Desaldeados Guarani, a face cruel do abandono
Por Suki Ozaki Pedro Alvarez Fernandes, Guarani-Kaiowá,, sobrevive com a esposa embaixo de um barraco de lona de 1,5 m X 2 m na comunidade de Santa Luzia, periferia do município de Juti há sete anos. Não têm filhos porque a mulher é operada, o que é uma rara exceção. Aos 32 anos aparenta ter facilmente 10 anos a mais. Os dentes da frente se foram e a água ardente lhe faz abrir um largo sorriso e esquecer a fome. Juntos, viveram os últimos 15 anos errando de um lugar para o outro. “Viemos de Caarapó, depois passamos um tempo em Dourados e quando nossa casa incendiou na aldeia Jarará, viemos para a casa de meu pai, na periferia”, explica Fernandes. Quando ele fala de “casa”, de fato, é o pedaço de terra ocupado por várias famílias indígenas no mesmo bairro pobre, pois a “casa” do pai é tão miserável quanto a sua. Não há água encanada e nem eletricidade. Por ironia de seu triste destino, Pedro Alvarez mora em uma rua de terra, que se chama Brasil. Segundo dados da Funai, vivem cerca de 70 mil índios em todo Mato Grosso do Sul, a segunda maior população do país depois do Amazonas. Desse total, estima-se que cerca de 40 mil sejam Guarani-Kaiowá, O que a Funai e nenhum outro órgão do governo computa, são o número dos indígenas desaldeados – que vivem às margens das rodovias e fundos de fazendas – e nem os favelados das periferias das cidades do Estado. Para essa população, composta principalmente por crianças e mulheres, a única ajuda é a cesta básica, fornecida pelo Governo Federal e entregue pela Funai. Muitas famílias nem isso têm, por não terem documentos… ainda não foram descobertos pelo Brasil. Em todos os acampamentos e nas favelas das cidades, a mesma história, os mesmos dramas, uma luta comum e um único sonho: retornar para o Tekoha (terra tradicional), que soa como a promessa da terra prometida, um lugar que possa lhes pertencer. Onde estão, não há paz. Na boca de um jovem Guarani-Kaiowá, que mora em um bairro sem asfalto e de aluguel em Naviraí, não houve escolhas. A única saída foi se “refugiar” (termo usado por ele) no Jardim Paraíso, pois quando a usina que o emprega recusou-se a buscar os indígenas na aldeia, muitos não tiveram outra escolha a não ser morar na favela e não no “paraíso”. Usinas. Fátima, uma bonita índia de 25 anos guarda por detrás de suas botas e longas roupas ainda uma certa elegância. Eram seis horas da tarde quando entrou em sua casa sem reboco e onde a mãe acampa no quintal em uma tenda de lona com seus irmãos. No total são sete crianças e nove adultos que Fátima sustenta a cada tonelada diária que corta de cana-de-açúcar. Para ela, também, não houve escolhas a não ser vender sua força por um salário que garantirá por algum tempo a sobrevivência dos seus, em troca de sua saúde. Atualmente, o preço da tonelada de cana gira em torno de R$ 14,00 a R$ 22,00 conforme as variações do mercado. O salário mínimo para a profissão é fixado em R$ 420,00 mensais. Enquanto isso, no dia 23 de novembro de 2007, o Governo do Estado firmou termo de compromisso para investimentos da ordem de R$ 17,3 bilhões no setor sucroalcooleiro, com a instalação de 43 indústrias nos próximos quatro anos. Segundo nota divulgada à imprensa, o engajamento desse porte não encontra “paralelo entre investimentos em cana-de-açúcar anunciados no mundo”. Para o Governado André Puccinelli, “passaremos ao status de exportadores de álcool e energia, seremos a locomotiva do progresso brasileiro e faremos este progresso juntos, o eldorado do centro-Oeste…”, declarou. O “eldorado” anunciado pelo chefe do governo Estadual, certamente não leva em consideração as precárias condições de trabalho dos cortadores indígenas e nordestinos que de fato são a “locomotiva” do progresso brasileiro e mais uma vez a distribuição dessa riqueza ficará restrita há um grupo seleto de investidores, na grande maioria de capital estrangeiro. Os impactos dessa nova onda econômica em Mato Grosso do Sul já se faz sentir nessas populações vulneráveis