07/03/2008

CNBB: Análise de Conjuntura – fevereiro 2008

 


Apresentação


A possibilidade de abalo econômico em consequência de uma recessão nos EUA, preocupa políticos e empresários do mundo inteiro. Peritos em finanças dedicam-se a interpretar os indicadores econômicos, tentando avaliar as dimensões da crise que se aproxima após cinco anos seguidos de bonança na economia mundial. No fundo, debate-se o lugar a ser ocupado pela Ásia (China e Índia) diante dos sinais de decadência do capitalismo estadunidense. Mas nem essa crise que se avizinha trouxe para a pauta dos poderosos a crítica à concepção produtivista do desenvolvimento. Esta é uma discussão colocada pelo movimento altermundista e que provoca divisões inclusive no campo da esquerda. Esse debate em torno à ideologia de Estado “mínimo”, o modelo produtivista e a busca de um modelo de desenvolvimento ecológico-social, é o eixo desta análise de conjuntura.


Esta análise aborda o cenário de crise econômica mundial e suas repercussões no Brasil, destacando as divergências nos Movimentos Sociais em relação ao governo Lula. Trata o tema da vida ameaçada no Brasil e na África, e conclui trazendo a atualidade do Congresso Nacional.


I . Crise econômica mundial? Sua repercussão no Brasil


O debate em Davos.


O Fórum Econômico Mundial reuniu, em janeiro, nos Alpes suíços 2.400 empresários e políticos, com sensível aumento do número de chineses e indianos. Tal como o Fórum Social, ele não é um lugar de decisão, mas de debate.


A crise dos subprimes (créditos imobiliários oferecidos a pessoas que não tinham como honrá-los) levantou a probabilidade de recessão econômica nos EUA. Pensava-se, inicialmente, que o custo dos subprimes não ultrapassaria uma centena de bilhões de dólares; mas agora já se sabe que ele chega à casa dos trilhões. Economistas e consultores financeiros mostram-se pessimistas, achando que a crise vai se estender ao mundo todo, enquanto os industriais continuam otimistas depois de anos de bons negócios. A alta no preço do minério de ferro é um claro sinal de otimismo.


A crise é mais que a dos subprimes. É a crise global do crédito, do financiamento da economia no seu conjunto. Isso a torna preocupante, porque o sistema financeiro mundial passou em poucos meses de um excesso de confiança para um excesso de desconfiança. Antes se emprestava dinheiro a qualquer preço; hoje não se empresta a ninguém. Um novo equilíbrio não será encontrado sem verdade e transparência.


A história do capitalismo mostra que a transição de um pólo para outro tem sido marcada por graves crises financeiras[1]. Talvez hoje esteja se configurando um mundo multipolar. Chineses e indianos são os mais otimistas. Outros países emergentes, como o Brasil, acham que seu crescimento será pouco afetado, porque os bancos dos paises ricos recorreram a fundos soberanos (reservas financeiras controladas por governos de grandes países exportadores que já acumulam de US$ 2,5 a 3 trilhões) para cobrir suas perdas. Aliás, os bancos são as entidades que melhor conseguem privatizar ganhos e socializar prejuízos.


Ingredientes da crise


Tal como a serpente cujos ovos transparentes permitem ao observador prever o que virá pela frente, a crise econômica mundial que está prestes a eclodir tem como ingredientes dois fatos bem visíveis:


1. Os EUA são uma superpotência cujos gastos de investimento e consumo são custeados pela própria moeda nacional, aceita e procurada como meio internacional de troca. Até agora, a emissão de moeda para bancar déficits e dívidas tem apresentado baixo risco;


2. Os fluxos financeiros, cada vez mais mundializados, são deixados ao sabor do mercado, sem efetivo controle ou coordenação de alguma agência internacional. Hoje em dia esses fluxos financeiros são várias vezes maiores que os reais, lidando com títulos baseados na expectativa de que se possam saldar com segurança outros papéis apoiados agora em mais camadas de títulos[2].


A crise de 1929 se deveu em grande parte a oscilações de crédito e liquidez. Depois da euforia – e precisamente em reação a ela, quando se revelou insustentável – veio o pessimismo no qual o “crédito” (no sentido relacional humano e econômico) se reduziu drasticamente. A experiência ensinou então aos governos, que era necessária uma instituição (chame-se Banco Central, Superintendência da Moeda e Crédito, Sistema da Reserva Federal) que controlasse a capacidade dos bancos de criarem moeda ao concederem empréstimos e financiarem investimento e consumo. Hoje, porém, as grandes instituições financeiras usam seu poder para impedir qualquer projeto de instância reguladora[3]. Isto faz parte (inegociável) da ideologia do “Estado mínimo”, que louva orçamentos modestos e déficits nulos.


