03/09/2007

Os povos indígenas e as universidades: o difícil caminho da descolonização

Acadêmicos discutem a inserção indígena nas universidades


“Não ocupamos espaços nas universidades, estamos pendurados neles” (Gersen Baniwa)


“Conhecimento tem que ser dividido e saboreado… O acadêmico, às vezes está na universidade para se dar bem na vida e não para lutar pelo seu povo” (Anastácio Kaiowá Guarani)


Uma semana de muita troca de experiências, debates, informações, avaliações críticas,  definição de rumos e estratégias.  Campo Grande tem sido espaço de encontro de centenas de acadêmicos indígenas de todo o país, desde Roraima até o Rio Grande do Sul. Reitores, professores e renomados estudiosos, responsáveis por experiências de Universidades Indígenas ou cursos específicos para indígenas nas universidades, e centenas de estudantes indígenas e não-indígenas realizaram um dos mais importantes encontros tendo como base o dialogo e intercâmbio de saberes, a partir da interculturalidade.


Oficina de lideranças e acadêmicos indígenas e 2º Encontro de Acadêmicos Indígenas do MS


O seminário foi antecedido por uma oficina em que lideranças indígenas do Estado e representantes das mais importantes organizações regionais, da Amazônia (Coiab e Cir) e do Nordeste (Apoinme), juntamente com acadêmicos indígenas de universidades públicas e privadas, destacaram em comum suas caminhadas organizativas para conquistar seus direitos. Foi um momento muito rico em que se procurou não apenas trocar experiências de luta e organização, mas principalmente identificar os principais desafios colocados pela realidade em que vivem os diversos povos, em especial no Mato Grosso do Sul. “Temos que  aprender entre nós, com nossas experiências e lutas, a partir de nossos direitos e nossas diferenças e projetos de autonomia de nossos povos”, expressou Gersen, liderança Baniwa, do alto Rio Negro, atualmente fazendo doutorado em Brasília.


Diante da constatação de que quase sempre os povos indígenas têm sido atropelados pela agenda do governo,  é urgente que se volte a construir uma “agenda indígena” para articular as lutas pelos direitos, especialmente pela terra e autonomia.


Dentre os muitos desafios, foi destacado a dificuldade de manter uma vinculação e relação complementar entre os acadêmicos e as comunidades. Isso foi considerado essencial para não continuar acontecendo o que tem sido bastante comum até aqui – o indígena se forma, se dá bem na vida, fica distante de seu povo. Para evitar isso é que está se buscando cada vez mais um diálogo e articulação entre a comunidade e o acadêmico, desde o ingresso na universidade até sua formação e retorno.


Dionito Makuxi, coordenador do Conselho Indígena de Roraima, falou da estreita vinculação existente em seu estado, entre o movimento dos professores  e estudantes universitários indígenas, movimento de mulheres e organizações indígenas.  Destacou que não tem sido fácil construir essa articulação, mas que ela é fruto de 30 anos de luta pela terra e autonomia em seus territórios. “Foi preciso muita força, coragem e decisão. O nosso movimento teve que enfrentar: ou vai ou racha, tem sido o lema”.


O 2º Encontro de Acadêmicos Indígenas reuniu quase duzentos estudantes de várias universidades e de uma dúzia de cursos, – dentre os quais Direito, Pedagogia, História, Agronomia, Geografia, Zootecnia, Jornalismo, Antropologia, Turismo, Letras. Foram dados vários depoimentos relatando a vivência e desafios enfrentados. De maneira geral foi destacado a discriminação que sofrem, a falta de recursos e apoios às condições básicas para estudar. Essa realidade está levando vários estudantes a abandonar a universidade. Porém, existe um potencial acadêmico muito grande  entre os povos indígenas no Mato Grosso do Sul. O movimento ainda  está bastante frágil e as universidades pouco têm contribuído para a consciência dos direitos indígenas, da importância da diversidade e da interculturalidade. “Nós temos capacidade e inteligência, mas precisamos usá-las, tendo o diálogo para acertar os caminhos”, disse um dos estudantes. Neste sentido foi ressaltada a importância de continuarem fazendo os encontros anuais.


A Academia e a luta


A situação está ficando cada vez mais difícil. Com a entrada das grandes usinas de álcool, “não estou mais só com medo dos latifundiários brasileiros, mas dos americanos e grandes grupos de todo o mundo. Precisamos ter paixão para lutar”, disse uma das lideranças Kaiowá Guarani. “Enquanto estamos brigando entre nós, os fazendeiros estão batendo palma”, concluiu.


Hamilton Lopes, uma das lideranças na luta desde a década de 80 desabafou: “Eu vejo hoje esse grande número de acadêmicos. Quando comecei a luta não tinha praticamente nenhum. E nós conquistamos mais de 15 tekoha Kaiowá Guarani. E hoje, com todos esses estudantes, não estamos conseguindo mais conquistar nenhum pedaço de terra”.


Wilson Matos, advogado indígena Terena-Guarani, destacou que “há 20 anos não tínhamos gente formada na universidade e conquistamos bastante coisa. A Faculdade leva ao emprego e não à luta”. Lembrou ainda das centenas de índios  que são tirados das comunidades  e colocados na prisão “aí fazem a faculdade e pós-graduação do crime”.


