A saga do povo Xetá no Paraná
Os índios Xetá foram encontrados na Serra dos Dourados, região noroeste do Paraná, em um período em que o café gerava muito lucro e os colonizadores buscavam terras para expandir a produção.
“No final dos anos quarenta, a febre do café contagia todo o Paraná: trabalha-se, luta-se e mata-se por um punhado de terra que sirva para a plantação de cafezais (…) a madeira não interessa, queima-se a floresta para facilitar os loteamentos (…)”, conta um texto da revista Panorama.
A maioria dos Xetá morreu, em menos de uma década, por causa da selvagem colonização do território em que viviam. Poucos sobreviveram. A maioria destes foram crianças literalmente arrancadas de seus pais e criadas por familiares dos fazendeiros que invadiram suas terras ou por funcionários do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
No dia 11 de junho, morreu, aos 60 anos, Tukanambá José Paraná, um dos sobreviventes do massacre Xetá. Agora, restam apenas seis sobreviventes conhecidos. Hoje, eles têm descendentes e, juntos, somam cerca de noventa pessoas. Mas eles vivem separados. Moram em cidades ou em terras dos povos Kaingang e Guarani. Os sobreviventes estão envelhecendo e dois já faleceram. Por isso, regularizar a terra do povo é cada vez mais urgente.
Há mais de uma década, Tuka, como ele era conhecido, juntamente com Tikuein Mã – falecido no final de 2005, lideravam seu povo na luta pela reconquista de sua terra.
A morte de Tuka foi mais um duro golpe aos Xetá. Os sobreviventes do massacre deste povo têm, agora, importante papel de manter seus descendentes em contato.
Reunidos no velório de Tukanambá, os Xetá presentes assumiram publicamente o compromisso de dar continuidade à luta de Tuka e Tikuein Mã pela reconquista da terra. Neste sentido, já agendaram um grande encontro do povo, que ocorrerá em outubro na cidade de Guarapuava.
A luta dois sobreviventes Xetá já levou a Fundação Nacional do Índio (Funai) a constituir dois grupos de Trabalho (GT). O primeiro, criado em 1999, pesquisou sobre a viabilidade de reagrupamento dos Xetá e demonstrou que eles desejam se reunirem em sua própria terra. Com base nisso, a Funai criou, em 2002, o GT para estudos de identificação e delimitação da terra tradicional deste povo. O relatório destes estudos foi entregue à Funai em meados de 2006.
Desde então, os Xetá reivindicam que a presidência da Funai prossiga o processo de demarcação, publicando os relatórios nos Diários Oficiais da União e do Estado do Paraná.
Vida antes do contato
“Nós morávamos todos jutos numa casa, que nós chamávamos tapuy-apoeng. Mas nós tínhamos também os tapuy-kã, próximo de onde ficávamos com o meu pai. Isso foi antes de conhecermos os brancos, e de vermos o avião. Foi bem antes. Morávamos todos nas casas grandes e nas pequenas, distantes uns dos outros, cada um de um lado lá no mato”. (Kuein, hoje vive na terra Rio das Cobras).
“Sempre tínhamos muita caça, frutas e mel. Gostávamos muito de doce. Não conhecíamos e nem usamos o açúcar e o sal. Além das frutas do mato, nós tínhamos o mate ‘kukuay’, nossa bebida do dia a dia, que era macerado no pilão, e depois colocávamos na água fria e bebíamos. Alimentávamos ainda de pequenas larvas, extraídos do tronco de palmeiras, aves, palmitos e outras coisas que tínhamos no mato. Naquele tempo tínhamos muita fartura, não passávamos fome”. (Relato de Kuein, Tuka e Tikuein)
“Nossa gente dava nome às crianças da seguinte maneira: quando a mulher estava grávida, ela observava durante o período de gravidez a época de determinado bicho, planta, peixe. Nesta ocasião, eles caçavam muito aquele bicho ou pescavam. Era quando tinha abundância do animal. Só quando a criança nascia, já tinha terminado ou diminuído tudo. Assim, o nome do animal ou da planta lhe seria dado. O nome de uma pessoa, dado por seu pai e sua mãe, marca o tempo do bicho ou da planta da época; não importa o sexo. Algumas pessoas tinham dois nomes”. (Tikuein, chamado Mã no idioma Hetã)
A violência
“Morávamos no mato, não conhecíamos ainda os brancos, apesar de vivermos correndo deles de um lado para o outro. Nesse dia, nós estávamos brincando dentro d’água, quando eu acho que os brancos ouviram a gente conversando. Um dos homens saltou no rio e me pegou. Eu e o finado meu irmão, Geraldo. A Ã e os outros escaparam. Ela correu e foi no acampamento avisar pai que nós havíamos sido pegos. Aquele homem me pegou, jogou-me nas costas e levou-me. Tive muito medo dele, porque nós, índios puros, não somos barbudos, e aquele branco era barbudo. Senti medo e pensei: ele vai comer eu. Pra mim ele era bicho. Quer dizer, pra nós o branco era bicho, e pra branco, o índio também é bicho, né.”. (Relato de Tikuen Mã, falecido em 2005)
“Sei que toda minha gente lá no mato acabou, o nosso lugar também. Acabaram conosco. Mas nós ainda somos oito, talvez doze. Todos nós temos filhos, outros já têm netos. Podíamos estar juntos se não tivessem nos separado. Todos quiseram nos ajudar e nos atrapalharam, nos separaram, tiraram a gente do nosso lugar. Perdemos tudo, alguns de nós perderam até as lembranças de nossa gente, fomos levados igual bicho, cada um para um lado e com um dono. Eu estou cansada de morar na terra dos outros” (Relato de Ã, uma das sobreviventes, hoje vive na terra indígena Guarapuava)
Memória viva
“Eu entendo tudo quando o Tikuein Mã, o Tuca e o Kuein falam. Eu tenho vergonha de falar e não falo, porque estou sozinha, mas se eu tivesse com quem prosear na língua para não esquecer o que ainda me lembro, eu seria muito feliz. Não se conversa só, não é mesmo? É precisou outra pessoa que proseie como nós, não é?”
“No pescoço eu tinha colar de continhas (sementes) com dentinhos de quati bem pequenininho. Dival (branco que a criou) cortou, tirou tudo. Eu não queria que ele tirasse, mas ele me agradou para tirar e tirou tudo. Até o meu brinco e o amarrilho de minha perna foi tirado. Eles me deixaram nua, embora estivesse de vestido.” (Relato de Ã)