Movimento e organizações indígenas no Brasil
I – Introdução
O Brasil na época da conquista, em 1500, era habitado por aproximadamente 1.700 povos indígenas com uma população estimada em 05 milhões de pessoas. Sobreviveram ao violento processo de conquista em torno de 235 povos que falam 180 línguas. 180 desses povos indígenas vivem na Amazônia Legal, ou 77% do total[1].
A Constituição de 1988 marca a história indígena recente no Brasil. Até então para o Estado Brasileiro os índios, chamados de silvícolas, eram considerados portadores de organizações primitivas conhecidas como tribos, que deveriam ser absorvidos pela sociedade brasileira e seu fim estava projetado para o ano 2000. Seria o triunfo definitivo do projeto colonial que se iniciou nestas terras em 1500 e que vinha reproduzindo suas relações de dominação para com os povos indígenas, respaldadas por uma legislação etnocida.
O instituto da relativa incapacidade, inscrito no Código Civil de 1916, dava ao Estado o poder sobre a vontade dos povos indígenas. Esse poder ainda hoje é freqüentemente invocado pela Funai. Esse projeto de morte cultural era revestido por uma aparente política de proteção da vida física dos índios. Aparente porque nem o SPI (Serviço de Proteção dos Índios, 1910) e nem a Funai (Fundação Nacional do Índio, 1967) órgãos governamentais criados com essa finalidade, impediram os massacres indígenas que continuam na Amazônia do século XXI.
Com a exploração extrativista da borracha na Amazônia iniciada na segunda metade do século XIX, que entrou em decadência a partir dos anos de 1920 e que por ocasião da 2ª Guerra Mundial, com os soldados da borracha, teve um pequeno alento, foram alcançados de forma violência, os povos indígenas que até então haviam conseguido se manter distantes das frentes econômicas capitalistas.
A partir de 1960 – 70, depois do extrativismo da borracha na Amazônia, que vitimou milhares de índios e também nordestinos mantidos numa situação análoga a de escravidão, os massacres contra os povos indígenas voltariam a se repetir com as políticas de desenvolvimento e integração da Amazônia que começaram a rasgar a floresta com a abertura de estradas como a Transamazônica, a Belém-Brasília, a BR
A Funai, sucessora do SPI, extinto em meio a numerosos escândalos, no papel oficial da proteção aos indígenas, tendo como base a perspectiva integracionista utilizou-se do seu poder de tutela para viabilizar os projetos governamentais. Diante da mortandade indígena provocada pelas políticas desenvolvimentistas, o órgão indigenista chegou a ser chamado pela imprensa de Funerária Nacional do Índio, ocupado que estava com os enterros indígenas. O Brasil estava em plena ditadura militar, vivendo o milagre econômico com crescimento médio do PIB de 10% ao ano. A ocupação e integração da Amazônia eram concebidas como fatores de segurança nacional.
Sem liberdade de imprensa e com a perseguição dos que se opunham ao regime militar, a questão indígena paradoxalmente conquistou espaço na sociedade brasileira. Setores importantes da comunidade internacional, diante das graves denúncias de violências praticadas contra os povos indígenas, passaram a cobrar providências e a acompanhar mais de perto as ações governamentais. Isso criou algumas dificuldades para os militares na repressão à militância nessa área. Assim, a causa indígena passou a significar uma possibilidade de enfrentamento do regime militar, também por setores que até então não militavam nesse campo.
A extrema violência contra os povos indígenas, gerada pelas políticas da Ditadura Militar para a Amazônia, e o abandono em que estes povos se encontravam em todo país sensibilizou setores importantes da sociedade brasileira, dentre eles a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, que abriu espaço para a criação, em 1972, de um organismo específico de pastoral indigenista, o Conselho Indigenista Missionário, Cimi.
