Caminhos do Oiapoque
A finalização das obras da BR-156 ameaça a vida e a tradição na terra indígena Uaçá, estado do Amapá. Na defesa de seus direitos, os povos indígenas exigem que sejam adotadas medidas para amenizar os impactos.
Clarissa Tavares, Editora do Porantim
A nuvem de poeira que invade a sala de seu Manoel Macial revela que ali, a poucos metros da porta de casa, passou um carro. Seu Manoel é morador e liderança antiga da aldeia Tukay que fica à margem da BR-156, no município de Oiapoque, estado do Amapá. Mudou-se com outras famílias para aquele lugar há mais de vinte anos quando foi aberta a estrada por dentro da terra indígena Uaçá. Dos 4cerca de 135 quilômetros da rodovia no município de Oiapoque, aproximadamente 80 atravessam ou margeiam a terra indígena Uaçá.
A BR-156 tem início na cidade de Laranjal do Jarí, oeste do Amapá (fronteira com o Pará), e se estende até o município de Oiapoque, no extremo norte do Brasil. São ao todo 804 quilômetros de estrada, dos quais cerca da metade estão asfaltados e o restante, que inclui a terra indígena, segue na piçarra.
Nos 40 quilômetros em que atravessa a terra Uaçá, a BR-156 contabiliza em sua margem oito comunidades indígenas dos povos Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur. A estrada separa a área onde vive a maior parte das populações tradicionais das nascentes dos rios Urucauá, Uaçá e Curipi – pertencentes à terra indígena – que são determinantes da vida nas aldeias. Dos rios vem o sustento através da pesca e é ele também que fertiliza o solo para a agricultura e possibilita o acesso às comunidades mais isoladas.
Contato que ameaça a vida e as tradições
Para as populações indígenas, a BR-156 ao mesmo tempo em que proporciona acesso facilitado a diversos serviços – como o atendimento à saúde, a comercialização de farinha e frutas produzidas nas aldeias, a compra de produtos na área urbana – também representa ameaças ao território e ao modo de vida tradicional.
Proteger os rios é uma preocupação permanente. “Ficamos com medo de invasão na nossa terra por pessoas desconhecidas e com o que elas podem jogar no rio. Se poluírem o rio, a sujeira vem bater aqui e vai contaminar nossos peixes. O efeito que a estrada pode causar parece longe de nós que vivemos aqui, mas na verdade também afeta nosso povo”, explica Gilberto Yaparrá, do povo Palikur que vive na aldeia Kumenê, situada à margem do rio Urucauá e distante cinco horas de voadeira da área urbana de Oiapoque. Além da poluição, os moradores temem a invasão de madeireiros, garimpeiros e caçadores em seus territórios.
Porém, as conseqüências da estrada para as comunidades indígenas não se resumem às ações diretas como as invasões e a degradação do meio ambiente. O contato com o modo de vida da sociedade envolvente – que será agravado ainda mais após a finalização das obras da BR-156 – tem ocasionado mudanças na saúde, na organização social, nas atividades produtivas e nas manifestações culturais dos povos do lugar.
O aparecimento de doenças nunca antes detectadas como a diabetes, o câncer de mama e de colo do útero, a hipertensão, as doenças sexualmente transmissíveis – inclusive a AIDS – e o alcoolismo é relatado pelos moradores após o contato com a sociedade envolvente. O coordenador da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no Amapá, Gervásio Oliveira, reconhece a gravidade da situação, mas diz que a responsabilidade não é só da Funasa. “É também da Funai, dos governos municipal e estadual e de todos os segmentos da sociedade. Não podemos atribuir a responsabilidade a um só órgão. Não temos [a Funasa] recursos para resolver o tamanho do problema que vem aumentando dia a dia”, esquiva-se.
Sobre a questão, a gestora do Distrito Sanitário Especial Indígena do Amapá (DSEI), Marcela Dias, afirma que o plano do DSEI para o período 2008-2010 inclui a análise epidemiológica relacionada aos impactos nas comunidades indígenas da relação com os não índios. “Também vamos analisar os impactos causados pela BR-156. Esses contatos trouxeram diversos agravos à saúde indígena”, diz.
