18/05/2007

Análise do despacho da Consultora Jurídica Substituta do Ministério da Justiça, por Claudio Luiz Beirão

ANÁLISE DO DESPACHO GAB/CJ N.° 175 / 2005 DA CONSULTORA JURÍDICA SUBSTITUTA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA QUE SUGERIU A REAVALIAÇÃO DO RELATÓRIO DE IDENTIFICAÇÃO DA TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS – SC


 


 


I – Introdução


 


            Em agosto de 2006, a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, em Brasília, foi procurada pelas lideranças Guarani Guarani Mbyá e Nhandeva que ocupam a terra indígena Morro dos Cavalos, a fim de analisar a situação do procedimento administrativo de demarcação daquela terra.


            As lideranças informaram que foram procuradas por servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) que alegaram a necessidade da elaboração de um laudo a ser encaminhado ao Ministério da Justiça em resposta a um despacho da Consultoria Jurídica daquele Ministério.


            Diante da solicitação dessas lideranças, a assessoria jurídica do Cimi apresenta este parecer.


            Ressalta-se que não foi possível ter acesso aos autos deste processo, que se encontra na CGID/Funai desde o dia 17 de fevereiro de 2006. Portanto, esta análise foi feita através de cópia de peças do procedimento administrativo de demarcação daquela terra, fornecidas pela equipe do Cimi, regional Sul, que atua junto aos Guarani em Palhoça/SC e região.


 


II – A tramitação do procedimento administrativo


 


            A terra indígena Morro dos Cavalos, situada no município Palhoça, Santa Catarina, de ocupação tradicional dos Guarani Mbyá e Nhandeva, foi objeto de estudos de identificação e delimitação pelo Grupo Técnico (GT) designado pelo presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) através da Portaria 839/ PRES,  em 16 de outubro de 2001, coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira.


            O presidente da Funai aprovou, através do Despacho nº 201  de  17 de novembro de 2002 (publicado no Diário Oficial da União – DOU em 17/11/2002) o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do referido GT e determinou a publicação do seu resumo nos diários oficiais da União e do Estado de Santa Catarina. O resumo foi publicado no Diário Oficial do Estado (DOE) daquele Estado em março de 2003.


            Com as publicações e a fixação do resumo do relatório e mapas na prefeitura de Palhoça, deu-se início à fase do contraditório estabelecido pelo Decreto nº 1.775/96. Nesta fase, onde qualquer interessado pode apresentar manifestações à Funai pleiteando indenização ou demonstrando vícios no relatório, 04 interessados usaram deste direito. Entre eles estão a Fundação do Meio Ambiente (Fatma), órgão ambiental do Governo de Santa Catarina; o representante do Ministério Público do Estado em Palhoça e Walter Alberto Sá Bensousan.


            Após o prazo de noventa dias para manifestações, a Funai encaminhou, no dia 06 de Outubro de 2003, os autos do processo administrativo nº. 08620.002359/1993/06, com os respectivos apensos e pareceres contrários às manifestações apresentadas, ao Ministro de Estado da Justiça. A Consultoria Jurídica Ministério da Justiça, por seus advogados, apresentou parecer favorável à publicação da Portaria ministerial declarando como terra indígena os 1.988 hectares propostos pelo Relatório Circunstanciado do GT da Funai.


            No dia 21 de outubro de 2005, o Procurador de Estado do Estado de Santa Catarina, Loreno Weissheimer, encaminhou memoriais diretamente à Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, requerendo o seguinte:


Diante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Constituição da República, das razões fáticas e doutrinárias acima apontadas, a , pretensão de declaração de terra indígena há de ser julgada improcedente, em vista de estar demostrado dos autos, não se tratar de terra tradicionalmente ocupada pelos silvícolas e a garantia do direito de propriedade assegurado pela magna carta.


Ainda, há que excluir do rodovia federal de eventual área que venha a ser reservada pela União, mediante prévia e justa indenização dos proprietários.