Mas, ao contrário do que prega sua ideologia, o governo Bush aumentou a intervenção econômica do Estado, para defender emprego e renda. Seu orçamento de US$ 3,1 trilhões carrega um déficit de US$ 410 bilhões (13,2% do orçamento, 2,9% do PIB). Já o Brasil pode fornecer a receita de como estabelecer superávits primários e superar as metas…


De fato o novo Estado não é “mínimo”, pois socorre bancos em dificuldades, assumindo suas perdas. Nem poderia o poder público agir de outra forma, porque o sistema financeiro está conectado com todo o conjunto da economia e a ruína de um banco não favorece os concorrentes, mas coloca-os também em risco e isso atinge a economia real.


Esta interligação é cada vez mais mundial. A ela se soma (em grande parte como conseqüência sua) a interligação global de etapas de produção. Cada vez mais, o processo de produção de bens se integra internacionalmente. Isto quer dizer que são cada vez menores as chances de um país escapar das conseqüências da crise voltando-se “para dentro”. Noutros momentos de crise internacional, a drástica redução das exportações agrícolas possibilitava o crescimento da pequena indústria e da agropecuária para o mercado interno. Mas hoje é pouco provável que ocorra algo semelhante. Este processo era possível porque a economia brasileira era compartimentada, sem relação orgânica entre a agroexportação e a lavoura de subsistência que se podia expandir marginalmente para atender o mercado interno. Hoje, a economia se integrou. Marcada pela desigualdade e pela subordinação setorial e regional, mas integrada.


A isso se soma o dólar sub-avaliado, que dificulta o crescimento da indústria nacional. Pode-se imaginar que a crise force uma alteração neste parâmetro. Mas é bom não esquecer: o “preço” do dólar em reais depende da entrada e saída de capitais e estes têm forte teor especulativo: enquanto as taxas de juros continuarem nas alturas, não faltarão dólares para engordar as reservas internacionais do Brasil, hoje tão comemoradas. O governo e a mídia noticiam com ênfase que os haveres externos do Brasil superam em US$4 bilhões a dívida externa pública e privada. A notícia é boa, embora não seja “nunca antes neste país”: ao terminar a II guerra mundial, o superávit era de US$2,4 bilhões, e se desfez em dois anos e meio, numa enxurrada de importações. Convém ter presente que boa parte da dívida pública externa se transmutou em dívida pública interna com juros muito superiores[4].


As contas públicas e o Estado “mínimo”.


A derrota do governo na prorrogação da CPMF, analisada na análise de conjuntura de dezembro, deu ensejo a uma ampla ofensiva da grande mídia, apoiada pelo DEM e PSDB, contra os gastos públicos. Eles batem forte na política adotada por Lula para reaparelhar o Estado que vinha sendo desmontado por Collor e FHC. As atuais denúncias envolvendo os “cartões corporativos” são apenas uma nova escaramuça no sentido de enfraquecer essa política dita “estatizante”. Conquanto possa ter havido abusos, desvios e malversação de recursos públicos, o que está em questão não é a quantidade de recursos gastos por meio dos cartões (0,004% do total dos gastos da União, segundo Carta Capital), mas a sua própria existência como forma eficiente e transparente de funcionamento da máquina pública, o que vai contra a ideologia do Estado “mínimo”.


A liberdade, entendida como direito de “usar e abusar” (ius utendi et abutendi), fundamenta a sociedade de mercado. A livre circulação do capital continua sendo a grande utopia: um Estado sem impostos, com o mínimo de funcionários, sem projeto e sem partidos políticos, onde os governantes se revezem por eleições em forma de espetáculo e o cidadão seja identificado com o consumidor. O Estado poderia ser reduzido à função de zelador da moeda, da propriedade privada e dos contratos, terceirizando ou privatizando todas as outras funções. Se isso é utopia, o esforço vai então no sentido de debilitar ao máximo o Estado que organiza cidadãos e cidadãs, reconhecendo-os como sujeitos de direitos inalienáveis. Pouco importa se os maiores escândalos financeiros são perpetrados por empresas privadas, com sua insaciável busca de lucro para atender a demanda de dividendos dos acionistas e investidores. Menos Estado e mais mercado, esta a receita neoliberal para a felicidade geral da Nação[5].