Outros fatores são as contradições geradas pela influência dos padrões de vida externos sobre as comunidades. A energia elétrica, por exemplo, levou facilidades para a vida na aldeia. Os alimentos podem ser conservados por mais tempo com a geladeira, há o conforto da luz elétrica, máquinas são utilizadas na fabricação de farinha e a preparação dos terrenos para a agricultura é feita com o uso de serras elétricas.
Por outro lado, essas facilidades aliadas a outras mudanças têm levado alguns povos a um novo modo de vida. “Hoje o trabalho é feito de forma individualizada. Quase não tem mais mutirão. Cada família planta a mandioca e faz a sua farinha”, relata o professor Guisel Santos Narciso, do povo Galibi-Marworno, morador da aldeia Kumarumã. O mutirão que envolvia várias famílias da aldeia no desmatamento e na preparação do terreno para o cultivo de mandioca, banana, cará, cana-de-açúcar e batata doce vem dando lugar ao trabalho individualizado ou familiar.
O mesmo acontece na fabricação da farinha, principal atividade produtiva das aldeias. O processo artesanal está sendo substituído pelo uso de máquinas de ralar mandioca, trabalho que dispensa o envolvimento de toda a comunidade. Dona Elza Macial, merendeira da escola e liderança de Kumarumã, conta que há alguns anos participavam do mutirão homens, mulheres e até crianças. “Todo mundo se envolvia. Era um momento de integração da comunidade que hoje só acontece entre poucas famílias”, relata. Hoje parte dos indivíduos que vivem nas aldeias é assalariada. Eles trabalham principalmente nas escolas e postos de saúde. Outra parte vive do comércio de farinha e frutas.
Essas mudanças são resultados de múltiplos fatores. Para a antropóloga Lux Vidal, que trabalha com os povos indígenas do Oiapoque há 18 anos, as mudanças nas comunidades já acontecem faz muito tempo e sempre foram superadas pelos povos. “Mas nos últimos anos as pressões têm sido tão grandes que os indígenas estão sentido os impactos de maneira mais forte e isto está alterando a cultura e a vida deles”, esclarece.
A juventude em foco
Em meio à incorporação de outros aspectos ao modo de vida tradicional dos povos, tem chamado a atenção a mudança no comportamento da juventude indígena. Para os adultos, o acesso à programação televisiva, à internet e aos filmes vistos em DVD é a principal causa das transformações. “Eles vêem algo num filme e no momento seguinte querem reproduzir aqui na aldeia”, conta Oberto Maciel, diretor da escola de Kumarumã.
“A maioria dos jovens hoje não quer aprender a caçar, flechar um peixe, plantar. Nas aldeias menores, eles participam mais dessas atividades”, relata Creuza Maria Santos, cacique da aldeia Ahumã. Mas o que mais preocupa os pais é a violência e o consumo de álcool e drogas crescente nas aldeias devido ao contato com a zona urbana do Oiapoque e também de Saint Georges, cidade da Guiana Francesa que faz fronteira com o Brasil.
Os sonhos e projeções dos jovens para o futuro são diferentes das ambições das gerações passadas. “Os jovens querem estudar pra entrar no mercado de trabalho”, resume Rubimauro Macial, de 25 anos. “A comunidade tem uma visão diferente da que tinha antes. O jovem tem que estudar. Hoje os pais dão mais importância para que os filhos estudem. Antes os pais achavam que a escola não era garantia de futuro”, complementa Diogo Macial, morador da aldeia Tukay.
BR-156 entre a vida e o progresso
A BR-156 é a única estrada federal no Amapá. Planejada desde 1943, quando o estado foi desmembrado do Pará, começou a ser construída no final da década de 1960 e nunca foi finalizada. Atualmente a abertura da via encontra-se concluída, mas ela não está totalmente asfaltada.
A conclusão dos trabalhos ganhou novo fôlego com a inclusão da obra no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo federal. A rodovia chegará até a fronteira com a Guiana Francesa e será estendida à ponte sobre o rio Oiapoque que ligará o Brasil a cidade de Saint George, em território francês. “Como faz parte do PAC, o governo destinou para o próximo ano R$ 120 milhões para construção da BR-156”, revela o governador do Amapá, Waldez Góes.
Porém, no trecho em que a rodovia atravessa a área indígena Uaçá, no município de Oiapoque, a licença ambiental para que o asfaltamento prossiga não foi renovada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O motivo foi o não cumprimento por parte do governo das medidas compensatórias e mitigatórias exigidas pelos povos indígenas para amenizar os impactos da estrada nas suas terras e nas comunidades.
O superintendente do Ibama no Amapá, Edvan Barros de Andrade, acredita que o Estado deveria ter se antecipado em ordenar o uso e a ocupação do território ao longo da BR-156. “Na medida em que o Ibama renova a licença só até o limite da área indígena, deixando esta de fora da obra de asfaltamento, ele reconhece a necessidade de o governo cumprir as condicionantes na terra indígena”, afirma.
Mas a questão não pode ser resumida ao impasse entre o governo, que insiste no potencial desenvolvimentista da rodovia para o estado, e os povos indígenas, prejudicados com a invasão do seu território e todas as conseqüências dessa ação.
Segundo parecer da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), antes do interesse do poder público federal e estadual, no sentido de efetivar o asfaltamento da estrada, é imprescindível esclarecer sobre a possibilidade constitucional de se empreender uma obra como a BR-156 em terra tradicionalmente ocupada por índios.
Na compreensão da assessoria jurídica do Cimi, a construção da estrada na terra Uaçá retira a posse permanente dos indígenas sobre o trecho e impede que eles usufruam das riquezas naturais do solo, dos rios e lagos da terra que tradicionalmente ocupam.
Com base na Constituição Federal, o parecer sobre a BR-156 considera inválido qualquer ato que retire a posse e o usufruto das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. No entanto, aceita uma ressalva a esta regra ao admitir que atos de relevante interesse da União incidentes nestas terras possam ser admitidos, desde que previstos em lei complementar.
Ou seja, constitucionalmente, a única forma de regularizar esta situação, consiste em prever em lei complementar – aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República – que obras como a da BR-156, incidentes em terras indígenas, é de relevante interesse público da União, bem como seu asfaltamento. Ocorre que esta lei complementar não existe. “Conseqüentemente, são nulos e extintos, quaisquer atos que visem a posse, o domínio ou a ocupação de terras tradicionalmente ocupadas por índios”, conclui o documento.
Para o procurador da República no Amapá, Fernando Aguiar, a ausência da lei complementar não constitui impedimento para a finalização da obra. “Essa regulamentação ainda não existe, o que no meu entendimento não impede, constitucionalmente, o governo de fazer estrada em terra indígena desde que seja feita de forma negociada com os índios e respeite suas questões culturais”, afirma.
Acordos não cumpridos
Mesmo diante da ilegalidade de construção da estrada como defende a assessoria jurídica do Cimi, a BR-156 foi aberta no território indígena. A promessa de um acordo a ser cumprido pelo governo levou os povos indígenas a autorizar a passagem da estrada.
No entanto, nada do que estava no acordo foi cumprido até agora. Para minimizar os impactos da estrada, os povos indígenas exigem, entre outras medidas, a reconstrução das oito aldeias que se encontram à margem da BR-156 em locais mais reservados dentre da área indígena, a construção de três unidades de saúde em diferentes aldeias e seis postos de vigilância devidamente equipados para a fiscalização do local. “Nós não somos contra a estrada, como a população do Oiapoque vem falando. Mas queremos que sejam adotadas as medidas que preservem as comunidades indígenas”, explica o Galibi-Marworno Oberto Maciel.
Na tentativa de solucionar o impasse, foram desmembrados recursos do orçamento destinado à construção da BR-156 para cumprir o que estava previsto no Plano Básico Ambiental (PBA) acordado com as populações indígenas. “Conseguimos fazer com que R$ 10 milhões do recurso de 2007 fossem relocados para as medidas do PBA com os povos indígenas. E pretendemos fazer o mesmo com o orçamento de 2008”, é o que garante o governador do Amapá Waldez Góes.