Ora pretendemos um País democrático, onde às leis, emanadas da autoridade competente, é que governam, e que a autoridade se submeta à lei, já que os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, são preceitos constitucionais (art. 37, caput).” (às fls. 896 e 897 do Processo nº  08620.002359/1993-06  )


            Passados mais de dois meses em análise no Ministério da Justiça, no dia 02 de fevereiro de 2006, a Consultora Jurídica Substituta, Cristiane Schineider Calderon, por meio do Despacho GAB/CJ nº 175/2005, às fls. 899 do processo nº 08620.002359/1993-06, determinou que o Processo que trata da identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos retornasse à presidência da Funai com a seguinte conclusão:


Face ao acima exposto, e considerando a necessidade de propiciar a necessária segurança ministerial, por ocasião da expedição de portaria declaratória, encaminhem-se estes autos e seus anexos à Fundação Nacional do Índio – FUNAI, sugerindo àquela Fundação que seja reavaliado o relatório de identificação da referida terra indígena, com observância do contido no Memorial apresentado pelo estado de Santa Catarina e acórdão do TCU, precedendo a manifestação conclusiva desta Consultoria Jurídica-MJ.” (Grifei)


            No dia 06 de fevereiro de 2006, o Procurador-Geral da Funai, Luiz Fernando Villares e Silva, despachou os autos para ser submetido à Diretoria de Assuntos Fundiários para oferecer parecer sobre a petição do Estado de Santa Catarina. Segundo despacho do Diretor substituto da referida diretoria, Reinaldo Florindo, os autos foram encaminhados à Coordenação Geral de Identificação (CGID) daquele órgão, no dia 09 de fevereiro de 2006.


 


III. Quanto à recepção das manifestações do Estado de Santa Catarina pela Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça


 


            Antes de analisar o despacho da Consultora Jurídica, se faz necessário situá-lo no procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas e explicar como atualmente a União cumpre a sua obrigação constitucional de demarcar as terras dos Povos Indígenas.


            As terras indígenas, de que tratam o art. 231 da Constituição Federal e o art. 17, I, da Lei n° 6.001/1973, são administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação da Funai, de acordo com o disposto no Decreto nº 1.775, de 09 de janeiro de 1996, que regula o procedimento.


            O procedimento administrativo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, tradicionalmente ocupada pelos Guarani Mbyá e Nhandéva, segue os tramites previstos neste decreto.


            Recorrendo aos ensinamentos de Diógenes Gasparini[1], podemos afirmar que os processos administrativos de demarcação de terras indígenas se constituem em atos ordenados e cronologicamente praticados que se destinam a cumprir o objetivo da administração pública federal, que é o de demarcar uma terra tradicionalmente ocupada por índios.


            De acordo com o Decreto 1.775/96 estes atos são agrupados nas seguintes fases: identificação, contraditório, delimitação, demarcação, homologação e registro.


            Na fase corresponde à identificação, o presidente da Funai cria Grupo Técnico com o objetivo de iniciar o processo administrativo para demarcação de uma terra indígena que termina ao aprovar o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação que deverá ser publicado no DOU, nos DOE’s e nas respectivas sedes das prefeituras dos municípios onde se localiza a terra indígena. É nesta fase que se estabelece quem são as pessoas que poderão se contrapor à posição da administração pública e pleitear a ampla defesa de seus interesses.


            Na fase do contraditório, os interessados apresentam as suas provas para elucidação dos fatos a fim de que a administração possa decidir quanto ao processo. Como o processo de demarcação de uma terra indígena não se caracteriza em um processo punitivo, cabe ao interessado a atribuição de provar o que se alega com a produção das provas. Neste tipo de processo os interessados têm 90 dias, após as publicações, para apresentar suas provas (§ 8º do art. 2º do Decreto 1.775/96). Concluída esta fase, o processo passa para a fase de delimitação.


            Antes de passar para a próxima fase cabe a Funai elaborar os pareceres previstos no § 9º do art. 2º do Decreto 1.775/96. Segundo este dispositivo a Funai encaminhará, num prazo de sessenta dias, o procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas, isso após o termino da fase do contraditório.