Um exame das contas públicas, contudo, mostra que a maior despesa do Estado é com seus credores – os mesmos que clamam por um Estado “mínimo”. Nada menos que R$400 bilhões devem ser gastos este ano para financiar a dívida pública federal. Algo como R$140 a 150 bilhões em juros, e o restante no resgate de títulos a vencer. É evidente que o Tesouro não dispõe de quantia tão vultuosa (apesar de todo esforço para contenção de gastos, o governo não consegue economizar mais de R$80 bilhões para satisfazer os credores) e precisa recorrer a constantes leilões de títulos públicos, tomando novos empréstimos para pagar antigas dívidas. É isso que os credores mais querem no mundo: um devedor eternamente endividado mas pontual no pagamento dos juros. Manter o devedor – no caso, o Estado brasileiro – sob pressão num jogo de ameaças (fuga de capitais) e prêmios (receber a qualificação de investiment grade), é a tática das agências de investimento e dos bancos, cujos lucros não cessam de crescer.


Acossado pelos credores, o Estado brasileiro poderia enfrentá-los e auditar essa dívida, cuja origem nem sempre é transparente. Mas isso exigiria uma força política que Lula avalia não dispor. Prefere, então, não questionar a dívida e pagá-la de modo o mais suave possível, isto é, reduzindo sua proporção sobre o PIB. Neste sentido, seu êxito é inquestionável. Ao assumir o governo, a dívida pública ultrapassava 60% do PIB, hoje, está se aproximando de 40%, ou seja, cresce menos do que a economia brasileira no seu conjunto. Isso nos leva a questionar sobre as possibilidades desse crescimento em 2008 e sua natureza.


Crescimento lento e gradual, sim; mas seguro?


Tudo indica, neste início de 2008, que teremos crescimento econômico. Modesto, mas claro. O sub-setor industrial que mais cresceu em 2007 foi o de máquinas e equipamentos (19,5%). Isso sinaliza um crescimento mais seguro e continuado. O risco da descontinuidade do crescimento vem de que o dólar continua sub-avaliado em termos reais de comparação com o real, o que estimula desproporcionalmente as importações.


O emprego com carteira assinada tem o melhor resultado desde 1992. O crescimento é maior em serviços (16%) que em geral tendem a exigir qualificação escolar acima da média de nossa população economicamente ativa. Em compensação, de fato, cresceu também bastante bem (14%) a construção civil, que por enquanto ainda absorve mão de obra menos qualificada.


A massa total de salários cresceu mais que o PIB (sobretudo em ocupações qualificadas e bem remuneradas). A renda do trabalho das classes A e B liderou este crescimento. Todos os que auferem rendimento do trabalho melhoraram um pouco, mas os do meio melhoraram mais e os de cima melhoraram muito.


Esse crescimento do PIB segue o modelo produtivista-consumista e incorpora suas tecnologias. Ele favorece o grande capital, mas reduz o desenvolvimento ao aumento da produção e da produtividade, sem considerar a vida humana nem a saúde do Planeta. Ao adotá-lo, o governo Lula foi duramente criticado por setores da sociedade organizada que diverge de sua posição em relação ao plebiscito sobre a privatização da Vale do Rio Doce, as hidrelétricas do Rio Madeira, ao megaprojeto do rio São Francisco, a produção maciça de agrocombustíveis e aos transgênicos trazidos pela Monsanto, Syngenta e Cargill.


Dois modelos de desenvolvimento.


Para o Brasil, o crescimento econômico como fim em si mesmo requer prioridade ao agronegócio, à exportação (principalemente de commodities), à industrialização liderada pelo grande capital, ao investimento sem cálculos de custos sociais e ambientais, enfim, ao produtivismo-consumismo.


Outro modelo é o projeto de desenvolvimento endógeno (fundado nos potenciais, forças, recursos naturais, materiais e humanos, e capitais brasileiros), tendo por fim a soberania, a solidariedade e a sustentabilidade. Ou seja, um desenvolvimento econômico e tecnológico a serviço do desenvolvimento humano e social. Ele assume o princípio da subsidiariedade e valoriza o poder local, não se envergonha de propor como prioridade a agricultura familiar e a agroecologia, a segurança alimentar antes da exportação, a industrialização planejada segundo as condições e necessidades regionais, o consumo sóbrio, consciente e solidário de bens, serviços e energia, e a auditoria da dívida pública para negociar o cancelamento da que tiver sido feita ou paga de forma ilegal ou ilegítima. Neste modelo, é a sociedade trabalhadora o seu protagonista principal, desde que o Estado lhe ofereça condições adequadas para empoderar-se para este papel. Isso implica, entre outras mudanças, a democratização da propriedade, a revalorização do trabalho, do saber e da criatividade, e um sistema educativo capaz de dinamizar a dimensão libertadora da cultura[6].


