos que discordarem dos resultados dos estudos. Havendo, portanto (diga-se, infelizmente), ainda longa distância entre a identificação dessas terras e a posse das mesmas para ser entregue aos índios.


 


O absurdo que se constata é a tentativa de paralisar aquilo que sequer foi iniciado, em afronta à legislação vigente que já estabelece o contraditório no seu momento adequado e como já foi dito, a Constituição brasileira que agora querem rasgar.


 


A opção pela inconstitucionalidade e genocídio


“Desta forma, vimos requerer urgentemente a V. Exa. a revogação das supracitadas portarias.” (Carta ao Presidente Lula, 17/07/08)


 


A reação a uma possível identificação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul já é uma manifesta e deliberada opção contrária à Constituição Federal. E por conseqüência deste quadro, o genocídio do povo Kaiowá Guarani avança.


 


Apesar de não ser uma atitude nova, pois é a continuidade de uma política colonialista de invasão dos territórios desse povo e de destruição da sócio e biodiversidade ali existentes, apenas muda no acentuar de sua característica evidente de preconceito e racismo, que visa impedir a esse povo seu chão sagrado para viver.


 


O colonialismo feroz e o capitalismo selvagem avançaram celeremente sobre a Mata Atlântica e as férteis terras ocupadas pelos Kaiowá Guarani. Como “empecilhos” foram sendo empilhados nos confinamentos. O destino final parecia estar traçado. Seria apenas uma questão de tempo e os índios não mais existiriam. A “civilização”, enfim, triunfaria. E o reino da “produção”, da monocultura, do agronegócio, da agroindústria, das usinas de cana, do boi, se estabeleceriam definitivamente. Apenas não contavam com a heróica e sábia resistência indígena. E a sutileza do plano transformou-se em ledo engano.


 


É estarrecedor que um governador de estado, senadores, deputados, prefeitos, empresários do agronegócio, sindicatos rurais, Federação da Agricultura estejam empreendendo tamanha barbaridade, solicitando ao Presidente da República que não seja realizado sequer um estudo para saber se, afinal de contas, quais são as terras indispensáveis para o desenvolvimento físico e cultural do Povo Kaiowá Guarani visando cessar de uma vez por todas os conflitos e a insegurança instalada na região. O não-cumprimento da Constituição Federal, ou seja, a não identificação das terras indígenas, transforma-se no reconhecimento explícito de que os conflitos e as mortes dos Kaiowá Guarani vão continuar com o aval de nossas sábias autoridades.


 


Mentiras travestidas de verdades


Na carta ao Presidente Lula, o governador de Mato grosso do Sul e os demais signatários pedem a revogação das portarias afirmando que, caso contrário, resultará nas seguintes conseqüências:


a) conflito entre índios e não índios e agravamento da questão social, impactando diretamente na vida de 700 mil brasileiros (índios e não índios habitantes da região a ser identificada) e dos demais cidadãos da população sul-mato-grossense (um milhão e quinhentos mil);


b) envolvimento indevido das áreas dos 26 municípios mencionados que não se caracterizam como áreas indígenas, conforme preceituado no Artigo 231 da Constituição Federal de 1988;


c) prejuízo à economia do estado de Mato Grosso do Sul com eventual e descabida perda de um terço de sua área, restando apenas 12 milhões de hectares economicamente aproveitáveis de um total de 35 milhões de hectares;


 


Falar que o reconhecimento das terras indígenas irá gerar conflito entre índios e não índios nada mais é do reconhecer o extermínio dos índios através de um etnocídio que são os atuais confinamentos. O reconhecimento tardio das terras indígenas é o único caminho para restabelecer a justiça e a paz.


 


Tentam fazer crer que o reconhecimento das terras indígenas será causa de uma tragédia que se abaterá sobre toda a população do estado. É no mínimo má-fé, afirmar que os 40 mil Kaiowá, que hoje ocupam efetivamente em torno de 20 mil hectares ocuparão mais de 20 milhões de hectares, expresso nas afirmações da carta. Falar então na “perda de um terço de sua área” chega a ser uma agressão ao bom senso. É mais do que mentir e iludir, é tripudiar sobre a inteligência do povo!


 


Ressuscitando fantasmas


O texto também invoca o risco à soberania nacional, pois muitas localidades fazem fronteira com o Paraguai. Diz “riscos à soberania nacional e perda de território brasileiro envolvendo mais de mil quilômetros de fronteira com a República do Paraguai”.