            Na fase de delimitação, cabe exclusivamente ao Ministro de Estado da Justiça a decisão sobre o contraditório, conforme o previsto no § 10 do art. 2º do Decreto nº 1.775/96. Gasparini faz o seguinte comentário quanto a esta fase nos processos administrativos:


Nesta última fase do processo administrativo, a autoridade ou o órgão competente profere uma decisão sobre o objeto do processo. Para essa ação não há qualquer faculdade para a Administração pública, pois trata-se de dever-poder de proferir a decisão, que comumente está baseada na conclusão do relatório. Não obstante assim se proceda, a autoridade ou o órgão competente pode desprezar as conclusões do relatório ou mesmo contrariá-las, em face da interpretação diversa das normas jurídicas aplicáveis no caso ou se, em razão dos fatos, chegar a outra conclusão, e decidir de modo diferente do sugerido no relatório. O imprescindível é que a decisão seja fundamentada na prova ou informações constantes do processo administrativo. Nenhum argumento, prova ou informações, fora dos autos pode ser usado como fundamento da decisão.” [2]Grifei


            Nesta fase de delimitação o Decreto nº 1.775/96 facultou à autoridade pública três opções para a sua decisão, dentro de um prazo de trinta dias, a saber: declarar, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinar a sua demarcação[3]; ou prescrever todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser  cumpridas no prazo de noventa dias; ou desaprovar a identificação e retorno dos autos à Funai, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1.°  do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.


            No caso sob análise, o processo encontra-se nesta fase de decisão (delimitação).


            Ocorre que, comumente, estes 30 dias não têm sido cumpridos pelo atual Ministro de Estado da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ficando os processos no Gabinete do Ministro em até um ano no aguardo de decisão.


            Os autos do procedimento administrativo são encaminhados pelo Presidente da Funai através de despacho e protocolado no Gabinete do Ministro da Justiça.


            Antes de praticar o ato administrativo que irá expor a sua decisão o Ministro de Estado da Justiça, através do seu Gabinete, solicita à Consultoria Jurídica a elaboração de parecer com análise do caso, para opinar se o procedimento cumpriu os tramites previstos na norma especifica. Inclusive analisar a minuta do ato administrativo que o acompanha.


            Na Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça o processo é encaminhado à Coordenação de Estudos e Pareceres (CEP), unidade deste órgão a quem compete realizar as análises dos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas. Nesta coordenação é designado um servidor do corpo técnico jurídico do órgão para elaboração de uma manifestação sobre o procedimento. Estas manifestações devem ser aprovadas ou rejeitadas pelo Consultor Jurídico, formulando observações e ressalvas que eventualmente julgar necessárias.


            Após essa análise do corpo técnico jurídico da Consultoria Jurídica e após  aprovação ou rejeição por parte do Consultor Jurídico do Ministério, o procedimento administrativo é encaminhado, no caso de demarcação de terra indígena, ao Ministro de Estado da Justiça.


            A Portaria Nº 1.850, de 23 de setembro de 2005, publicada no DOU em 26/09/2005, aprovou o regimento interno da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça, revogando a Portaria nº 147 de 21/02/2002, que orienta esta tramitação do procedimento administrativo.


            O Processo nº 08620.002359/1993/06 foi analisado por um servidor do Corpo Técnico Jurídico da Consultoria Jurídica, que apresentou sua manifestação favorável à continuidade do procedimento sugerindo a declaração da área como terra indígena pelo Ministro de Estado da Justiça na forma da minuta de portaria que se encontra anexado aos autos. Esta manifestação foi aprovada pelo Consultor Jurídico e devolvida ao Gabinete do Ministro.


            Portanto, desde o dia em que o parecer da CEP foi aprovado pelo Consultor Jurídico titular e encaminhado ao Ministro de Estado da Justiça, o procedimento administrativo já se encontrava em condições de ser objeto de decisão do Ministro.


            A manifestação do Estado de Santa Catarina foi feita fora da fase de contraditório, já no momento de decisão do Ministro de Estado da Justiça. Cabia exclusivamente a ele, autoridade máxima daquele ministério, receber ou não este requerimento. Acatar ou não os seus fundamentos.


