Diante de desastres climáticos, Bolívia discute saber indígena
Em congresso realizado em La Paz, estudiosos questionam modo de vida ocidental; sociólogo aimará prega novo paradigma e põe em xeque conceitos como sustentabilidade, desenvolvimento, ecologia e até solidariedade
Texto e fotos de Mauricio Hashizume
La Paz – A reação do presidente Evo Morales às impiedosas enchentes que castigaram extensas áreas do território boliviano foi amplamente divulgada pela imprensa mundial. Evo prontamente ligou a recorrência de desastres meteorológicos aos cada vez mais intensos ao modo de vida, de produção e de consumo dos países ricos, fatores que contribuem sobremaneira com o aquecimento global. As mudanças climáticas estão entre as principais explicações para o agravamento do fenômeno “La Niña”, desequilíbrio caracterizado pelo esfriamento das águas superficiais do Oceano Pacífico e pelo conseqüente adensamento de chuvas no continente.
A convocação feita pelo governo da Bolívia para ampliar a discussão sobre as causas e as possíveis alternativas desses transtornos ambientais, no entanto, não foi noticia. Representantes indígenas – como Elías Quelca, do Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu [nomes originários de territórios aimarás] (Conamaq) -, membros de movimentos camponeses e sociais, acadêmicos e pesquisadores especialistas de diversos paises da América Latina e da Europa – entre eles, o português Boaventura de Sousa Santos – estão reunidos desde a ultima terça-feira (19) num hotel de luxo da capital boliviana para debater “A construção da sustentabilidade a partir da visão dos povos indígenas”.
Na abertura do evento, o vice-ministro de Biodiversidade, Recursos Florestais e Meio Ambiente, Juan Pablo Ramos, manifestou a intenção governamental de valorizar cada vez mais os conhecimentos tradicionais seculares em busca de uma “lógica diferente para enfrentar os desastres climáticos”. “A racionalidade econômica, o consumo e a depredação da natureza estão nos levando à debacle”, assinalou, sem antes citar o manejo hidráulico praticado pelas civilizações pré-colombianas como exemplo desses saberes perseguidos e desprezados pela cultura ocidental.
“Nunca tivemos um período tão devastador na historia do mundo como nos últimos 30, 40 anos. E nunca se falou tanto em salvar o mundo como neste mesmo período. Isso mostra que o ambientalismo também precisa se reavaliar”, destacou o geógrafo brasileiro Carlos Walter Porto-Goncalves, em exposição complementar no ato de inauguração do encontro.
Autor de um livro publicado recentemente sobre os impactos ambientais do programa neoliberal no mundo, Carlos Walter destacou ainda a ocorrência de dois outros fenômenos complementares: a expansão do agronegócio e de suas monoculturas – no contexto da chamada “Revolução Verde” – e o forte movimento de concentração nos espaços urbanos. Mesmo assim, lembra o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), apenas em 2007 a população das cidades ultrapassou a do campo, conforme dados da Organização das Nações Unidas (ONU). “E o mais impressionante é que 70% da população urbana vive na Ásia, na América Latina e na África”.
O geógrafo ratificou ainda o pensamento do pesquisador mexicano Enrique Leff, para quem “a crise ambiental é a manifestação da crise do conhecimento”. A divisão entre ciências naturais e ciências humanas, que marca a dicotomia entre o homem e a natureza, instituiu, segundo Carlos Walter, o paradigma “ego-lógico”. Na visão dele, essa dissociação não foi apenas conceitual e permitiu, na prática, a efetiva expulsão de indígenas e camponeses (e suas espiritualidades) do meio rural. Com essa dessacralização, prosseguiu o professor, consolidou-se o padrão do “homem como sujeito” e da “natureza como objeto”. “Desenvolvimento é exatamente isso”, definiu.
Contudo, a própria máquina a vapor, uma das “maravilhas” do mundo moderno, contém, de acordo com o geógrafo, a contradição da sociedade ocidental. O conhecimento humano sobre a utilização do carvão e do ferro não permitiu a produção de fato de nenhum desses recursos naturais e deixou claro os limites da concepção antropocêntrica. “A sociedade que acreditou ter se separado da natureza levou ao aquecimento global”, arrematou.
As Nações Unidas estimaram, em 2002, que 20% dos paises ricos consomem 86% dos recursos naturais do planeta. Para ele, não há como sustentar esse modelo de sociedade, mas outros tipos de conhecimentos continuam sendo cultivados em regiões que ficaram à margem desse processo.
A exposição do sociólogo e advogado aimará Fernando Huanacuni negou justamente o enfoque dos debates propostos pelo governo boliviano. Sustentabilidade, desenvolvimento, ecologia e até solidariedade fazem parte de uma lógica imposta pelo pensamento ocidental baseado no poder e na hierarquia, afirmou Fernando. “Solidadariedade supõe hierarquia. Aquele que tem mais condicões doa para o outro”.
Todos esses termos, acrescentou o sociólogo, estão calcados na idéia de homogeneidade, de uma só verdade, que desqualifica o outro. A aceitação desse entendimento linear e ascendente da história desautoriza completamente os conhecimentos tradicionais dos “avós” indígenas, emendou.
Ele propõe a adoção de uma lógica diferente com base na reciprocidade – paradigma comunitário – e na circularidade da história, em que os de antes e os de hoje sempre se encontram. “Na cosmovisão indígena, se um ganha, todos perdemos”, explicou. “Não há solidão no ayni [denominação dada as relações sociais e de vida nos ayllus]. A complementaridade é permanente. Se tudo vive, tudo está interconectado”.
O congresso “A construção da sustentabilidade a partir da visão dos povos indígenas”, que termina nesta quinta-feira (21), deve aprovar documentos básicos de princípios que servirão de base para o prosseguimento da formulação de propostas relacionadas ao tema.