A grande repercussão da realidade indígena pela imprensa, alimentada pelos levantamentos “in loco” feitos por esse Conselho, muitas vezes cheios de denúncias, contribuiu para o surgimento de organizações civis de apoio aos povos indígenas, muitas delas assumindo de imediato a bandeira da luta contra o projeto de emancipação compulsória dos índios, que começou a ser cogitado pelo governo militar a partir de 1975, para incorporar suas terras à dinâmica da economia capitalista.
É nessa época que, por diversos fatores, os indígenas de diferentes regiões do país começam a se movimentar em uma nova ofensiva para assegurarem os seus espaços territoriais.
O protagonismo indígena começa a se manifestar com maior intensidade a partir das Assembléias Indígenas apoiadas pelo Cimi que na década de 1970 pela primeira vez, reuniam lideranças de diferentes povos de Norte a Sul do país. Nessas Assembléias os povos indígenas colocaram definitivamente na pauta a retomada e garantia de suas terras como condição para combater a violência de que eram vítimas e para assegurar o seu futuro. Desde então, aconteceram significativos avanços conseguidos através da articulação, da organização e da mobilização.
Se as estratégias da luta e resistência indígena historicamente se caracterizavam pelos confrontos diretos contra os invasores, por alianças com parte deles, por reações localizadas ou mesmo pela resistência passiva, agora a perspectiva era, com o apoio de setores da sociedade brasileira, da comunidade internacional e da opinião pública, exigir do Estado brasileiro o reconhecimento e garantia de direitos.
Em 1988 veio finalmente o respaldo Constitucional aos direitos históricos dos povos indígenas que fortaleceu o movimento indígena. Numerosas organizações indígenas foram criadas a partir da década de 1980 para lutar pelos direitos indígenas, fazendo com que esses povos se fizessem representar com força nos espaços abertos na sociedade brasileira e nas instâncias governamentais.
Essa nova história indígena que se inicia, no entanto, ainda vem acompanhada de muita violência como a invasão garimpeira do território Yanomami em Roraima que vitimou entre 1987 e 1993 mais de 1.500 índios, dentre eles, em julho de 1993, o massacre da Maloca Haximu com 12 índios assassinados; o massacre do capacete no Alto Solimões, Amazonas, em 1988, no qual 14 Tikuna formam mortos, e o assassinato de numerosas lideranças indígenas em todo país como Ângelo Kretã Kaingang, Marçal Guarani, Xicão Xucuru, Galdino Pataxó e Aldo Macuxi. Também aliados como Pe. Rodolfo Lukenbein, Ir. Vicente Cañas, Ir. Cleuza Coelho tombaram ao lado dos índios.
Os últimos relatórios de violência publicados pelo Cimi registram um crescente e assustador número de assassinatos de indígenas. Em 2006 foram 57 e em 2007 passaram para 92.
Tudo indica que os massacres indígenas na Amazônia acontecem até nos dias atuais. São muitas a informações e denúncias no MPF de massacres de índios em situação de isolamento e risco com o avanço do agronegócio no norte do Mato Grosso, sul do Amazonas e Rondônia.
Existe por isso uma fragilidade muito grande nas ações governamentais para cumprir a determinações constitucionais da garantia e proteção dos bens indígenas. Antes que esses direitos saiam do papel já existe uma forte articulação de forças políticas, particularmente aquelas que representam o agronegócio, para impor um retrocesso.
II – O processo de surgimento das organizações indígenas.
A década de 70 marca o início de uma reação articulada dos povos indígenas encorajada pelas Assembléias Indígenas regionais e nacionais apoiadas pelo Cimi.
Nessa época, nos diversos países da região amazônica, o processo de penetração do sistema capitalista, é estimulado e apoiado pelos projetos desenvolvimentistas. No Brasil isso se deu com políticas que estimulavam a ocupação da Amazônia, através da construção de estradas, hidrelétricas, instalações militares que resultaram em extrema violência contra os povos indígenas.
