12/05/2008

Indígenas presos não recebem apoio para visitas e assistência jurídica adequada


Quantos índios estão nas penitenciárias e delegacias no Mato Grosso do Sul? Diante das informações de que são muitos e que a situação em que estão é de abandono e desassistêcia total, a Universidade Católica Dom Bosco e o Centro de Trabalho Indigenista, com apoio de instituições internacionais, se propuseram a responder está questão e a trazer informações ao conhecimento da sociedade, do governo e de ativistas dos direitos humanos.


 


A pesquisa realizada no ano de 2006 revelou mais uma faceta oculta e cruel do que poderíamos denominar de um genocídio silencioso contra o povo Kaiowá Guarani praticado por autores pretensamente não identificáveis. Alguns de seus dados da pesquisa revelam exatamente a lógica do confinamento. Os 103 processos levantados apontam que 51% dos casos de prisão incidem sobre as três terras indígenas Kaiowá mais populosas (Dourados, Amambai e Caarapó), onde cerca de 23 mil indígenas vivem em 9.499 hectares, conforme ressaltou o professor Antonio Brand em sua exposição.


 


Não por coincidência, os dados prisionais refletem o aumento da violência nos últimos anos, particularmente entre os Kaiowá Guarani, conforme o relatório de violência 2006/2007 divulgado pelo Cimi, no mês passado.


 


Para apresentação dos resultados foi realizado um seminário na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), no último dia 8, e um ato público realizado na Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul, no dia seguinte.


 


Os presos vão mal



Os dados vindos à tona com a pesquisa dão visibilidade ao que se presumia: um monte de índios abandonados nas prisões sem o mínimo de assistência jurídica e muitas vezes sem receber visitas de familiares. A burocracia dos documentos exigidos e a falta de recursos para o deslocamento dificultam a visita de familiares dos detentos. Em um dos casos destacados, um dos detentos estava havia cinco anos na prisão sem receber uma visita sequer de familiares.


 


Maucir Pauletti, coordenador do curso de direito na UCDB e participante da pesquisa, destacou que a maioria dos presos indígenas vive em total abandono. “São duplamente abandonados pela família, muitas vezes sem condições de superar os obstáculos da burocracia e falta de recurso, e a burocracia oficial, que teria obrigação legal de assistir os índios presos”. Citou a situação de vários indígenas presos que sequer conseguem as questões básicas, como material de higiene pessoal e roupa para o frio, por exemplo. Além disso, existe a precarização das defesas, quer pelo despreparo e desconhecimento, quer pela omissão. Por exemplo, a Fundação Nacional do Índio (Funai), que tem obrigação de assistir os índios, cita uma portaria para se eximir dessa responsabilidade.


 


A pesquisa revela que dos 103 processos analisados apenas 23 tiveram o acompanhamento da Funai. Revelou ainda que nas aldeias visitadas, as violências e o número de índios presos triplicaram no ano de 2007.


 


Foi constatado, conforme expositores, que na questão penal os índios também são descriminados. Não são cumpridas as recomendações básicas da legislação nacional e internacional pertinente à questão.


 


O bom preso Guarani e as mudanças necessárias



“Eu gostaria que aqui na delegacia de Caarapó tivesse só índio. Eles não dão trabalho. São muito tranqüilos…” Assim se expressou o diretor da delegacia, aos integrantes do levantamento dos índios presos no Mato Grosso do Sul. Essa afirmação revela as contradições em que hoje se encontram os Kaiowá Guarani, nos seus dois tipos de prisão: “A multidão de presos nos confinamentos territoriais” e os presos atrás das grades, por infrações graves ou não, que estão nos presídios da região.


 


Os confinamentos se tornaram um vulcão de violência, com a ausência de estrutura organizacional do povo que seja capaz do promover a harmonia necessária para a convivência em paz, conforme a cultura, usos e costumes do povo. O Antropólogo Levi Marques, integrante da equipe da pesquisa, expôs as razões que seriam as causas principais desse quadro “a questão territorial (não demarcação dos tekoha – terras tradicionais) e questão organizacional, em virtude da fragmentação social está gerando um certo vazio de organização da harmonia, a partir das famílias extensas, da parentela. São cada vez menos e com menores as possibilidades de êxito, dos  promotores do equilíbrio, da harmonia social e coletiva, que são os velhos, os sábios.”