A opção do governo Lula, expressa no Plano de Aceleração do Crescimento, reflete-se não só no seu distanciamento de setores de esquerda dos movimentos sociais, como nas ameaças à vida que hoje se manifestam no desmatamento da Amazônia e no aumento das mortes violentas no Brasil. É o que veremos mais a diante.


II . Movimentos Sociais na atual conjuntura nacional.


O jejum de Dom Luiz Cappio, no final do ano passado, contra o megaprojeto de transposição das águas do Rio São Francisco, mobilizou um significativo número de movimentos sociais, como também provocou debates e tomadas de posição de intelectuais de diferentes áreas, inclusive a teologia. Talvez a principal novidade tenha sido a discussão sobre o lugar da fé cristã num Estado laico. Enquanto um lado criticou a concepção de cristandade e até um possível “fundamentalismo” quando são ignoradas as necessárias mediações da Fé para a participação dos cristãos na construção de um país democrático, o outro lado reafirmou o imperativo ético da vida dos pobres como critério de julgamento de qualquer projeto político. Pela primeira vez em muitos anos, esse debate envolvendo setores da “esquerda católica” aconteceu de modo aberto e público, deixando clara a diferença de concepções.


Não se pode ainda afirmar que aquela mobilização contra o projeto de transposição tenha representado um reascenso das forças sociais; mas com certeza, ela colocou em pauta o debate sobre o modelo de desenvolvimento que vem norteando as políticas do atual governo. Além da posição de direita, cuja ideologia impele a combater tudo que possa favorecer o reaparelhamento do Estado e insiste no modelo neoliberal de Estado “mínimo”, podemos distinguir hoje, no cenário político nacional, duas grandes tendências.


Uma tendência, que vem perdendo força, mas ainda tem grande apelo na massa popular, é aquela que vê no governo Lula o grande mérito do realismo: não é o governo dos sonhos, mas é um bom governo, dado o contexto estrutural e global desfavorável a um projeto de mudanças radicais. A outra tendência, conquanto reconheça os avanços do governo Lula em comparação com seu antecessor, denuncia a sua opção por um desenvolvimento reduzido ao crescimento econômico, não questionando a subordinação dos capitais nacionais às cadeias produtivas e aos mercados dominados por capitais transnacionais e a subordinação do capital produtivo à hegemonia do setor financeiro-bancário.


Ao mesmo tempo em que esses debates dividem os movimentos sociais entre os que apóiam o governo Lula e os que dele se afastam definitivamente, eles ajudam a construir um consenso interno em cada setor, que assim ganha maior capacidade de articulação ao unificar uma agenda dispersa. Não estaria aqui a possibilidade de retomada das lutas e movimentos sociais?


            Neste sentido vale registrar a bandeira de luta em torno das questões energéticas, assumida pela Assembléia Popular que atualmente congrega mais de 50 entidades e se encontra em crescente processo de enraizamento nos Estados. Com um significativo potencial de educação política nas bases, ela se dispõe a articular as forças sociais em torno à construção de um projeto popular para o País. Neste ano, ela propõe à população discutir os problemas locais e municipais relacionados ao modelo energético vigente, que é predador, injusto e excludente.


            Colocam-se grandes desafios aos movimentos sociais, cujas forças são dispersas: organizações voltadas para as realidades do campo, outras voltadas para as lutas urbanas por moradia, emprego, segurança e o movimento sindical dando sinais de acomodação diante de alguns direitos trabalhistas garantidos na Constituição. Urge o fortalecimento de um projeto e um espaço comum que oriente a ação conjunta dos movimentos sociais nas bases, para além das leituras e práticas ideológicas de alguns dirigentes, entidades e centrais sindicais.


III . A vida ameaçada: Brasil e África


A embate entre a concepção produtivista-consumista do desenvolvimento e a concepção ecológico-social está longe de ser um debate acadêmico ou desligado da realidade concreta. Ao contrário, seus efeitos práticos, na realidade vivida e morrida, são cada dia mais nítidos. Tomamos aqui três dessas realidades.


