05/06/2007

Ninguém segura a cana

“Caso não se tomarem medidas urgentes, demarcando a terra dos índios e garantindo terra para pessoas que nela queiram trabalhar, podemos prever, num futuro não muito longínquo, duas manchetes:


Brasil o maior produtor mundial de etanol bate novos recordes.


E do outro lado:


O Estado continua matando os índios…”.


(Antonio Brand, professor da UCDB)


 


“Há 500 anos vem esse projeto feito pelos e para os grandes… Chegam, levam tudo, destroem a natureza e nós ficamos trabalhando para eles… Precisamos construir uma política onde todos possam viver bem”.


(Anastácio Peralta – Kaiowá Guarani)


 


Se ainda restavam dúvidas quanto ao avanço apocalíptico do mar de cana no Mato Grosso do Sul, creio que terão sido esclarecidas para umas centenas de pessoas apinhadas na Assembléia Legislativa, nesse engatinhar do mês de junho. Os números abundaram. Chegaram a causar certo espanto e estupefação no representante do Ministério Público, em Campo Grande, Dr. Alexandre, o derradeiro da mesa a falar. Exclamou meio atônito: “Só ouvi números, só vi números, só senti números! Cadê as pessoas, cadê o meio ambiente? Não dá para comer dinheiro”. Foi o contraponto, antes do ponto final. Afinal de contas a grande maioria da platéia, ligada aos movimentos sociais, sem terra, índios, e pessoas preocupados com o futuro do Estado, não vieram aí para entrar na cana. Vieram para debater suas preocupações, externar suas convicções, suas sugestões, seus medos e sonhos.


 


E por falar em números, um dado revelado, que está na base da atual invasão do capital na região, é de que um hectare de cana dá um ganho 12 vezes maior do que o mesmo hectare com gado. Não são necessários grandes malabarismos intelectuais para entender o que isso significa. No mesmo rumo, um agricultor da região de maior plantação de soja do Estado, Maracaju, dizia que arrendar a terra para plantio de cana ganhava o dobro do que arrendar essa mesma terra para plantio da soja. Ou seja, estamos diante de um dos negócios mais rendosos dos últimos tempos na economia do Estado. Ou será de graça que os altos investimentos estão com tanta pressa, gana e grana?


 


Moendo sonhos e sangue


 


A lógica é muito simples. Para os senhores da “terra mercadoria” ainda existem 50 milhões de hectares para serem ocupados pela produção. Cana neles. Afinal de contas o Japão está aí à nossa porta solicitando nosso etanol. Só para atender a demanda deles seriam necessárias 600 usinas funcionando no país, e apenas são 350 atualmente. E no Mato Grosso do Sul são 11 usinas funcionando, 31 em implantação e 28 em negociação. Ou seja, em breve poderão ser 70. Isso tornará o Estado um dos maiores produtores de cana, álcool, etanol, do país. O representante da Secretaria de Produção anunciou com entusiasmo que “já somos o terceiro Estado do setor álcool-açucareiro, só perdendo para São Paulo e Minas Gerais”.  Falou ainda entusiasmado que passaremos dos 425 milhões de toneladas de álcool produzidos em 2007 para 720 milhões, em 2012.


 


Imaginemos as montanhas de cana sendo moídas ininterruptamente, dia e noite. O roncar barulhento das máquinas, tratores, caminhões, usinas… Enquanto isso, do outro lado, a dor silenciosa dos milhares de trabalhadores gastando rapidamente suas vidas, vendo seus sonhos moídos com a cana na desesperança de dias melhores. O caldo vai se avermelhando num infinito pesadelo de sonho e de sangue. E o bagaço vai se transformando incorporando mais lucro. O capital tem que avançar. A lógica perversa da acumulação não pode ter limites. Quanto mais, melhor!


 


Será que a terra mãe e sua gente irão agüentar essa agressão e violência por muito tempo?


 


A falácia do emprego e a dor do progresso


 


Nas exposições, dentre as montanhas de números, algumas revelações esclarecedoras. Uma delas diz respeito à ilusão vendida de milhares de empregos que serão gerados na esteira da cana. Porém, já é dado indiscutível de que o caminho é o da mecanização de todo o processo, do plantio à colheita. Um dos expositores falou da grande vantagem que tem o Mato Grosso do Sul, cujas lavouras são 100% mecanizáveis, enquanto estados como São Paulo, por exemplo, essa percentagem cai pela metade. E colocou isso em números: para toda a colheita mecanizada seriam necessárias seis mil colheitadeiras. E no Brasil atualmente apenas temos a capacidade de fabricar 400 colheitadeiras ao ano. Portanto, a mecanização levará, no mínimo, alguns anos. O consolo é de que os milhares de trabalhadores serão dispensados gradativamente. E a falácia do emprego abundante fará a ilusão morrer na esquina mais próxima. E o batalhão dos 106 mil empregos anunciados irão novamente para a vala comum do bagaço, chupado e descartado.


