30/05/2007

Povos reivindicam políticas; Estado esboça respostas

Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho, especial para a Repórter Brasil*


 


O censo do IBGE não permite saber se as 383.298 pessoas que vivem nas cidades e se autoidentificaram como indígenas estão diretamente ligadas a povos ou se apenas identificam-se com este grupo. Mas o próprio IBGE avalia, em publicação que analisa os resultados da amostra dos censos de 1991 e 2001, que o crescimento expressivo da população indígena no Brasil no período está diretamente ligado à autoidentificação que ocorreu nas cidades, e não no campo. E que este é um fenômeno que precisa ser mais estudado.


 


A antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, do Instituto Socioambiental (ISA), concorda com a necessidade de um levantamento mais detalhado com os brasileiros que se autodeclararam indígenas para saber, por exemplo, se os pesquisados são ligados diretamente a comunidades ou se a identificação como indígenas é motivada por algum pertencimento étnico remoto. “Sem ouvir estas pessoas, tudo o que se pode afirmar é que hoje existe, no Brasil, um ambiente mais favorável para que as pessoas se autodeclarem indígenas: houve um movimento de valorização étnica, de valorização de temas do meio ambiente, além de políticas públicas que priorizam e valorizam segmentos específicos da população; existem políticas compensatórias e afirmativas. Contam também a existência do movimento indígena organizado, e uma tendência da política internacional”, afirma a pesquisadora.


 


Também antropóloga, Lucia Rangel, da PUC/SP, avalia que as explicações para o aumento da população autodeclarada indígena precisam ser contextualizadas dentro de um quadro de negação a que os indígenas foram submetidos durante séculos.


 


 “Existe uma carga histórica de preconceito e ela é pesada. A discriminação leva à decisão de esconder os pertencimentos. Antes, estas pessoas não podiam dizer que eram índios porque perdiam emprego. Até hoje há desconfiança. Isso é muito pesado e é muito forte em uma sociedade como a nossa, com muita diferenciação, preconceito, hegemonias. E não acontece apenas com os índios, mas no caso deles se torna claro porque muitas vezes é dolorido esconder que são índios, porque gostariam de poder ter suas reuniões, suas religiões. Não é confortável ter que esconder quem você é. Por isso é que, quando eles sentem que há espaço para declararem seus pertencimentos, elas o fazem, mesmo que isso implique em continuar enfrentando alguns preconceitos”, afirma Rangel. A autodeclaração como forma de definir quem é ou não indigena tornou-se possível a partir da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada pelo Brasil em 2004.


 


Mas o processo que leva as populações a sentir que é possível assumir sua origem – ou seu vínculo atual – com os povos indígenas teve inicio muito antes. A partir da década de 1970, foram realizadas as primeiras assembléias indígenas nacionais, o que cria bases para o surgimento de um movimento indígena. Da confluência destes processos, foram surgindo as organizações, como a União das Nações Indígenas (UNI), que tentou congregar povos de todo o País.


 


Daí vieram as bases para a luta na Assembléia Constituinte, um marco para a visibilidade destes povos como atores sociais. Em 1988, os indígenas, organizados, garantiram uma legislação que lhes assegurou direitos à demarcação de terras e a políticas específicas e diferenciadas. Já nos anos 1990, o debate ambiental contribui também para a visibilidade dos povos. As organizações e associações se multiplicam, e os instrumentos legais internacionais se consolidam – o maior exemplo é a mesma Convenção 169



Cidades e a conquista de direitos









Índias trabalham na Associação das Mulheres do Alto Rio Negro (Amarn), em Manaus (AM)


A efetivação dos direitos conquistados e a transformação deles em políticas publicas é, ainda hoje, a principal bandeira dos movimentos indígenas. E as organizações e associações indígenas exercem uma função central nas negociações institucionais.

A antropóloga Graziella Reis de Sant´anna estudou as associações indígenas em Campo Grande durante seu mestrado e concluiu que, por meio delas, os indígenas “buscavam garantir não só a possibilidade de manifestação pública da diferença, mas também o acesso a melhores condições na áreas da saúde, da educação e do trabalho”, fazendo o diálogo com o Estado, com ONGs e com a sociedade em geral. “Eles enfrentam as mesmas dificuldades sócio-econômicas que as demais populações carentes da cidade, com o agravante da discriminação. Nesse sentido, as associações se tornaram promotoras em potencial das demandas econômicas”, afirma Graziella em seu trabalho acadêmico.

Nas cidades, as organizações se multiplicam. Em Manaus, a Associação das Mulheres do Alto Rio Negro (Amarn) foi pioneira, e abriu espaço inclusive para articulações nacionais, como a Coiab. Em Campo Grande, há a Associação dos Feirantes Indígenas, a Associação dos Moradores do Bairro Marçal de Souza, a Grupo Te, associação que tem como objetivo promover a cultura Terena na cidade formando jovens nas danças tradicionais. A lista segue, mas a função das associações é a mesma: ser representação, nos moldes requeridos pela sociedade não indígena, para o dialogo com o Estado.