A vida da Amazônia


A Amazônia é um fator de vida para toda a humanidade. Reconhecida como fator de equilíbrio essencial para todo o planeta, tem a ver com a qualidade da vida global da Terra. O texto-base da CF de 2007, ao denunciar o processo de devastação em curso, apontava situações e ações que agridem a vida, os povos e o meio-ambiente da Amazônia. Infelizmente, ele não perdeu sua pertinência, pois observou-se um aumento do desmatamento da Amazônia nos meses de novembro e dezembro de 2007. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais aponta o desmate atípico de quase 2.000 km² nesses dois meses, em um total de mais de 3.000 km² entre agosto e dezembro, seja um pouco mais do dobro que o ano anterior. Na verdade, a área real desmatada nesse período de 2007, pode chegar a 7.000 km².


A ministra do Meio Ambiente aponta a expansão da pecuária e da soja como o principal fator de aumento do desmatamento. Exigir um compromisso dos grandes produtores rurais para reverter essa expansão é inócuo, pois o presidente da Comissão de Meio Ambiente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil nega que o desmatamento tenha aumentado. Entretanto, a balança comercial do agronegócio fechou o ano de 2007 com o saldo recorde de quase US$ 50 bilhões, devido, sobretudo, ao aumento do preço internacional da soja e da carne bovina. E há uma correlação estatística direta entre os preços do boi e da soja, e o  ritmo de desmatamento na Amazônia.


            O agronegócio sempre se beneficiou das benesses dos governos, inclusive do atual. Estima-se o passivo do setor agrícola em R$130 bilhões e está em discussão a suspensão dos pagamentos das parcelas da dívida agrícola que se referem a financiamentos contraídos pelos produtores em 2004 com vencimento em janeiro, fevereiro e março deste ano. Ninguém acredita nas ameaças de corte de financiamento aos empresários rurais. O agronegócio só beneficia a minoria de trabalhadores qualificados e prestadores de serviço, pois a lógica do mais forte obriga os menos preparados e mais pobres a aceitarem regimes de trabalho análogos à escravidão. Somente no ano passado, foram liberadas 5.877 pessoas. Enquanto isso, a reforma agrária está praticamente paralisada, com o governo acuado pela “bancada ruralista”.


A riquíssima “sociobiodiversidade” da Amazônia continua ameaçada por muitas formas de devastação, ficando submetida aos interesses de pessoas e grupos ávidos de lucros que não se importam com a sua sobrevivência. A CF-2008 retoma a defesa da vida na mesma linha, denunciando a lógica que tudo submete ao valor econômico e instrumentaliza a própria vida em função do lucro ou da satisfação de interesses individuais. O desenvolvimento produtivista-consumista aumenta a riqueza geral, mas não atinge as estruturas de injustiça que geram violência e exclusão.


A vida humana


Muitas são as ameaças à vida, mas entre elas destaca-se, por sua intensidade, a violência endêmica e o crime organizado, que ceifam numerosas vidas (44,6 mil homicídios em 2006, grande parte em plena juventude). Um milhão de mortes violentas nos trinta últimos anos deveria questionar a lógica do mercado e sua cultura de “levar vantagem”.


Apesar dos êxitos de programas sociais como o Bolsa-Família, o que está havendo não são mudanças de ordem estrutural, mas a consolidação das antigas estruturas geradoras de desigualdade. Doenças ligadas à pobreza, como diarréia, desnutrição, malária e tuberculose matam 33,5 mil pessoas por ano (dado de 2005), mais que o total de vítimas de acidentes de trânsito, (30 mil). Outras 49 mil pessoas morrem sem assistência médica. É preciso considerar que a pobreza e a desnutrição são causas de morte, pois fragilizam o organismo e o expõem a maiores riscos, como no caso de pneumonia.


Impressiona também o número de vidas privadas de nascer bem e serem acolhidas no banquete da vida. É grande o número de mulheres atendidas pelo SUS em decorrência de complicações relacionadas ao aborto (250 mil internações em 2006). Na maioria dos casos, trata-se de um recurso desesperado, movido pelo instinto de sobrevivência, que não depende de justificativas como o pretenso “direito ao aborto”. Não é fora de propósito dizer que, na medida em que a razão abortista associa o direito à propriedade do corpo à propriedade da terra, da água e dos bens de produção, ela é regida pela mesma razão instrumentalista da concepção produtivista-consumista em vigor na sociedade. Esta é a ideologia mais difundida no mundo.


Ideologia que vem acompanhada pela força das armas, sempre a serviço dos mais fortes. Triste exemplo dessa prepotência armada é o assassinato de 86 indígenas no ano de 2007, 53 dos quais no Mato Grosso do Sul, devido ao seu confinamento, principalmente os Guarani. Continuam sendo mortos lideres indígenas que se opõem aos interesses de grandes fazendeiros. O grupo Guarani que luta para retomar sua terra (Kurussu Ambá) perdeu, em 2007 a rezadeira Xurete Lopes, de 70 anos, e Ortiz Lopes, assassinado na porta de seu barraco, segundo testemunhas, a mando de um fazendeiro.


