19/05/2008

Os índios e a Carta

 


Dalmo de Abreu Dallari – Jurista, professor da Faculdade de Direito da USP


 


  


19 de Maio de 2008 – A Constituição é a lei mais alta do País e todos devem obedecê-la na íntegra, não se admitindo que alguém diga que só respeita aqueles dispositivos constitucionais que considera bons e convenientes. Isso é mais do que óbvio, mas por incrível que pareça algumas autoridades públicas brasileiras estão adotando atitudes claramente inconstitucionais e pretendem justificar-se com a alegação de que o respeito às disposições constitucionais é inconveniente para a economia, é contrário ao federalismo ou põe em risco a segurança nacional.


 


Tudo isso vem ocorrendo no estado de Roraima, onde um grupo de ricos e audaciosos representantes do agronegócio invadiu áreas que eles sabiam que eram terras indígenas e para manter a invasão usam grupos armados, praticando violências contra pessoas e ameaçando destruir pontes e obstruir estradas públicas. Dando apoio aos praticantes das ilegalidades, o governador do estado tenta justificar a desobediência à Constituição, alegando que a extensão das terras indígenas é muito grande e isso é prejudicial aos interesses do Estado, sendo, por esse motivo, contrário ao federalismo. Antes de tudo, é oportuno lembrar ao governador que os índios já ocupavam aquelas terras quando foi criado o estado de Roraima e isso era público e notório.


 


Quanto à extensão das terras indígenas, existe um aspecto de ordem jurídica fundamental. Nos termos do artigo 231 da Constituição, são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. E pelo parágrafo primeiro desse mesmo artigo “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.


 


Isso é o que dispõe a Constituição, que em nenhum dispositivo faz qualquer referência ao tamanho da área nem dá permissão para o isolamento das aldeias e a exclusão da área existente entre elas, pois a ocupação de toda a área é indispensável para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem estar e à satisfação das necessidades essenciais dos índios e à sua reprodução física e cultural. A ocupação das terras é contínua e a Constituição assegura aos índios o direito sobre toda a área ocupada. Falar em demarcação descontínua é fraude que agride a Constituição.


 


A par disso, é surpreendente que entre os apoiadores dos invasores das áreas indígenas apareçam altos oficiais das Forças Armadas. As áreas ocupadas pelos índios pertencem ao patrimônio da União, são áreas públicas federais, e isso já deveria ser suficiente para que eles se posicionassem contra os invasores. O pretexto de que a ocupação indígena põe em risco a soberania nacional é evidentemente falso e inconsistente.


 


Quem conhece a história brasileira sabe que desde o nascimento do Brasil como Estado soberano os indígenas ocupam áreas de fronteira, não havendo um único caso em que os índios tenham entregado parte dessas áreas a estrangeiros, havendo, isto sim, o registro histórico da preservação dessas áreas como território brasileiro graças aos índios. E quem conhece a realidade atual sabe que quem está entregando riquezas brasileiras existentes nessas áreas a estrangeiros são madeireiras, mineradoras e agentes de multinacionais da indústria farmacêutica, não os índios.


 


Em conclusão, onde existe uma grande família indígena, com várias aldeias próximas umas das outras, a ocupação indígena é contínua, abrangendo toda a área situada entre as aldeias. E por disposição expressa da Constituição os índios têm direito à unidade das terras, que devem ter demarcação continuada, pois esse é o fato e dele decorrem os direitos constitucionais dos índios.


 


(Artigo publicado originalmente pela Gazeta Mercantil)


 

Fonte: Dalmo Dallari
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