 


Entra então em campo o argumento indiscutível do desenvolvimento, do progresso. A que preço? Não interessa. O capital e o lucro não têm cor e nem pátria, apenas voracidade ilimitada.


 


Mostrando suas reservas com relação ao decantado progresso egresso da cana do grande capital, Dr. Alexandre pediu que mirássemos o estado de Pernambuco, por onde as moendas começaram a gemer. “Temos que nos mirar no passado para não deixar para as futuras gerações o fracasso”, concluiu o procurador. “É fraude, é vil pensar que a cana é a solução da economia do Estado”. E mostrou como a lógica do grande capital privatiza os lucros e socializa os prejuízos. E pergunta: “Porque tanta voracidade, porque toda essa ansiedade? Isso é retrocesso… Estamos sendo colonizados de novo”. Pediu aos usineiros, presentes em bom número, que parassem por cinco minutos “que prejuízos têm em respeitar as leis, as pessoas, a solidariedade!”. E afirma com indignação: “Falta responsabilidade nesse país. Respeitem nosso meio ambiente. Tenham responsabilidade ambiental e social”.


 


Já o professor Vidal foi enfático ao afirmar que “não tratar bem o ambiente é burrice”. Além disso, é importante considerar que além da isenção do ICMS em 67% a maior parte do financiamento dessas atividades é do BNDES. Portanto, é nosso dinheiro financiando o lucro fácil, a invasão, a evasão, a destruição do meio ambiente e a escravidão moderna!


 


E o sol brilha para todos


 


O país da fotossíntese. Em meio a arroubos nacionalistas, o professor Vidal Bautista, criador do programa “Proálcool”, falou por mais de uma hora. Procurou sustentar sua tese de que diante do colapso energético, com o fim do petróleo, o Brasil será o único país que poderá evitar a guerra. “Seremos o novo Iraque, sem bombas! Do petróleo, que leva 400 milhões de anos para se formar, teremos a energia renovável. Temos sol e terra abundantes. Temos a grande fonte de energia, que é o sol. Temos uma situação apoteótica para resolver a questão da energia, ajudar o processo civilizatório e evitar a guerra”. Até aí o consenso. Porém quando começou a insistir de que essa energia deve ser baseada no pequeno produtor, na agricultura familiar para não enriquecer ainda mais os ricos ou entregar o nosso solo aos estrangeiros, aí os usineiros e muitos políticos e empresários presentes, começaram a se retorcer nas cadeiras. Poderíamos ir mais longe e questionar a própria cana enquanto alternativa de produção de energia, ou mais ainda, para que e para quem iremos produzir energia. Os questionamentos e as dúvidas quanto ao tema são inúmeras.


 


Contra a atual onda de invasão do capital estrangeiro no campo, em especial no setor de produção de cana-etanol, foi taxativo: “Essa terra é nossa. Território é coisa sagrada. Estamos diante de uma forma moderna de escravidão… Não podemos permitir essas formas de invasão e internacionalização do nosso território”.


 


O seu entusiasmo com a produção pela agricultura familiar, organizada, em forma de cooperativas está baseado numa experiência que está sendo realizada em Palmeira das Missões, no Rio Grande do Sul. “E está dando certo. São milhares de pequenos agricultores organizados, com mini-usinas já funcionando… Precisamos ter milhares dessas mini-usinas em todo o país… Mas isso requer decisão e políticas de apoio do governo federal”.


 


“Hoje o Mato Grosso do Sul vive um momento de desafio e para crescer é preciso dizer não ao sócio capitalista”, declarou Vidal (Campo Grande News, 1/06/07).


 


Lamentável e sintomático, que em meio de todas as informações da parte da manhã, em nenhum momento foram citados sequer os povos indígenas que aqui vivem e estavam presentes na platéia.


 


Os deputados proponentes do Seminário, Pedro Kemp e Paulo Duarte, destacaram a importância do debate, sendo este ressaltado pelos expositores e participantes.


 


Campo Grande, 3 de junho de 2007.


 


Egon Heck


Cimi MS


 


(texto elaborado a partir das falas na manhã do seminário: Alternativas de Desenvolvimento: possibilidades e limites – 1 de junho de 2007)


 

Fonte: Cimi - Regional Mato Grosso do Sul
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