Zacarias, cacique Terena do acampamento Mãe Terra- Cachoeirinha, lembrou que é importante esse diálogo com os acadêmicos para que eles participem da luta e ajudem a articular e organizar sempre mais “pois estamos numa luta que é muito difícil”. Finalizou dizendo que a esperança é a reconquista da terra e que depositam grande esperança na participação e contribuição dos acadêmicos.


O professor Otoniel, de Tey Ikue, lembrou a importância dos mais velhos, dos Nhanderu, que “são nossos dicionários”. Como acadêmicos entendemos mais algumas coisas e com as lideranças temos força para lutar”.  Porém a universidade não está preparada para  nos receber. Por isso criamos nosso curso, o Teko Arandu. Terminou seu depoimento dizendo que “quando entendemos os dois lados, o do karaí (branco) e o nosso, ninguém nos segura. Esse é o nosso desafio”.


Universidade Indígena – ilusão ou utopia!


“A escola, em todos os níveis, da aldeia à universidade foi colocada para nos dominar, deixarmos de ser índios, perder nossa identidade, direitos, nossas terras e recursos naturais”. A universidade não tem sido diferente. Conservadora, formadora das elites dominadoras, ela tem sido um espaço de discriminação e fechado para os povos indígenas, até pouco tempo.  Depois de muita luta, finalmente, parece que o acesso, permanência e  transformação está em curso. Masainda tem um longo caminho a percorrer. Quem sabe milhares de indígenas aos poucos consigam subverter esse espaço fazendo o que fizeram com a maioria das escolas: de mecanismos de opressão foram transformados em instrumentos de fortalecimento da identidade, dos direitos e das lutas das comunidades e povos indígenas.


Não se pode ter ilusões. Muita luta será necessária para  conquista de mudanças profundas nas universidades, para que se chegue a uma educação verdadeiramente intercultural, de mão dupla,  e se transforme isso em políticas públicas em todas as instâncias, levando a uma efetiva resignificação da universidade. Isso irá exigir muito debate, organização, rebeldia e coragem histórica. Essas conquistas serão fruto da luta do movimento indígena e seus aliados, da presença indígena nas universidades e de uma ampla articulação nacional e continental.


Os desafios continuam muitos. Vão desde as barreiras burocráticas até as ideológicas, desde a “monocultura” da escrita até a universalidade do saber local. Será preciso fortalecer os conhecimentos e sabedoria silenciada e restituir-lhe seu potencial subversivo, para que se possa caminhar para a “descolonização” da monocultora do conhecimento. Será preciso ter autonomia de pensamento, pensar com  a própria cabeça sem deixar de lado o conhecimento dos outros. Essas são algumas das afirmações feitas na síntese final pelo professor austríaco, Gerog Grunberg.


Conforme insistiu o professor Ribamar Bessa, ganharíamos muito mais se perguntássemos o que os índios podem fazer pela universidade do que o que estas podem fazer pelos índios. “Nossas universidades continuam sendo um deserto com relação aos povos indígenas. Precisamos ‘indianizar’ nossas bibliotecas, restaurar a pedagogia da oralidade,  criar novos cursos , forçar mudanças curriculares, a partir da presença e luta dos povos indígenas na universidade. Se a universidade tem sido tradicionalmente uma ‘fábrica de brancos’ – entra índio e sai branco, é possível subverter essa realidade de homogeneização e monolitismo. É possível e necessário a construção de uma outra universidade, não para os índios, mas dos índios.”


Alguns dados


180.000 estudantes indígenas nas aldeias


3.500 escolas indígenas


115 escolas de ensino médio nas terras indígenas


4.000 estudantes indígenas nas Universidades


500 acadêmicos indígenas no Mato Grosso do Sul


 


Povos Indígenas: Saberes e Práticas interculturais na Universidade


Para debater os desafios, trocar experiências e buscar caminhos coletivamente, a Universidade Católica Dom Bosco e a Universidade Estadual do Mato Grosso do sul, promoveram – através do programa Rede de Saberes – um encontro internacional de estudantes indígenas e representantes de inúmeras universidades brasileiras e de países da América Latina, desde México até a Argentina. O Seminário foi realizado na Universidade Dom Bosco, de 27 a 30 de agosto, com mais de 400 participantes, dos quais um grande número de estudantes indígenas de diversos estados – desde Roraima ao Rio Grande do Sul. 


Dentre as principais questões foram destacadas as enormes dificuldades desde o acesso até a permanência nas universidades. Porém o maior desafio é manter a relação e o compromisso com as comunidades e lutas de seus povos.  


Momentos de intercâmbio e reflexão deverão ser cada vez mais freqüentes para  garantir uma vinculação sempre maior entre os povos indígenas e seus saberes num diálogo intercultural e transformador com as universidades. 


O professor Antonio Brand, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Povos Indígenas NEPPI/UCDB, que foi secretário executivo do Cimi, por dois períodos e hoje mantém uma estreita relação e apoio à luta dos povos indígenas, particularmente os Kaiowá Guarani, mostrou-se positivamente surpreso com o alto nível do seminário e os resultados alcançados. “Damos mais um passo importante na luta dos povos indígenas para a construção de sua autonomia e conquista de seus direitos, no continente, no Brasil e em especial aqui no Mato Grosso do Sul”.


Egon Heck


Cimi MS

Campo Grande, 2 de setembro de 2007

Fonte: Cimi - MS
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