Ação estatal pontual e lenta
O poder público, por sua vez, foi construindo, a partir da pressão dos indígenas organizados, espaços para recepção e encaminhamento das demandas. Lideranças indígenas conseguiram com que a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) iniciasse o atendimento a algumas das comunidades que vivem em capitais, em geral com a contratação de agentes de saúde e enfermeiros.


 


Mas o planejamento de políticas públicas para os índios urbanos tem recaído, pelo menos por enquanto, sobre estados e municípios. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão federal responsável pelas políticas de terra, habitação e assistência aos povos indígenas, caminha a passos lentos na relação com os povos nas cidades.


 


O foco principal de trabalho da Funai são os índios aldeados. De acordo com sua assessoria de imprensa, o órgão trabalha com cerca de 450 mil indígenas que vivem no meio rural no Brasil, apesar da população total de 734 mil pessoas identificada pelo IBGE.


 


Entretanto, o novo presidente da Funai, Marcio Meira, empossado no final do mês passado, promete dedicação ao tema. “Há necessidade de o Estado atender a esta população [indígena nas cidades] com políticas públicas. A Funai atende em parte, mas ainda é muito pouco. Este é um dado novo na realidade indígena brasileira”, afirma. “Isto é um plano ainda, mas já existem algumas coisas pontuais começadas. Há trabalho com municípios em relação à moradia: a Funai atuou na construção da nova aldeia urbana em Campo Grande”. A aldeia, localizada no Jardim Noroeste, foi inaugurada em 19 de abril. Ele afirma que pretende implementar uma “mudança de paradigma” no órgão indigenista oficial.


 


Para Meira, o papel da Funai não deve ser o de implementar ela mesmo os programas, mas desenvolver as linhas das políticas que deverão ser implementadas pelo governo federal no bojo da ação direta dos ministérios. “O tempo em que a Funai fazia tudo acabou. O papel não é ter os programas, mas é fazer as articulações para que o Ministério das Cidades, dentro de seus planos, contemple moradia e saneamento ambiental para estas populações”, exemplifica.


 


O tema dos índios nas cidades só passou a ser pauta na Funai oficialmente depois da 1a Conferência Nacional dos Povos Indígenas, realizada em abril de 2006. Os delegados indígenas aprovaram a inclusão de um capítulo sobre “índios urbanos” no documento final do encontro. Os 24 itens tratam de demandas por território, por educação (construções e escolas para jovens e adultos e apoio para a sobrevivência de universitários), e por assistênciaà saúde (garantia de atendimento e de inclusão desta população nos cálculos do orçamento de saúde, entre outros).


A gestão anterior de Mércio Gomes não realizou, no entanto, nenhuma movimentação para o encaminhamento dessas decisões, segundo informação de Mateus Terena, da Coordenação Geral de Direitos Indígenas da Funai, em Brasília. As ações da Funai continuam sendo pontuais – como a contribuição para a alimentação dos expositores na feira de artesanato indígena Pú Kaa, em Manaus. São definidas pelas administrações regionais, sem orientação nacional, e não vão além do “acompanhamento”.


 


A atuação do órgão oficial, até este momento, é questionada por lideranças. “Não querem a gente na cidade porque ficamos visíveis, porque eles têm que nos ver. Estando aqui, na capital do estado, estamos disputando espaço, cobrando da Funai. De lá da terra indígena, não tem nem dinheiro para comprar passagem e vir pra cá dizer nada”, afirma Vicente Kaingang, do Morro do Osso, em Porto Alegre.


 


Ocupando o espaço deixado pelo governo federal, o município de Porto Alegre criou, dentro da Secretaria de Direitos Humanos, um Núcleo de Políticas Públicas para Povos Indígenas, com o propósito de reunir as secretarias do poder público municipal e representantes Kaingang e Guarani, e articular a políticas municipais voltadas a esta população. São Paulo tem desde 2004 um Conselho Estadual Indígena, vinculado à Secretaria de Planejamento, com a função de articular as políticas públicas, ligado ao Poder Executivo. Campo Grande tem, desde 2005, um Conselho Municipal de Direitos e Defesa dos Povos Indígenas , formado por 9 povos e 11 organizações indígenas, e responsável por ouvir demandas dos povos da cidade e encaminha-los ao prefeito. Nas reuniões mensais, o conselho define as prioridades, mas a decisão sobre o encaminhamento das políticas ainda fica nas mãos do prefeito.



Mas, sem uma linha nacional para as políticas, ainda não existe uma referência de atendimento governamental às demandas. E os povos nas cidades continuam dependendo da abertura que conseguem em cada governo para que políticas públicasestruturadas que possam atender a suas necessidades particulares e universais.


 


* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo 


 


 

Fonte: Agencia Reporter Brasil
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