O debate nas Assembléias revelou para as lideranças indígenas que seus povos enfrentavam problemas muito semelhantes, como a invasão e ocupação de suas terras, a violência e o preconceito, estimulados pela ação ou omissão das autoridades.
É nesse contexto que os povos indígenas articularam seu grito de resistência contra a invasão e saque da terra e dos recursos naturais. Começaram assim a surgir formas novas de organização indígena, diferentes das organizações tradicionais de cada povo.
Essas organizações indígenas, ainda em pequeno número, na década de 1980, tinham um caráter marcadamente político sem muita preocupação com formalidades institucionais. Buscavam o apoio da sociedade brasileira e da comunidade internacional para as suas reivindicações perante os órgãos governamentais que tinham como eixo central a recuperação e garantia de suas terras.
A luta pela terra, eixo mobilizador, favoreceu a unidade do movimento indígena que trazia no seu bojo a vontade expressa dos povos indígenas de assumirem o papel de sujeitos históricos, confrontando-se com um Estado tutelar que os considerava “categorias transitórias”.
O movimento indígena, com o apoio de entidades e setores importantes da sociedade brasileira, alcançou memoráveis conquistas constitucionais em 1988. Estas conquistas animaram a bases indígenas que foram construindo diferentes instrumentos de luta para assegurar esses direitos. As organizações indígenas, seja por povos, regiões, atividades (professores, agentes de saúde, estudantes…), gênero, organizações de mulheres, por funções sociais (organização de caciques), multiplicaram-se rapidamente, estimuladas também pelo crescente acesso a recursos financeiros da cooperação internacional e do governo brasileiro.
III – A dinâmica do processo organizativo regional e nacional.
As principais organizações indígenas locais e regionais surgem no processo de luta pela demarcação e garantia das terras, com particularidades próprias em função de distintos processos históricos e culturais, mas identificadas por objetivos similares que tem em comum a afirmação e conquista de direitos. Gradativamente pautam os temas da saúde, educação e economia com a perspectiva de assegurar políticas públicas específicas e diferenciadas. Em termos mais amplos, buscam uma relação de autonomia com o Estado, baseada no respeito à diversidade étnica e cultural.
Na Amazônia destacamos o Conselho Indígena de Roraima, CIR, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, FOIRN e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, COIAB.
O CIR nasce com a concepção de que uma organização indígena deve ser fruto e expressão da vontade das comunidades. Depois de muitas reuniões, encontros e assembléias de avaliação das experiências de luta, num processo que dura mais de 10 anos, são criados Conselhos Regionais em 1980. Esses conselhos têm o papel de coordenar ações conjuntas das comunidades para a recuperação das terras indígenas, associadas a iniciativas econômicas. Em 1987 a organização indígena alcança a abrangência da região do estado de Roraima, estruturando sua sede
A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN foi criada em
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira foi fundada em 1989. Nasce das expectativas dos povos e organizações indígenas da região de construírem um instrumento próprio, com uma ação mais abrangente, que pudesse fortalecer suas lutas por terra, saúde, educação na perspectiva da afirmação de seus projetos de vida. Animados com as conquistas alcançadas na Constituição em 1988 buscam, através do exercício do protagonismo político, uma relação de autonomia com o Estado e a sociedade.
Estão filiadas a Coiab associações, locais, federações regionais, organizações de mulheres, professores e estudantes indígenas num total de 75 organizações. Organiza-se em 31 regiões abrangendo os 09 estados da Amazônia Legal, onde vivem aproximadamente 180 povos indígenas. Tem sede em Manaus e conta com uma representação permanente em Brasília.
Nas regiões Leste e Nordeste a luta indígena associa fortemente o tema da terra com o reconhecimento étnico. Ela é marcada por ações de retomada de terras do latifúndio em poder dos coronéis, que reagem com muita violência. Muitas lideranças indígenas são mortas, entre as quais Xicão Xucuru, conhecido e respeitado pela sua determinação e força na luta pela recuperação do território do seu povo e no apoio as demais lutas indígenas da região. Muitos povos nesse processo reassumem suas identidades indígenas.