Animados pelo Programa de Aceleração do Crescimento os adversários dos povos indígenas reforçaram suas ações no sentido de barrar novas conquistas indígenas e derrotá-los nos três poderes da República. Não faltam exemplos: as ações judiciais contra a homologação de territórios já demarcados; a retomada de projetos de lei que favoreçam a mineração em terras indígenas; a criminalização de lideranças indígenas no nordeste, o precário atendimento à saúde indígena, e a deterioração dos rios e matas de territórios indígenas devido à exploração agropecuária ou mineral em terras vizinhas. É preocupante o que ocorre com a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja homologação está sofrendo uma série de contestações no Supremo Tribunal Federal, enquanto arrozeiros invasores fazem declarações e ações provocativas e setores militares não acatam a ordem de proceder à desintrusão do território homologado em abril de 2005.


É preocupante, também, a situação dos remanescentes de quilombos, cujos direitos constitucionais estão ameaçados pela cobiça dos grandes proprietários de terra.


A África na tormenta


A África sofre nestes últimos meses, pelo menos três trágicos conflitos que matam centenas de pessoas, deslocam populações inteiras, destroem a economia e desestabilizam o país. Não por acaso, os conflitos mais agudos coincidem com áreas ricas em minérios ou petróleo.


Chade. A ofensiva, no começo de fevereiro, de tropas rebeldes sobre Ndjamena, capital do país, aconteceu na véspera do envio da força de paz de 3.700 soldados da União Européia, no Sudão, no Chade e na República Centroafricana, após intensa preparação. O apoio do Sudão à rebelião contra o governo do Chade é claro. Seu objetivo foi de impedir a chegada de contingentes internacionais na região e assim manter seu apoio às milícias árabes nômades que expulsam as populações sedentárias do Darfur para se apropriar das terras. Seu governo já foi condenado pela ONU, mas recusa a presença de tropas de paz nas fronteiras dos três países e faz tudo para que sejam enviados apenas soldados da União Africana, cuja presença em outros conflitos se revelou inútil. Diante da ofensiva contra Ndjamena muita gente fugiu para os Camarões. A situação da região se torna ainda mais instável porque o Chade produz petróleo e a França tem importantes interesses nesta região.


Darfur. A guerra já faz 4 anos, com mais de 200 mil mortos e 2 milhões de deslocados. Hordas de milicianos árabes montados em cavalos e camelos chegam às aldeias para matar homens, violar mulheres (muitas são levadas como escravas sexuais) e roubar tudo o que encontram. Grupos de Direitos Humanos e governos ocidentais tentam, em vão, conseguir que a ONU qualifique a atuação do governo de Cartum de genocídio, o que implicaria sanções imediatas. Agências de ajuda denunciam que há um milhão de crianças em risco de desnutrição e que muitas morrem nos campos de refugiados, cercados pelas milícias.


Ilha de prosperidade e estabilidade na conturbada África do Leste, o Quênia parece ser levado por uma onda de auto-destruição. Mais de mil pessoas morreram no mês que seguiu as eleições de dezembro de 2007, cujo resultado foi contestado pela oposição que denuncia uma fraude massiva. As violências se enraízam nas rivalidades inter-étnicas, herdadas do período colonial. Os Kalenjin saqueiam e queimam os bens dos Kikuyu – etnia do presidente Kibaki – que se declarou reeleito. Apesar duma boa taxa de crescimento (6,1% em 2006), há crescentes desigualdades sociais e econômicas entre os dois grupos. Uma grande maioria dos quenianos continua vivendo na pobreza e miséria; 10% deles possuem a metade das riquezas do país.


Também na África, sob o manto de conflitos étnicos ou tribais, o direito de “usar e abusar” fundamenta o individualismo moderno e reduz o mundo a um conjunto de “coisas” a serem usadas. Enquanto essa visão prevalecer, a humanidade continuará cortando o galho da vida planetária sobre o qual está sentada. “Escolhe, pois, a vida” é escolher a vida e um futuro esperançoso para si e seus descendentes, e não a morte que reside nas “coisas” a que foram reduzidos os seres humanos, o Planeta e todo seu complexo sistema de vida. Das nossas escolhas depende a vida humana e o futuro da vida na Terra, nossa casa comum.


40 anos depois da Populorium progressio, caberia inverter a célebre expressão de Paulo VI e proclamar que “a paz é o novo nome do desenvolvimento”.


