Comissão de Direitos Humanos da Câmara vai a aldeia em Dourados, Mato Grosso do Sul
“Aqui existe uma realidade em que na Terra Indígena de Dourados possui 0,3 hectares de terra para cada indígena Kaiowá Guarani, enquanto cada cabeça de gado possui uma média de 07 hectares de terra” (Tetila – Prefeito de Dourados – Audiência Pública 20 de agosto de 2007).
“Não vamos mais deixar que pisem em nós. Estamos recebendo a Comissão com carinho. Kaiowá está morrendo de suicídio, de homicídio, de assassinato. Nossas crianças continuam morrendo de desnutrição. Aqui já passou muita Comissão. Será que vão respeitar o Kaiowá, devolver nossa terra? Estamos lutando com todas as nossas forças” (Getulio, cacique Kaiowá Guarani, Terra Indígena de Dourados, 20 de agosto 2007).
A poeira vai levantando, enchendo os olhos dos indígenas que caminham na Terra Indígena de Dourados, ou andam em suas carrocinhas ou bicicletas. Os ipês amarelos floridos teimam em ostentar sua beleza em meio a uma paisagem marcada por intenso sofrimento. Os olhares curiosos e indignados dos Kaiowá Guarani, se perguntam sobre as razões de mais essa repentina movimentação em sua terra.
Terra ou morte
Quando o Presidente Lula passou em Campo Grande recentemente, ele chamou alguns políticos e o prefeito de Dourados e ordenou: “Comprem terra para os índios de Dourados!”. Certamente o Presidente estava cansado de ser cobrado nacional e internacionalmente com as estatísticas reveladoras de um drama de genocídio. Isso estava denegrindo a imagem do país e talvez até dificultando alguns caminhos de investimento.
O Presidente poderia ter anunciado: – Ordenei à Funai que demarque as terras indígenas do MS! Isso, porém, significaria contrariar cabalmente os agentes do agronegócio que estavam ao seu redor e compõe, em grande parte, a sua base de sustentação. Era então conveniente ordenar, reservadamente, a compra de um pedaço de chão para aquela população.
Porém, com a Comissão veio a Diretora do Departamento de Assuntos Fundiários – DAF, da Funai, com a determinação de anunciar a decisão do órgão de partir efetivamente para a identificação e demarcação das terras indígenas conforme determina a Constituição Federal. Maria Auxiliadora certamente sentiu de perto que não existe mais dúvida e tempo a perder. Demarcação urgente, ou a situação de violência e morte se agravará.
Aos tanques e palanques
Como não transformar uma vez mais a situação de extrema gravidade, em palanques eleitorais ou disputa de interesses políticos e econômicos. Essa preocupação esteve visivelmente presente para vários membros da delegação. Ela ficou explicitada cada vez que se tinha que decidir os caminhos a seguir, o que visitar, com quem falar. Uma disputa em cada esquina.
No caminho, algumas improvisações e até surpresas. A caravana acabou entrando até no cenário de um filme documentário que está sendo gravado dentro da terra indígena. E a temática do filme não poderia ser outra – A luta dos Guarani por suas terras. Com a súbita e inesperada invasão oficial, alguns dos diretores chegaram reagir: “Será que não sabem quanto nos custa uma hora de gravação? Essa interrupção custa caro!”. O cenário foi criado em torno de uma casa de reza, algumas casas tradicionais, e a placa indicativa de “Terra Protegida”, os trilhos para o deslocamento da câmera e outros aparatos estavam lá para falar por si. A revolta e cobrança dos índios foi feita dentro da casa de reza, após breve ritual. “Estamos cansados de Comissão, de invasão…”.
Ao ‘Centrinho’ da questão
Foi até constrangedor. Aquele batalhão circulando entre os corredores da construção que outrora foi um antigo espaço de cura de indígenas com tuberculose. “Quando transformei isso no centro de recuperação de crianças desnutridas, há seis anos, assinei meu atestado de óbito” – chegou a desabafar o prefeito Tetila, visivelmente transtornado e injuriado com o que considerava ‘exploração sensacionalista e política de seus adversários’.
A imprensa pareceria ávida por registrar as criancinhas esqueléticas ou alguma situação ou fala que desse alguma manchete. Enquanto isso, o Pe. e Deputado Luiz Couto, parecia caminhar tranqüilo, sem pressa, de quando em vez parando para dar uma entrevista. Anastácio, liderança Kaiowá Guarani, achou até um momento de sensibilidade e beleza ao tomar ao colo uma das crianças indígenas que estava um pouco perdida no meio daquela multidão de curiosos.
Muitas armas e poucos argumentos
“Estou assustada com o aparato policial. Isso é um contra-senso. Enquanto não tem segurança para os índios na área, uma comissão está escoltada com mais de uma dúzia de agentes federais armados com fuzis, revolveres e com gás lacrimogêneo”, desabafou uma das representantes de entidade nacional preocupada com a questão dos direitos humanos e segurança alimentar.
É claro que não existe possibilidade de entender uma das realidades indígenas mais complexas do país, sem um tempo hábil para o entendimento das razões, do histórico do esbulho e do confinamento, sem entender a dinâmica social e cultural do povo. Sem saber dos fortes elementos culturais que dão consistência às estratégias de luta e resistência do povo Guarani Kaiowá.
Enfim, seriam necessários talvez, em vez de dias, meses e quiçá muito mais do que isso para ter uma real dimensão e compreensão do que se passa. Como esse não é o caso, deve ter sido necessário uma atenção muito especial por parte do Presidente e integrantes da comissão para entenderem e terem uma leitura correta da realidade.