Em 1991 os povos indígenas dessa região, na sua primeira Assembléia Geral, para fortalecer a articulação entre eles, criam a Comissão Leste/Nordeste. Na IV Assembléia Geral, em 1995 decidem pela criação da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, APOINME.
A APOINME constitui-se assim, num instrumento permanente de articulação dos 48 povos indígenas hoje conhecidos na região. Sua sede permaneceu por 10 anos na terra indígena Xucuru Kariri em Palmeira dos Índios/AL, sendo então transferida para Olinda Pernambuco. É integrada por 08 microrregiões. Além do apoio a luta dos povos da região pela recuperação dos territórios, pelo reconhecimento étnico e por autonomia, busca junto ao Estado políticas públicas específicas de saúde, educação e sustentabilidade.
Nas outras regiões do país as organizações indígenas não chegam a ter a relevância política daquelas criadas nas regiões Norte, Leste e Nordeste. Têm buscado responder aos principais desafios, sobretudo, a partir das formas tradicionais de organização. Assim, por exemplo, o povo Guarani na região sul do país, recriou a Aty Guassu, tradicionalmente conhecida como Grande Reunião. A ATY Guassu acontece anualmente. Ela é compreendida pelas lideranças Guarani como “um passo para nos organizar melhor, ter mais força e esperança para enfrentar todos aqueles que querem continuar dominando e oprimindo nosso povo. Povo que se encontra confinado em pedacinhos de terra”.(Aty Guassu realizada em dezembro de 2004 na aldeia Amabai no Mato Grosso do Sul).
Em termos nacionais, no contexto das Assembléias Indígenas realizadas na década de 1970, lideranças indígenas começam a defender a criação de uma organização indígena, com a abrangência do país. Assim, em 1980 é criada a União das Nações Indígenas. As tentativas de regionalizar sua atuação não alcançaram os resultados esperados. Ela se mantém a margem do processo organizativo que se dá em termos locais e regionais. Sem conseguir fincar os pés na realidade concreta dos diferentes povos acaba sendo deslegitimada como instância interlocutora dos povos indígenas do país.
A importância da articulação indígena nacional volta com muita força após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que atribuiu a responsabilidade principal à União na demarcação das terras e na proteção dos bens indígenas, delegando inclusive ao Congresso Nacional questões relevantes como a autorização para a mineração e construção de hidrelétricas, e a elaboração de uma Lei Complementar dispondo sobre o relevante interesse público da União nas terras indígenas. Muitas coisas em relação à questão indígena passaram a ser decididas em Brasília/DF.
Em 1992 acontece uma grande mobilização indígena em Brasília, para discutir propostas para o novo Estatuto dos Povos Indígenas em debate no Congresso Nacional e para decidir sobre a forma de articulação do movimento indígena nacional. A opção foi pela criação do Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil, CAPOIB composto por representantes dos povos e organizações indígenas, com o papel de facilitar o intercâmbio das experiências de luta.
A Marcha e Conferência Indígena realizada em 2000, com a participação de 3.600 lideranças de 180 povos indígenas revelou a amplitude e complexidade do movimento indígena no Brasil e a dificuldade de consensos estratégicos. O CAPOIB sem condições de responder a essa realidade, não se firmou como interlocutor do movimento indígena. A partir daí a articulação do movimento indígena, em termos nacionais passou a se dar, através da Comissão pós-Conferência e das organizações regionais COIAB, da região Amazônica, e a APOINME (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), do nordeste e leste do país.
Em 2004 acontece uma importante articulação entre as principais organizações indígenas e indigenistas do país que criam o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, FDDI, com o objetivo de afirmar e defender de forma articulada os direitos indígenas assegurados na Constituição Federal e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT. A estratégia foi motivada pela intensificação das ameaças aos direitos desses povos com o espaço que forças políticas anti-indígenas foram ganhando no governo Lula ligadas ao agronegócio e a setores militares.