IV . Notícias do Congresso Nacional


Os trabalhos legislativos de 2008 no Congresso Nacional tiveram início com um clima tenso. Os festejos de abertura do Parlamento foram ofuscados pelas notícias do mau uso dos cartões corporativos, o que deu lugar à CPI para apurar esse tipo de gasto do dinheiro público.


A mensagem do Presidente Lula, levada pela Ministra-chefe da Casa Civil, destaca a vontade de priorizar neste ano as áreas de segurança, educação e saúde. Já os Presidentes do Senado e o da Câmara insistem na necessidade de novas regras para as Medidas Provisórias, sobretudo por causa da paralisação das votações ordinárias e do esvaziamento da função própria ao Legislativo como criador das leis. Por outro lado, o próprio Presidente do Congresso reconhece o Parlamento tem ficado aquém das expectativas nacionais, como aliás é confirmado pelas pesquisas de opinião.


Assim mesmo, o Congresso até agora se concentrou demais na criação da CPI dos Cartões Corporativos, enquanto há mais de 800 projetos na fila para serem votados: 667 na Câmara e 225 no Senado. Entre as prioridades das duas casas para este ano estão: o fim do voto secreto, regulamentação das MPs, apreciação dos vetos da Presidência da República, reforma política, reforma tributária… Mas, na Câmara, as MPs estão trancando a pauta e as Comissões ainda não foram instaladas. No Senado, continuam as mesmas comissões do ano passado. Não devemos portanto ser muito otimistas em relação ao trabalho legislativo ordinário para o ano de 2008.


Frentes Parlamentares promovem encontro em defesa da vida


A Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto e a Frente Parlamentar Contra a Legalização do Aborto promoveram no dia 20.02 o 1º Encontro Brasileiro de Legisladores e Governantes pela Vida. O evento reuniu vereadores, prefeitos, governadores, deputados e senadores de todas as regiões do País, além de parlamentares estrangeiros. Entre outros temas, foram discutidas: políticas internacionais de controle da população mundial e os desafios da legalização do aborto. O objetivo do evento era estabelecer uma articulação nacional e a mobilização das lideranças políticas pela defesa da vida desde a concepção. A iniciativa é resultado do 1º Encontro Latino-Americano de Legisladores e Governantes pela Vida, ocorrido em Santiago do Chile em novembro passado, e culminará no 1º Encontro Mundial de Legisladores e Governantes pela Vida, em Madri, neste ano. O segundo, previsto para 2009, deverá ser realizado no Brasil. No fim do encontro, foi aprovado um manifesto a ser entregue ao presidente da República e aos presidentes da Câmara e do Senado. Foi eleita uma comissão nacional para coordenar o encontro de 2009. O Presidente da Frente em Defesa da Vida – contra o aborto defendeu a criação de uma CPI para investigar o comércio clandestino de aborto e sua prática no Brasil.


TV Pública acirra polêmica na Câmara


A Medida Provisória da TV Brasil foi destaque da pauta na Câmara. Matéria polêmica, porque cria a Empresa Brasil de Comunicação, à qual está subordinada a TV Brasil, rede pública nascida da fusão da Radiobrás com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. O parecer do relator alterou substancialmente o texto original da Presidência da República, ao instituir nova fonte de receita para a TV e introduzir na programação limites mínimos para conteúdos regionais definidos como aqueles produzidos no estado, com a maior parte da equipe técnica e artística de residentes locais. O projeto foi aprovado na Câmara, na forma de projeto de lei, e agora vai para o Senado.


Suplentes de Senador


Várias Propostas de Emendas à Constituição sobre a questão dos suplentes de senadores estão na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Entre as idéias colocadas nas propostas está a de adotar o mesmo sistema de substituição da Câmara: o segundo mais votado assumiria o cargo na ausência ou afastamento do titular. Na situação atual, têm sido muitos os casos em que os suplentes a senador assumem a pasta sem ter recebido nenhum voto, o que fere o princípio da representatividade. Este tema tem sido integrado nas propostas de Reforma Política.


Cassações por corrupção eleitoral no país


Os candidatos dos mais de 5.500 municípios brasileiros, que irão às urnas em outubro próximo, têm que estar atentos à a Lei nº 9.840, de iniciativa popular. Desde que entrou em vigor, em 2000, o número de cassações por corrupção eleitoral no país subiu bastante. 623 políticos foram cassados: 508 prefeitos e vice-prefeitos, 84 vereadores, 8 deputados federais, 6 senadores e suplentes, 3 deputados estaduais ou distritais, e 2 governadores e seus vices.