Onde foi que eu errei?
Certamente quem mais sofreu com a presença de mais uma Comissão foi o prefeito de Dourados. Foi várias vezes cobrado por indígenas, políticos e imprensa. Logo ele, que sempre demonstrou sua preocupação e carinho para com os povos indígenas. Chegou a trabalhar por eles antes de ser político. Foi amigo de Marçal Tupã’y, tendo escrito um livro sobre ele.
Ali estava ele tentando dizer não apenas de sua boa intenção, mas para mostrar seu empenho concreto e real em favor daquela população profundamente impactada pela cidade e civilização de necrófilas. “E 400 casas não valem nada? Estou fazendo mais duzentas. Luz elétrica em todas as casas não vale nada? Água para as casas não vale nada? Tanques de peixe, roças, não valem nada?” E assim o prefeito desfilou seu rosário de feitos, com um investimento de 40 milhões de reais. Em vários momentos citou as iniciativas que são únicas em terras indígenas no continente.
Esqueceu-se apenas de mencionar que se tudo isso não foi em vão, deixou de ir à raiz, ou seja, conseguir a demarcação de uma dezena de tekoha (terra tradicional Guarani) dessa região de Dourados.
Audiência Pública é reservada da Terra
“O mérito dessa Comissão foi em ter conseguido um consenso: ou terra ou continuam as mortes, as CPI´s. As Comissões, as comissões. Uma faixa no auditório da Câmara dos Vereadores expressava bem a única saída “Sem demarcação não há solução para a desnutrição”, “Os professores indígenas estão preocupados com a violência e falta de terra”.
As falas indígenas e não indígenas todas convergiram para a necessária e urgente ação de demarcação e garantia das terras indígenas aliadas à busca de autonomia na produção de alimentos e vivência em paz, conforme seus projetos de vida.
Ficou decidido também que o presidente da comissão se dispunha a ouvir de forma reservada, as lideranças indígenas que assim o desejassem. E isso aconteceu respeitando o desejo de alguns que já haviam sofrido mais discriminação ou ameaças em função da exposição de sua realidade e reivindicações.
A audiência foi aberta pelo deputado Pedro Teruel, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, que fez o apelo para que mais esse momento não caísse no vazio, e que para tanto se teria que assumir a questão da demarcação das terras como medida imediata como única forma de começar a diminuir a violência e as mortes de crianças por desnutrição.
O presidente da Comissão ouviu atentamente todos os depoimentos e falas e se comprometeu a transformar todas as sugestões em documentos a serem enviados a todas as instâncias de poderes, em que deverão ser consideradas e encaminhadas as soluções.
O deputado Pedro Kemp, presidente da Comissão de Assuntos Indígenas, concluiu a Audiência pública, sobre o importante consenso criado em torno da demarcação urgente das terras indígenas. “O Mato Grosso do Sul e o Brasil tem que pagar essa dívida com os Kaiowá Guarani”. E pediu que a representante da Funai levasse esse clamor ao presidente do órgão. Terminou dizendo “Certamente a visita não foi em vão”.
A Comissão passou. E agora?
Uma estranha sensação de frustração e descrença paira no ar como a poeira levantada pela caravana. Os Kaiowá Guarani tem razões de sobra para descrer da eficácia de levantamentos, cpis, comissões especiais, comícios,forças tarefa, documentários, invasões de toda ordem, promessas, visitas, intervenções,prisões…
Diante disso tudo desenvolveram suas estratégias seculares. Resistiram. Sobreviveram. Confiam que amanhã não apenas será outro dia, mas poderá ser um dia diferente, melhor.
Dezenas de charretes vão se deslocando dentro da terra indígena. Concentram-se no campo de futebol. É o jogo da vida. Uma carreta e um caminhão baú estão posicionados dentro da reserva, guarnecidos por soldados. Estarão se deslocando em breve, ao encontro da fome, da espera, da dependência de um povo que já viveu séculos de fartura e autonomia nesse chão.
A Comissão passou. E agora? Espera-se que o visto e ouvido , resumido na unanimidade de que sem a demarcação da terra nada adiantará, se transforme não apenas em mais um relatório com boas recomendações, mas numa agenda concreta, com data e recursos para a demarcação da terra dos mais de 30 mil Guarani Kaiowá e Nhandeva dessa região.
Essa é uma luta que não tem cor, religião ou partido. Deve ser um compromisso de todo cidadão desse país. Não existe tempo a perder. Ou reverteremos de imediato esse quadro de genocídio ou seremos julgados pela história como cúmplices do mesmo.
Alguns dados reveladores
“Vai ser construída uma ‘Vila Olímpica’ na terra indígena de Dourados. Já tem um milhão de reais empenhados” (Benjamim Bernardes, Diretor do Centrinho – O progresso 21/08/07).
“Terra Indígena de Dourados, com mais de 12 mil habitantes tem uma população superior à de vários municípios do Estado” (Prefeito de Dourados, Laerte Tetila).
A terra indígena de Dourados, com quase 4 mil eleitores, tem forte influência sobre a eleição de um prefeito e poderia eleger alguns vereadores indígenas. Atualmente não tem nenhum indígena na câmara.
Ironias à parte, os opositores não perderam a oportunidade de se referir ao Padre Deputado L. Couto.
O representante do Cimi, em sua fala insistiu em que “somos todos cínicos e co-responsáveis do genocídio, se não lutarmos com todas as forças para mudar logo os rumos, garantindo a demarcação das terras”.
Egon Heck – Cimi MS