O FDDI passa a servir de suporte as mobilizações do Abril indígena, em especial do Acampamento Terra Livre, na Esplanada dos Ministérios, que acontece anualmente desde 2004, com a participação entre 500 e mil lideranças indígenas. É nesse espaço que o movimento indígena do país se encontra para unificar propostas e cobrar respostas do Executivo, Legislativo e Judiciário.
No Acampamento Terra Livre de
IV- As políticas das organizações indígenas
A década de 1980 até meados dos anos 90 mostra um movimento indígena ativo e vigoroso em que as organizações próprias criadas até então lhe emprestavam força política e capacidade de mobilização. As lutas principais eram por terra/território, respeito à diversidade étnica e cultural e pelo estabelecimento de relações autônomas com o Estado norteadora das políticas públicas e consequentemente o fim da dominação neocolonial, sobretudo na sua forma mais evidente, materializada no Instituto da Tutela.
O movimento indígena, também influenciado pelo olhar de seus aliados, ao contrário de outros setores populares, apostou todas as suas forças no processo constituinte iniciado em 1987. Mesmo sabendo que as forças ali representadas lhes eram desfavoráveis, iniciou uma intensa articulação junto à sociedade brasileira, a comunidade internacional e em particular diretamente com cada um dos parlamentares constituintes. As conquistas constitucionais promoveram uma verdadeira revolução nas bases jurídicas da relação do Estado brasileiro com os povos indígenas.
Com os dispositivos da Constituição Federal de 1988 os povos indígenas obtêm o reconhecimento de suas organizações sociais, deixam de ser considerados como categorias transitórias, lhes são garantidas a cidadania plena enquanto sujeitos coletivos e o direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas. Vale destacar que terras tradicionalmente ocupadas são definidas constitucionalmente como territórios na medida em que contemplam aquelas habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as atividades produtivas, as imprescindíveis para a proteção dos recursos ambientais para o bem estar e as necessárias a reprodução física e cultural e acordo com os usos, costumes e tradições dos povos indígenas.
Uma característica que marca o movimento indígena dessa época apoiado pelas organizações indígenas é o entendimento de que, na consolidação de direitos, os maiores resultados se alcançavam através de ações concretas de mobilização das comunidades indígenas e que pouco se poderia esperar da vontade própria do governo. Assim a luta pela terra ficou marcada pelas iniciativas de retomada, autodemarcação e controle territorial. Foi com esse entendimento que as comunidades indígenas da Raposa Serra do Sol, (terra indígena atualmente em destaque na imprensa devido à reação violenta dos invasores que aguardam julgamento de ação pelo Supremo Tribunal Federal – STF), recuperaram 95% de suas terras, antes que a mesma fosse demarcada pelo governo. Essa estratégia ainda vem sendo adotada pelas comunidades indígenas, sobretudo no Nordeste e no Mato Grosso do Sul.
Destaca-se também nesse período a capacidade dos povos indígenas, a partir das experiências de suas comunidades e organizações e entidades aliadas formularem propostas de políticas públicas. Na Saúde construíram uma proposta baseada
Experiência semelhante aconteceu com a educação escolar indígena, cujos pressupostos foram construídos com a participação destacada do movimento dos professores indígenas, principalmente da Amazônia. Aumentaram as instalações escolares (em sua maioria muito precárias), o número de alunos, bem como de professores indígenas contratados, mas sua essência não mudou. A gestão compartilhada entre a União, estados e municípios não funciona, o controle social está relegado a um 2º plano e a escola continua sinalizando muito fortemente para as crianças e jovens de que o futuro está fora das comunidades e das terras indígenas. Existem exceções que podem ser verificadas também na atenção a saúde, que no entanto, não justificam a continuidade dos atuais modelos de gestão.
O processo de redemocratização do país, após 20 anos de ditadura militar, e as mudanças constitucionais favoreceram a institucionalização das organizações indígenas. A partir da década de 1990 elas proliferam rapidamente, impulsionadas pelas demandas concretas das comunidades indígenas não satisfeitas pelo Estado e também pela facilidade de acessar recursos da cooperação internacional, disponibilizados devido à crescente sensibilidade no exterior em relação aos temas ambiental e indígena na Amazônia. As próprias organizações indígenas, na medida em que lutavam pela participação nos espaços governamentais foram captando recursos públicos em volumes cada vez maiores.
É possível afirmar que as organizações que surgiram na década de 1980 e inícios de 1990 tinham um caráter eminentemente político. Na sua constituição, por isso, normalmente tinha uma participação maior das comunidades indígenas o que lhes conferia uma legitimidade mais ampla. Várias dessas, posteriormente, se viram na contingência de assumir um papel, que em tese seria de responsabilidade do Estado, na solução dos problemas das comunidades indígenas.
Muitas das organizações mais recentes já nasceram influenciadas pela possibilidade de acessar recursos e passaram também a assumir um papel político, mas sem a legitimidade que as primeiras haviam adquirido junto às comunidades.
Com a implantação dos DSEIs, em 1998, muitas organizações indígenas da Amazônia assinaram convênios com o governo federal se responsabilizando pela atenção básica de saúde nas aldeias. Essa opção feita por essas organizações se deu pela incapacidade demonstrada ao longo dos anos pelos governos de prestar um serviço qualificado de saúde indígena. No discurso das lideranças indígenas também aparecia muito fortemente, frente ao preconceito que sofriam, o desejo de demonstrar a toda sociedade, a capacidade de gerir projetos. As dificuldades foram grandes. As organizações indígenas não haviam sido criadas para essa finalidade e nem estavam aparelhadas para assumir esse compromisso. Além disso ficaram a mercê de uma burocracia estatal que a todo o momento sustava o repasse dos recursos financeiros acarretando a desassistência nas aldeias. Essa situação interessava particularmente o governo, pois com as organizações indígenas ocupadas, diminuía a força do movimento indígena na cobrança dos direitos territoriais e por mudanças na política indigenista. Muitas comunidades, inclusive, começaram a estabelecer com essas organizações indígenas a mesma relação que mantinham com os órgãos públicos. Sem poder contar com uma assessoria administrativa adequada que lhes fora prometida pela FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e tendo que arcar com um enorme passivo trabalhista algumas importantes organizações se viram obrigadas a fechar as portas como a UNI – Acre (União dos Povos Indígenas do Acre), CUNPIR (Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Norte de Mato Grosso e Sul do Amazonas), UNI – Tefé e OPIMP (Organização dos povos indígenas do médio rio Purus).
A ocupação de espaços em instâncias e políticas governamentais e o acesso crescente a recursos públicos começaram a produzir entendimentos distintos sobre as estratégias que o movimento indígena deveria adotar, gerando tensões internas com repercussões sobre as entidades de apoio e a política de alianças.
As divergências ficaram mais evidentes no debate sobre o significado dos 500 anos da chegada dos europeus as terras brasileiras durante a Conferência Indígena de 2000 realizada
Gersen Luciano, liderança indígena, militante histórico com engajamento na FOIRN (Federação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), membro do Conselho Nacional de Educação, CNE e atualmente atuando no escritório da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) em Brasília analisando a relação com o Estado observa “certa subserviência inconsciente das organizações indígenas. Inconsciente porque não é intencional na mediada em que as lideranças não abdicaram de sua luta histórica e autônoma, mas, de boa-fé se envolveram de mais com a agenda e com as promessas sedutoras do Estado e dos governos que foram vistas como possibilidades de atender as demandas e pressões das comunidades indígenas das quais depende a liderança indígena. Aliás, esse mundo de Estado é muito complexo para a cabeça das lideranças indígenas. É necessário, pois, densa capacidade política às lideranças indígenas para perceberam os limites da relação com o Estado”.
