Indignados números, tristes tópicos!
O mês de novembro foi marcado, no Mato Grosso do Sul, por um festival de números e tópicos absolutamente contrastantes e chocantes. Por um lado, a questão indígena continuou nas manchetes devido à violência que se abate sobre os Kaiowá Guarani, mas também devido suas lutas e resistência. Destaque para o 13º encontro dos professores e lideranças Kaiowá Guarani, realizado na aldeia de Sossoró, região de fronteira com o Paraguai, no município de Tacuru. Foi um momento forte em que se evidenciaram alguns avanços na luta, especialmente no campo da educação. Por outro lado, continuam os enormes desafios colocados diante dos confinamentos e da negação das terras, o que vem gerando um crescimento assustador das violências. A partir disso viu-se a necessidade de cerrar fileiras exigindo do governo a imediata criação de grupos de trabalho para identificação das mais de 70 terras indígenas que faltam ser reconhecidas e demarcadas. Houve vários momentos em que se buscou somar forças e traçar estratégias pelos direitos e pela vida Guarani. Aconteceram dois encontros em Foz do Iguaçu, providos pelo Ministério Público, com a participação de universidades do Brasil, Paraguai e Argentina e entidades de apoio a esses povos, que procuraram entender melhor a dura realidade que enfrentam e unir esforços para começar a superar essa situação. A campanha “Povo Guarani, Grande Povo!”, articulada pelos Guarani e o Cimi juntamente com inúmeras entidades e aliados no Brasil e em vários paises, também prossegue com a definição prioritária de apoiar a luta desse povo por suas terras e territórios tradicionais, e pela autonomia em suas terras. Entre escravos, as usinas Os benefícios concedidos aos usineiros e os números oficiais do “milagre das usinas” foram comentados pela mídia local: “Depois de encontro no qual renovou incentivos fiscais aos usineiros, o governo estadual passou a veicular anúncio no qual informa que em dez meses o número de usinas de açúcar e álcool saltou de 11 para o impressionante número de 43 unidades no Mato Grosso do Sul… O anúncio publicitário circula em meio a notícias mostrando o protesto de 400 trabalhadores de usina de Sidrolândia em pleno centro de Campo Grande exigindo o pagamento dos salários de outubro e a garantia dos direitos trabalhistas, pois estão cansados de levar calotes e viver em regime análogo ao de escravidão, ilegalidades que são impostas por parcela dos usineiros que estão recebendo benesses fiscais e sendo elevados à categoria de heróis pelo governo estadual…” (Correio do Estado, 28/11/07) O Ministério Publico do Trabalho também fez a sua parte. Encontrou 831 indígenas Kaiowá Guarani e Terena, trabalhando em condições degradantes, semi-escravas numa usina de açúcar no município de Brasilândia. O que só vem a confirmar a denúncia que fez um assentado do município de Sidrolândia. “Ouvi os usineiros comentando que vão deixar de contratar os não índios, pois esses dão muito trabalho, reclamam muito, exigem muito. Já os índios não… por isso nós só vamos mais contratar índios”. Entregou-me o bilhete por escrito. Mostrava-se muito assustado e indignado com o que ouvira. Kurusu Ambá, uma realidade emblemática Em se tratando na luta pela terra, o que novamente chamou atenção nesse mês foi a volta e a retirada da comunidade de Kurusu Ambá do seu tekoha, terra tradicional. Foi a terceira vez nesse ano em que pisaram no seu território sagrado e dele foram rechaçados pelos fazendeiros e suas milícias armadas. Na Primeira vez, em janeiro, foi morta a tiros, a nhandesi (líder religiosa) Julite, nascida naquele local. Depois da segunda entrada, em maio, receberam forte pressão e tiveram que abandonar novamente a terra. Logo depois o líder Ortiz Lopes foi assassinado na porta de sua casa. Passando fome e frio, e quase ao relento, em barracos improvisados à beira da estrada, a comunidade passou a ser alvo de inúmeros disparos e amedrontamentos. Diante da situação insuportável, decidiram novamente voltar à sua terra tradicional, no dia 15 de novembro. Logo foram novamente cercados, por fazendeiros e inúmeros pistoleiros. Contam que, no segundo dia em que lá se encontraram, apareceram cerca de 60 pessoas armadas no local. O grupo mais uma vez não resistiu à pressão e acabou negociando o retorno à beira da estrada. Lá chegando foram surpreendidos por uma saraivada de tiros do qual resultaram quatro indígenas feridos. Após o episódio, uma delegação se deslocou para Campo Grande na última semana de novembro a fim de denunciar a violência contínua a que estão submetidos. Estiveram na Ordem dos Advogados do Brasil, que já nas vezes anteriores mostrou-se indignado com essa situação e criou a Comissão de Direitos Indígenas da OAB regional MS. Estiveram também com a Coordenação dos Movimentos Sociais, em sindicatos, articulação dos Conselhos estaduais, CNBB (regional Oeste 1) e na Assembléia Legislativa do Estado. Na Assembléia Legislativa conseguiram um tempo na sessão plenária, onde o líder Eliseu colocou a luta que estão travando para voltar à sua terra, as violências, mortes e feridos, a omissão da justiça e a conivência e envolvimento de autoridades