 


O presidente da Famasul, Ademar Silva Júnior, reclama: “É um terço do estado. A região mais produtiva. De um lado é areia e do outro Pantanal”. Ainda, conforme a mesma matéria, o TAC fere o direito de propriedade e não é um processo democrático.


 


Até parece que estão tratando com débeis mentais, desmemoriados. Falar de “perda de território brasileiro” é no mínimo, repita-se, ignorar a Constituição Federal. As terras indígenas são propriedade da União. Portanto é reforçar a soberania nacional, impedindo que vastas terras da região estejam nas mãos de uns poucos latifundiários nacionais e estrangeiros.


 


Será que imaginam que o Paraguai, do recém-eleito e que em breve irá tomar posse, Fernando Lugo, irá promover “uma guerra de anexação” de terras brasileiras por aquele país. Talvez estejam omitindo intencionalmente o que na prática está acontecendo: justamente o contrário! O agronegócio brasileiro é que vem se apossando de, cada vez mais, terras no Paraguai ocasionando uma agressão sem precedentes ao meio ambiente, à mata e às populações Guarani, já provocando inclusive reações das populações locais. Aliás, devem ter esquecido que essa parte do sul do estado, até o Rio Brilhante era Paraguai até que foi anexado ao território brasileiro após o genocídio ocorrido com aquela guerra brutal.


 


O que é fato, onde “o Brasil foi Paraguai”, hoje só é Brasil, por causa dos povos indígenas. No front da guerra, muitos índios Kaiowá Guarani, Kadiwéu/Guaicuru, Terena, Kinikinawa foram sacrificados em defesa do império do Brasil configurando hoje os limites do território brasileiro. Esses agora, além de não terem o reconhecimento de sua contribuição, são considerados empecilhos para o progresso e ameaça à soberania. Sequer são reconhecidos como brasileiros.


 


Violência contínua, ‘esperança inquebrantável’


“Atiraram contra o cacique Loretito, que tinha ido pegar um pouco de lenha” diz preocupado Amilton Lopes, uma das lideranças de Nhande Ru Marangatu. A imprensa do Mato Grosso do Sul destaca mais essa agressão aos mais de 700 Kaiowá Guarani, confinados em pouco mais de 100 hectares, dos 9.300 já demarcados e homologados pelo presidente Lula.


 


Onde estava o acampamento do grupo de Jukeri, próximo a Dourados, agora está um rancho com seguranças privados. O mesmo acontece na entrada do tekoha Laranjeira Nhande Ru, próximo a Rio Brilhante. Os Kaiowá Guarani de Kurusu Ambá, jogados à beira da estrada, manifestaram o limite de sua revolta diante de um ano e meio de assassinatos, prisões, ferimentos, acusações infundadas por parte dos fazendeiros e autoridades da região.


 


Em Kurusu Ambá, foi comovente ver aquele povo sofrido à beira da estrada, sob constante ameaças e tensões, mas com dignidade, fibra e muita disposição de lutar, viver, alegrar-se com cada dia, não deixar o sonho da terra morrer. Com um bonito ritual de benção de um “koatiá” (documento), nos despedimos deles fortemente emocionados pela energia e testemunho de um povo. No documento, após narrar toda história de sofrimento, assassinatos e prisões, terminam fazendo o apelo “Além do que aconteceu, tudo isso a comunidade pede a você pela demarcação da terra, que seja mais rápido possível. Se a autoridade não resolve, nós indígena mesmo, nós vamos resolver mesmo pelo nosso corpo, mais importante que morre pela verdade, mesmo que se enterrado tudo um mesmo lugar, tem que ser nosso a aldeia. – Tekoha Kurusu Ambá, isso é nosso maior sonho” (documento manuscrito)


 


É de cortar o coração ver, ouvir e sentir o sofrimento desse povo. Estão submetidos a uma violência contínua que está gerando mortes, desnutrição, fome, dependência, suicídios… Porém trata-se de um dos povos de maior força espiritual e resistência da América do Sul. Os Guarani, de um passado e presente heróicos, são testemunhos vivos de um continente que foi e poderá ser diferente, com justiça, pluralidade, reciprocidade e solidariedade.


 


Egon Heck – Cimi MS


Campo Grande 20 de julho de 2008


 

Fonte: Cimi MS
Share this: