Ameaça à soberania é argumento de ‘má fé’
Em entrevista, Egon Heck, coordenador do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) no Mato Grosso do Sul, faz alertas em relação à violência praticada por empresas donas de grandes propriedades contra os povos indígenas
Gabriel Brito e Valéria Nader
Correio da Cidadania
Em face das recentes disputas entre índios e arrozeiros invasores pelas terras de Raposa Serra do Sol, em Roraima, o Correio da Cidadania entrevistou Egon Heck, coordenador do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) no Mato Grosso do Sul, para tentar esclarecer alguns fatores que cercam a questão. Para Egon, que desqualifica os argumentos de que a soberania nacional estaria ameaçada, os índios têm total e histórico direito à terra reivindicada, e sua luta serve de exemplo para todo o povo brasileiro. Além disso, também faz alertas em relação à violência praticada por empresas donas de grandes propriedades contra os povos indígenas, destacando que os arrozeiros não estão preocupados em colaborar com a economia da região, e sim com interesses econômicos privados.
Qual sua opinião sobre a demarcação contínua?
Egon Heck: Com relação à Raposa Serra do Sol, tenho um sentimento claro de que é um direito dos povos brasileiros que foram invadidos, tiveram suas terras tomadas. Temos respaldo na Convenção 169 da OIT, na declaração dos direitos dos povos indígenas, E na própria Constituição. Com todos esses fatores, não restam dúvidas de que as terras pertencem aos povos Makuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepang, Patamona, enfim, todos os povos que lá habitam.
O que você pensa dos argumentos, essencialmente defendidos pelo Exército, de que a soberania do país estaria ameaçada com a demarcação contínua, especialmente em uma área de fronteira?
Eu creio serem de má fé, ou algum tipo de informação tendenciosa. É absurdo, sob o aspecto sociológico e político, que a demarcação da terra indígena possa ser uma ameaça à soberania do país. Tanto é absurdo que, por se tratarem de terras indígenas, são propriedade da União. Isso significa que são áreas duplamente protegidas, que trazem mais segurança ao país. Aliás, propriedades privadas de grandes multinacionais deixam que se estabeleçam nessas terras grupos de fachada que tentam defender essa situação, como os próprios arrozeiros, que são pontas de lança dessas argumentações falaciosas de que a terra indígena colocaria em risco nossa soberania e prejudicaria a economia. A soberania do país há muito tem estado em risco, mas não por causa dos índios, pelo contrário. Na luta pela soberania do país, os próprios Makuxi têm ajudado, com argumentação jurídica de que aquela terra, enquanto terra do Brasil, é de direito pleno dos índios. Toda essa questão desmonta de maneira cabal qualquer tipo de argumentação, que foi colocada de má fé no meu ponto de vista.
Há alguma legitimidade nos interesses defendidos pelos arrozeiros?
Eles, a rigor, são umas seis pessoas da área, representando talvez 60 políticos e grupos econômicos, que por sua vez representariam uns 600 tipos de interesses econômicos nacionais e internacionais. Todos esses, juntos, fecham o cerco em relação aos índios, afrontando até a Constituição do país. Na verdade, os arrozeiros encarnam esse pequeno grupo de interesses econômicos e políticos.
Existem ainda as argumentações de que Raposa Serra do Sol estaria inviabilizando a economia do estado.
Fala-se isso também. É outra mentira deslavada, pois ela representa 7% do território do estado apenas e, mais do que nunca, os próprios Makuxi têm demonstrado capacidade de se colocar a serviço da própria economia regional. E tanto é mentirosa essa argumentação que os próprios arrozeiros não cumprem a Constituição e tampouco produzem para o país. Portanto, é totalmente mascarada a argumentação de que querem permanecer ali para fortalecer a economia do estado. Poderiam fazer isso em várias outras áreas, que inclusive foram colocadas à disposição deles.
E qual a sua avaliação sobre a posição do governo, do Cimi e da Funai em toda a questão?
Tenho a impressão de que há uma convergência nas posições do ministro da Justiça, Tarso Genro, do presidente Lula e do presidente da Funai, no sentido de desmascarar as argumentações que tentam criar um clima de banditismo na região, afrontando as próprias leis do país. Isso, evidentemente, é colocado com muita maestria e fundamentação pelas mais distintas posições que vejo em vários órgãos e claro que essa argumentação é sólida, baseada nas leis e na Constituição do país. Tenho acompanhado toda essa trajetória dura, na qual algumas organizações lutam há mais de 30 anos, sofrendo atentados, assassinatos, e tenho acompanhado principalmente o processo organizativo desse povo nas grandes assembléias que realizam. É um processo muito sério na defesa e luta por seus direitos, o que é uma demonstração – não só em Roraima, mas em todo o país – da importância que têm todos aqueles cujos direitos originários e constitucionais devem ser respeitados. E só o serão na medida em que a população tiver consciência e também lutar por isso. Pode-se dizer que se trata de um exemplo heróico para o nosso país, de um povo que durante 30 anos lutou, teve diversas lideranças assassinadas, casas queimadas, prisões, mas que ainda está aí, de cabeça erguida e altivo, exigindo seus direitos.
Pensando na Funai mais especificamente, como você avalia o papel que ela tem desempenhado nos últimos dois, três anos?
Acho que a última presidência da Funai tem demonstrado uma disposição que não se via anteriormente. Uma clareza política na luta pelos direitos indígenas, que significa também que, dentro do estado, há interesse na questão. Apenas lamentamos que seu sucateamento histórico nos últimos anos não lhe dê força política suficiente para fazer o enfrentamento que deveria. Acredito que, do ponto de vista do discurso político, sem dúvida tem demonstrado uma clareza e coerência muito grandes. Porém, nos resultados, sua eficácia tem sido muito tímida.
Você acha que a situação pode acabar enveredando para confrontos graves?
Existem vários cenários possíveis. Espero que a irracionalidade não prevaleça nesse grupo que tenta tumultuar um processo tão claramente construtivo, conduzido em todos os níveis na legalidade, e que agressões tão vãs contra esse povo não ocorram, incluindo a tentativa de se criar um clima de terrorismo na região. Que isso não permaneça, porque creio que todas as apelações praticadas por eles, de arregimentar forças, pagar mercenários para brigar com os índios e incentivar um derramamento de sangue, são de uma covardia enorme. Isso tudo só mostra a falta de caráter e, efetivamente, de coerência e boas intenções dos arrozeiros.