na repressão de que foram vítimas. Esse fato desencadeou uma virulenta reação de um dos deputados, ligado ao agronegocio, do grupo dos ruralistas, que mais uma vez despejou seu ódio e preconceito contra os índios e seus aliados. Porém, foi veementemente contestado por outros parlamentares que têm posicionamento favorável aos direitos indígenas, especialmente à terra. Uma outra realidade emblemática no caso de Kurusu Ambá é a ação da justiça. Os índios manifestaram sua estranheza e indignação pelo fato de quatro de suas lideranças presas em janeiro, na luta pela terra, vítimas de uma armadilha dos fazendeiros, terem sido condenados a 17 anos e meio de prisão, num julgamento recorde de agilidade pela justiça de Amambai, enquanto os assassinos de Julite e Ortiz e as milícias armadas que feriram mais cinco indígenas da comunidade são acobertados pela impunidade do poder do latifúndio e do agronegocio. As imagens e números da violência O mês de novembro passará para a história como um dos mais violentos para os Kaiowá Guarani do Mato Grosso do Sul. Os dados foram entregues diretamente ao presidente Lula e a representantes da ONU. Foi amplamente noticiada a situação de genocídio, do holocausto Guarani, e realizados encontros e debates sobre a questão da violência e mortes entre os Kaiowá Guarani. Outra manchete que chamou atenção neste final de novembro é a triste estatística de mortes de crianças, dentre as quais se destaca a das crianças Kaiowá Guarani, como mostra a matéria publicada na imprensa nacional: Índios engrossam estatísticas negativas em MS “Índice aponta Japorã (MS) como um dos municípios brasileiros com maior número de mortes entre crianças com menos de um ano: 84,6 mortos por mil nascidos vivos em 2004, de acordo com o SUS-MS. O assessor de imprensa da Prefeitura, Walter Silva, culpou os 4.388 índios da etnia Guarani Nandéva. “É lá que a mortalidade é grande. Aqui, não”. Eles moram na Terra Indígena Yvy Katu, a 40 quilômetros da cidade. A tribo representa 62% dos 7.339 habitantes do município. De janeiro a outubro deste ano, 16 crianças com menos de um ano morreram em Japorã – nove delas, indígenas. Para o coordenador regional da Funasa, Flávio Costa Brito Netto, os índices deveriam ser separados, porque “índio é índio, tem lá seus costumes, sua cultura, é diferente dos brancos” – Estado de São Paulo, 28/11. Diante do clamor da comunidade de Ñanderu Marangatu, que nos últimos meses vem cada sofrendo intensa pressão e violência por parte dos fazendeiros e seus capangas, como espancamentos, estupros e ameaças de morte, a Anistia Internacional resolveu fazer uma campanha pela segurança e vida dessa comunidade. Centenas de cartas dirigidas ao Ministro da Justiça e outras autoridades têm chegado de vários países do mundo. Agora em dezembro uma delegação da comunidade estará indo a Brasília para uma audiência com o Ministro César Peluso, do Supremo Tribunal de Justiça, onde estarão falando dessa situação, mostrando o quanto é importante e urgente que seja julgada a ação da qual ele é o relator. Também estarão colocando as violências que estão sofrendo em diversos espaços do poder executivo e legislativo. Celebrando a luta e a esperança Dia 28 de novembro. Dois anos da retomada feita na terra indígena Terena de Cachoeirinha, no município de Miranda. A comunidade acampada, agora já constituindo uma nova aldeia, com raízes bem fortes e firmes, na certeza de que a terra reconquistada será um esteio firma para a demarcação e garantia dos 37 mil hectares já declarados pela portaria assinada pelo ministro da Justiça em abril deste ano. No decorrer do dia houve diversas atividades, desde a entrega de diplomas até partidas de futebol e um almoço para toda a comunidade e visitantes. Na parte da tarde aproveitaram para discutir a questão dos próximos passos e encaminhamentos necessários com relação à luta pela terra. Houve estranheza com relação à lentidão dos levantamentos de benfeitorias, que aconteceram durante dois meses. A maioria dos proprietários não deixou os técnicos entrarem e não permitiu o levantamento, obrigando a um retorno no próximo ano para concluir, com apoio da polícia federal, os levantamentos. Foram tirados alguns encaminhamentos para contatos em diversos níveis, em Campo Grande e em Brasília. A estratégia é não atropelar, mas também não ficar parado. Sempre o início e o fim de qualquer atividade e festividade na aldeia, são feitos com as preces e orações de pastores e catequistas. Um comovente e bonito ecumenismo na prática. “Deus cuida de nós. A gente agüenta tudo pela nossa terra. Todos estão muito confiantes que em breve começará a demarcação física dos 37 mil hectares, que será a maior terra indígena Terena. “Mais adiante vamos festejar a conquista definitiva de nossa terra”. A Funasa divulgou recentemente que foram registrados 300 suicídios entre os Kaiowá Guarani de 2001 a 2007, nas 72 aldeias desse povo. Nesse período foram mais de 150 assassinatos, sendo que só neste ano foram 39. Esses são números que devem nos fazer passar da indignação para ação pela vida e futuro desse povo, submetido a esse processo de genocídio. Egon Heck Cimi MS – 3 de dezembro de 2007