sem outras perspectivas de sobrevivência. Relatos de agenciadores que vendem bebidas alcoólicas aos indígenas e do consumo de drogas também dão o alerta das conseqüências negativas, além do aumento da prostituição nos arredores das usinas. Outro problema levantado é a ausência prolongada dos chefes de família dentro da estrutura familiar indígena. Muitos abandonam mulheres e filhos e as mães acabam por se tornar referência em todos os cadastros dos órgãos oficiais, “viúvas” como se autodenominam, responsáveis por prover, sozinhas, a subsistência de crianças de todas as idades. Mais violência. Outra conseqüência imediata, é a supervalorização das terras produtivas, que implicam em mais violência quando da tentativas de retomada dos tekoha. Fazendeiros estão contratando grande número de pistoleiros, sobretudo na região de fronteira, para expulsar os indígenas. Prova disse foram os assassinatos de duas lideranças de Kurussú Ambá, que acampam às margens da MS 289, em Coronel Sapucaia ano passado. Em janeiro de 2007, Julite Lopes, 73 anos, liderança espiritual foi baleada na primeira tentativa de retomada e Ortiz Lopes, 43 anos, líder do grupo, foi executado por pistoleiros em julho na presença da mulher e filhas. Ninguém chegou a ser preso. Em contra partida, quatro lideranças, caíram em uma emboscada montada por fazendeiros e foram presas e condenadas há 17 anos de prisão em setembro pelo suposto roubo de um caminhão e trator. A versão dos indígenas é que tinham sido emprestados pelo autor da denúncia. Enquanto tentam retornar ao tekoha, as condições de sobrevivência das cerca de 36 famílias que saíram da aldeia de Taquaperi e foram em busca de Kurusú Ambá são de extrema miséria. Muitas crianças e idosos sofrem com a fome e o frio nessa região inóspita do Estado. Graças a ajuda do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), doações de roupas e alimentos, por duas vezes amenizaram o sofrimento desse povo. Em novembro, mais quatro indígenas foram baleados em mais uma tentativa de retomada. Dessa vez não houve mortos e mais uma vez não foram presos os autores. Uma denúncia formal por lideranças de Kurusú Ambá foi feita na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de MS (AOB-MS) em Campo Grande em novembro após os atentados. Dos quatro líderes presentes, dois receberam ameaças de morte e são procurados pela polícia. Distante dali alguns quilômetros, no município de Amambaí, o clima de violência também é latente. Vários grupos, alguns rivais, formam uma população de cerca de mil e duzentas pessoas amontoados em pouco mais de 600 hectares. Ali também estão acampados grupos de 3 tekohá que já voltaram às suas terras e foram expulsos. Os barracos de lona espalham-se entre as casas populares sem reboco. Não há asfalto e para a grande maioria das famílias, não há água potável e nem luz elétrica. O líder Lico Nelson não vê a hora de tentar mais uma vez, retorna para o Tekoha Ka’ajari, nas proximidades da aldeia. Nas últimas três tentativas, a expulsão foi violenta e o líder Samuel Martins caiu à bala em 2002. Segundo Nelson, cerca de 600 pessoas desse tekoha sonham com a volta e com dias melhores. Dentro do barraco um pouco maior que dois metros de comprimento, quatro crianças são criadas pelos avós, pois os pais se encontram presos por homicídio. Um pouco mais longe, Odúlia Mendes, rezadeira(nhandesi) de seu grupo, está apreensiva. Entre árvores e o asfalto, muitos barracos de lona escondem sua família. Estão de passagem e sonham em retornar para o tekoha de Guaivyry, em Ponta Porã fronteira com o Paraguai. “Os espíritos me disseram que algo muito ruim vai acontecer nessa aldeia e quero sair com meu povo antes dessa tragédia”, relata com um olhar de preocupação. Como Nelson, as péssimas condições que enfrentam cotidianamente, precipitam a retomada do tekoha. Geralmente, os fazendeiros estão prontos e os recebem à bala e acontecem as tragédias. Quando voltam aos “confinamentos” como a aldeia de Amambai, são ainda mais miseráveis que quando saíram.