 


O professor do curso de direito da UCDB, Lamartine Ribeiro ressaltou a importância da legislação existente e da tendência atual que mostra que é possível a coexistência de sistemas jurídicos diversos num mesmo Estado. Ressaltou os avanços contidos na Declaração 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Para Ribeiro os sistemas jurídicos positivos de cada país têm que respeitar os costumes próprios de cada povo, que é o direito consuetudinário. Terminou sua colocação com uma frase do líder Paiaré, Kayapó, “A lei é uma invenção. Se a lei não protege o direito dos índios, o branco que invente outra lei”.


 


Não dá pra não fazer nada


Nas exposições dos diversos aspectos levantados pela pesquisa ficou evidenciado que a realidade de grande número de índios enchendo as cadeias dos brancos é um grande desafio que se põem hoje para os povos indígenas da região, para o Estado e para a sociedade. Não é possível ficar omisso ou quieto diante da violência crescente e do aumento proporcional de índios presos. “Para cada índio assassinado nas aldeias, dois ou três índios vão para a cadeia”, afirma o assessor Jurídico do Cimi na região, Rogério Batalha.


 


Representantes do Cimi chamaram atenção para a necessidade de situar a questão dos índios presos no processo mais amplo de “descolonização das relações do Estado e da Justiça com os povos indígenas”. E isso passa primeiramente pelo reconhecimento da territorialidade e da autonomia desses povos em suas terras. É a partir daí que também se poderá vislumbrar um novo patamar de percepção e prática, com relação aos ilícitos, crimes e formas próprias de cada povo de responder a essa realidade.


 


No final do seminário e do ato na Assembléia Legislativa, ficou evidenciado a necessidade de se fazer algo a curto prazo com relação aos índios que estão nas prisões, e pensar numa série de ações, que vão desde o conhecimento dos direitos indígenas pelos operadores de direito, até a observância da legislação nacional e internacional nas diversas instâncias da justiça e na aplicação das penas.


 


Trabalho semelhante também está sendo feito pela Universidade de Brasília, por solicitação do Ministério Público Federal, que sentiu a necessidade de uma compreensão mais ampla e profunda da questão, principalmente diante da crescente criminalização das lideranças e do movimento indígena e das “prisões políticas”.


Por isso os participantes do seminário “Situação dos Detentos Indígenas no Mato Grosso do Sul” julgaram importante dar visibilidade política a essa realidade e estimular ações concretas de enfrentar e propor saídas que façam justiça aos povos que tem sido vítimas seculares da opressão, genocídio e discriminação.


 


O deputado estadual, Pedro Kemp, ao final do Ato Público, ressaltou a importância de dar visibilidade a esse problema, convocando a todos para que estejamos articulados e unidos para defender a imediata execução do Termo de Ajustamento de Conduta que prevê a identificação de 36 terras Kaiowá Guarani. “Vamos ter um período difícil. Querem impedir de todas as formas do reconhecimento da terra dos índios”.


 


Uma reflexão de Boaventura de Souza Santos nos ajuda na compreensão dessa realidade dentro do desafio da construção de novas relações e novos modelos de sociedade dentro de Estados Plurinacionais. “Temos direito de ser iguais quando a diferença não inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. O princípio da igualdade nos obriga a políticas de redistribuição de riquezas. Mas, ao mesmo tempo, o princípio da diferença nos obriga a ter políticas de reconhecimento e aceitação do outro. É complicado, pois precisa ser um processo paralelo. Não podemos reconhecer a identidade dos indígenas e, ao mesmo tempo, tirar suas terras e riquezas naturais.. Acredito que a questão indígena é uma das lutas mais emancipatórias do continente americano, que nos vai convocar a pensar a autodeterminação de uma nova forma.” (Boaventura de Souza Santos – abril 2008).


 


Egon Heck


Cristiano Navarro


Cimi MS


 


 


 

Fonte: Cimi - MS
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