O envolvimento das organizações indígenas com a administração de numerosos e, por vezes, volumosos projetos criou uma importante demanda de atividades técnicas gerenciais que levaram a um distanciamento das comunidades. Isso produziu como reflexo a priorização de embates políticos nos espaços institucionais em detrimento da mobilização das bases. É importante, no entanto, ressalvar a relevância do gerenciamento autônomo de projetos da parte das organizações na luta política pela garantia dos direitos coletivos dos povos indígenas. A complexidade está na administração de projetos com recursos públicos, assumindo responsabilidades governamentais, sendo geridos de acordo com o arcabouço jurídico burocrático do Estado, estranho às concepções indígenas.
O movimento indígena, assim como o movimento popular mais amplo, também não ficou imune as políticas neoliberais desmobilizadoras que provocaram a particularização das lutas com a pulverização de iniciativas organizativas.
V – Algumas considerações sobre o papel das entidades de apoio.
Historicamente as entidades de apoio assumiram um papel importante na sensibilização da sociedade em relação à problemática indígena. Com o entendimento de que os maiores problemas dos povos indígenas provinham da sociedade ocidental – relações de dominação, expropriação dos territórios indígenas, violência, preconceito e doenças – buscava-se, através da denúncia e com informações sobre as culturas, a adesão da opinião pública para ações em defesa da vida dos povos indígenas. Essa estratégia produziu bons resultados, entre os quais o engavetamento do projeto governamental de emancipação compulsória dos índios que tinha a intenção de liberar suas terras para as frentes econômicas. Muitas entidades de apoio foram criadas (CPIs Comissões Pró-Índio e ANAIs, Associações de Apoio ao Índio), para atuar no âmbito da sociedade. Posteriormente o apoio da opinião pública teve um peso importante para as vitórias indígenas no processo constituinte.
O Cimi, Conselho Indigenista Missionário foi uma das poucas entidades de apoio que nasceram com uma forte presença nas áreas indígenas, ao mesmo tempo em que promovia a divulgação da causa indígena através da imprensa, e junto a igrejas e escolas. Seu apoio as assembléias inter-povos, orientado para fortalecimento do protagonismo indígena, está na origem de muitas organizações indígenas.
Com o fortalecimento das organizações indígenas, até meados da década de 1990, houve uma relação muito próxima destas com as entidades de apoio, no processo de articulação e formação política nas comunidades, na ocupação dos espaços na sociedade e na interlocução com as instâncias oficiais. A partir desse momento é possível perceber uma mudança, sobretudo na Amazônia, onde muitas organizações, buscam um distanciamento maior em relação às entidades de apoio. Esse fato pode ser creditado a uma necessidade legítima das organizações indígenas de se afirmarem e firmarem como protagonistas da interlocução com o Estado e a sociedade, principalmente frente ao Cimi, com o qual a relação era mais próxima e que por isso era acusado frequentemente de manipulação por setores que queriam influir nos rumos políticos do movimento indígena ou tinham interesses econômicos dentro das terras indígenas. Nesse contexto, as organizações indígenas ampliam consideravelmente seus parceiros no apoio a financiamentos de projetos, inclusive de órgão governamentais. Segue-se um período de certa crise nas relações onde ganha relevância o debate sobre o papel das entidades de apoio. Esse debate, cujo ápice se dá na Conferência Indígena de 2000, é marcado por visões políticas distintas dentro do movimento indígena e entre as entidades de apoio.
Uma reaproximação se dá já no governo Lula, em 2004, diante da ameaça aos direitos indígenas articulada no interior do governo e no Congresso Nacional, sobretudo pelas forças políticas ligadas ao agronegócio. A partir do FDDI, as organizações indígenas e indigenistas históricas conseguem se articular em torno de uma agenda comum que inclui o Abril Indígena, o Conselho Nacional de Política Indigenista e o acompanhamento dos projetos de lei no Congresso Nacional envolvendo os direitos indígenas.