Esses números se referem a políticos cassados por captação ilícita de sufrágio, condutas vedadas aos agentes públicos e abuso de poder, apurados através de representações, investigações judiciais eleitorais, recursos contra a diplomação e ações de impugnação de mandato eletivo. Levantamento apresentado pelo Movimento Contra a Corrupção Eleitoral, em outubro passado, mostra que os estados com maior número de políticos cassados foram Minas Gerais, Rio Grande do Norte e São Paulo. Segundo a Corregedoria Geral Eleitoral, ainda tramitam na Justiça Eleitoral 1.100 processos relativos às eleições de 2006.


Causa grande apreensão, porém, a decisão tomada pelo TSE na noite do dia 21 de fevereiro, que anula o processo de cassação movido contra o governador Luiz Henrique, de Santa Catarina, para que seja citado também o vice. Se essa tese vingar, atingirá outros processos judiciais, como o que envolve o governador Cássio Cunha Lima, da Paraíba e muitos prefeitos. O Movimento Contra a Corrupção Eleitoral está buscando meios de obter uma revisão dessa decisão no próprio TSE.


Para as eleições deste ano, o Movimento Contra a Corrupção Eleitoral lançou uma campanha para aumentar os comitês locais e levar a discussão do voto consciente para maior número de pessoas.


Segurança em compasso de espera


Um ano após o assassinato brutal do menino João Hélio Fernandes, e 21 meses após os atentados da principal facção criminosa de São Paulo, ainda não saíram do papel os dois pacotes de segurança pública propostos pelo Congresso. De acordo com parlamentares envolvidos na discussão, a quase totalidade dessas propostas continua engavetada. Das 35 proposições que compunham os dois pacotes, somente duas foram transformadas em lei. Uma delas é o Projeto de Lei 7225/2006 que classifica como falta disciplinar grave do presidiário e crime do agente penitenciário o uso de telefone celular em presídios. A outra medida que vingou foi o Projeto de Lei 6793/2006, de autoria do Executivo, que obriga os condenados por crime hediondo a cumprirem pena inicialmente em regime fechado, com o benefício de progressão de regime concedido só depois de cumprido 1/3 da pena. Outra proposta que, por força constitucional, terá de receber tratamento prioritário é a Medida Provisória 416/2008, que institui o Programa Bolsa-Formação para a qualificação profissional dos integrantes das polícias militar e civil, do corpo de bombeiros, peritos e agentes carcerários e penitenciários. A matéria está pronta para a apreciação do plenário.


Maioridade penal


A questão da redução da maioridade penal foi pautada no senado, mas não foi votada. A proposta divide radicalmente os parlamentares. As estatísticas mostram que a maioria dos crimes violentos do Brasil – mais de 98% – não envolvem a participação de menores de 18 anos. Então, o impacto real da redução da maioridade penal é baixíssimo. Também é um debate que esbarra em obstáculos jurídicos formais, atinentes à questão de ser ou não uma cláusula pétrea –insuscetível de mudança. Enfrentará também obstáculos políticos, porque é difícil reunir 3/5 num tema como esse.


Contribuíram para esta análise:


 Pe. Antonio Abreu SJ, Pe. Bernard Lestienne SJ e Pe. Thierry Linard SJ (membros do IBRADES), Ir.Delci Franzen, Paulo Maldos e Pe. Ernanne Pinheiro


 


Pedro A. Ribeiro de Oliveira


PUC-Minas e ISER-Assessoria






[1] Assim foi a transição de Amsterdã para Londres e daí para Nova York, como mostrou G. Arrighi em seu livro “O longo século XX.



[2] Os bancos negociam com títulos que se baseiam em seus previsíveis ganhos com operações de câmbio – supondo que as operações se façam com sucesso. Fácil intuir que esta expectativa é intrinsecamente irreal, no caso de se tentarem realmente saldar todos os papéis (pensar numa corrida de correntistas aos bancos).



[3] A chanceler Angela Merkel, tem insistido com seus pares do G8, na necessidade de tal instância controladora, até porque um governo nacional não tem como controlar nem sequer os fluxos que envolvem seu país. Se é assim na Alemanha, que será do Terceiro Mundo?



[4] É como pagar juros no cheque especial, para exibir saldo na caderneta de poupança.



[5] A idéia vem de um artigo de Emir Sader, publicado em Carta Maior.



[6] Esta distinção inspira-se em texto de Marcos Arruda, em carta ao autor.

Fonte: CNBB
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