VI- Algumas conquistas expressivas do movimento indígena.
1. A questão indígena ganha visibilidade. Os povos indígenas condenados pelo Estado Brasileiro a desaparecerem enquanto tais, até o final do século XX, reaparecem com muita força no cenário brasileiro e internacional, afirmando suas identidades e culturas. À medida que as organizações indígenas se firmam, passam a ocupar significativos espaços na mídia, nas escolas, nas universidades, nas organizações da sociedade civil para levar ao conhecimento da opinião pública a realidade sócio-cultural e a luta pelos direitos de seus povos. Somam-se a isso os esforços das entidades de apoio para se contraporem as informações equivocadas e preconceituosas que continuam sendo reproduzidos pela mídia e nas escolas.
2. A revolução nos marcos legais da relação com o Estado. Como já referido anteriormente as conquistas Constitucionais asseguram os direitos territoriais, acabam com lógica integracionista e resgatam a perspectiva dos povos indígenas, enquanto sujeitos históricos. Essas conquistas são consolidadas pela Convenção 169 da OIT, assumida pelo Brasil em 2004 e pela Declaração dos Direitos dos Povos Indígena da ONU, de setembro de 2007.
3. A população indígena volta a crescer e povos e comunidades reassumem a identidade étnica. Estimativas oficiais, no início da década de 1970, atestam que a população indígena vinha decrescendo e não ultrapassava 100.000 pessoas. A tendência do extermínio total foi revertida. O levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, em 2000, identifica uma população indígena de 734.131 pessoas, das quais 350.834 localizadas nas terras indígenas e 383.297 nas cidades. Mesmo tendo revelado esse expressivo aumento populacional, percebe-se, a partir de dados de outras fontes como organizações indígenas, entidades de apoio e mesmo órgãos públicos como a Funasa, que censo apresenta graves lacunas na identificação da população indígena que vive no interior e é possível supor, sem a menor dúvida, de que os índios que vivem nas cidades são bem mais do que aqueles que assumiram sua identidade indígena perante os recenseadores do IBGE.
O aumento expressivo da população indígena, entre outros fatores, pode ser atribuído a reconquista de importantes espaços territoriais, e aos povos e comunidades indígenas que reassumem sua identidade étnica. Esse fenômeno que se verifica com mais intensidade no Nordeste, acontece em todas as regiões do país.
3. As conquistas territoriais. As terras indígenas estão estimadas hoje em mais de 12% do território nacional. Chegam a somar 23% das terras da Amazônia brasileira. Terras indígenas importantes tiveram o procedimento demarcatório concluído como a Yanomami/AM/RR, Waimiri Atroari/AM/RR, Alto e Médio Rio Negro/AM, Javari/AM, Evare I e II/AM, Alto Rio Purus/AC, Waiãpi/AP, Caramuru/BA, Krikati/MA, Xacriabá/MG, Kadiwéu/MS, Parque do Xingu/MT, Kayapó/PA, Menkragnoti/PA, Parque Indígena do Tumucumaqui/PA/AP, Potiguara/PB, Xucuru/PE, Pacas Novas/RO, Guarita/RS, Ibirama/SC, Parque do Araguaia/TO entre muitas outras.
Mesmo assim, ainda existe um grande caminho pela frente como demonstra o quadro abaixo:
Situação Geral das Terras Indígenas no Brasil | Quantidade | % |
· Registradas (Demarcação concluída e registrada no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca e/ou no Serviço do Patrimônio da União) | 343 | 40,40 |
· Homologadas (com decreto do Presidente da República e aguardando registro) | 49 | 5,77 |
· Declaradas (com Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, e aguardando demarcação) | 52 | 6,12 |
Fonte: Guenter Francisco Loebens (Cimi Regional Norte I) |