            Mas, no caso em tela, é flagrante a existência da preclusão administrativa. O eminente Sérgio Ferraz, ao tratar do assunto de preclusão no processo administrativo, nos ensina:


 “A contraface do prazo processual é a preclusão processual, como tal se entendendo a perda de uma faculdade processual, por inércia ou intempestividade do seu exercício, por parte de quem a podia fazer atuar.” [4]Grifei


            Este mesmo jurista, em uma palestra no I Seminário de Direito Administrativo promovido pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo, ao explanar sobre o tema “PRAZOS – PRECLUSÃO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO”, faz uma afirmação que bem poderia ser aplicada aos processos administrativos de demarcação de terras indígenas:


“A preclusão é exatamente o exaurimento de uma faculdade de atuar no processo, porque consumido o tempo para produção da sua exteriorização. A preclusão tem duas faces: uma face negativa, porque ela é obstativa de que o processo volte atrás, mesmo que seja para corrigi-lo; e outra face profundamente positiva, porque exatamente em razão desse impedimento, ela empurra o processo para a frente, ela faz com que a idéia de tempo novamente apareça e impulsione aquele que tem que atuar no processo, comprometido com a idéia de tempo.” [5]grifei


            Ora, ao Estado de Santa Catarina foi dado, pelo Decreto nº 1.775/96, a possibilidade de apresentar as suas manifestações em relação à demarcação da terra indígena Morro dos Cavalos, e ele não o fez no prazo previsto. Não poderia, nesta fase de decisão do Ministro, o processo administrativo retornar à Funai. Ao contrário do que determinou a consultora jurídica, o processo tinha que “andar para frente” a fim de que o Ministro decidisse a partir das provas e das informações constantes no processo.


            Não é competência da Consultora Jurídica do Ministério da Justiça substituir o “dever-poder” do Ministro de Estado da Justiça em decidir sobre os procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas. Ou seja, cabe à Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça auxiliar o titular da Pasta na decisão do procedimento, o seu papel no processo é o de oferecer manifestação ao Ministro sobre a situação do processo, observando se este cumpre o que determina a legislação especifica.


            No caso dos processos de demarcações de terras indígenas, o parecer obrigatório e não vinculante para a administração que irá decidir sobre a proposta de demarcação e as manifestações contrárias ao Relatório do GT é aquele que a Funai encaminha junto com os autos e é previsto no Decreto nº 1.775/96 em seu § 9º do seu art. 2º.


            As manifestações da Consultoria Jurídica do Ministério no procedimento administrativo de demarcação têm outro caráter, que é de assistir ao Ministro de Estado da Justiça no controle interno da legalidade do ato administrativo a ele proposto.


            Desta forma, o correto e em respeito ao principio constitucional do devido processo legal e da eficiência e ao direito fundamental dos administrados de razoável duração do processo administrativo e celeridade da tramitação destes processos (art. 37 caput e inciso LXXVIII do art. 5º ambos da Constituição Federal) o Ministro de Estado da Justiça decida superando sua omissão atentatória a probidade administrativa. 


            Sobre este prazo, Celso Bandeira de Mello[6] afirma que 30 dias é tempo razoável para administração se pronunciar, uma vez concluída a instrução do processo administrativo, onde faltar lei disciplinando a matéria, por analogia. No caso de processos administrativos de demarcação de terras indígenas, a norma determina os 30 dias.


            O eminente professor adverte quanto ao não cumprimento do prazo razoável indicando duas possibilidades de demanda judicial quando decorrido esse tempo com a omissão administrativa:


“a) que o Juiz supra a ausência de manifestação administrativa e determine a concessão do que fora postulado, se o administrado tinha direito ao que pedira, isto é, se a Administração estava vinculada quanto ao conteúdo do ato e era obrigatório o deferimento da postulação;


b) que o Juiz assine prazo para que a Administração se manifeste, sob cominação de multa diária, se a Administração dispunha de discrição administrativa no caso, pois o administrado fazia jus a um pronunciamento motivado, mas tão-somente a isto.”[7]


            O despacho da Consultora, retornando o processo administrativo sem que o Ministro decida nos termos do Decreto nº. 1.775/96, de certa forma contribui para a ocorrência da omissão da administração.


            A Consultora não poderia tomar qualquer tipo de decisão em relação ao processo que importasse em aceitação ou não das manifestações e em concordância ou não do Relatório Circunstanciado de identificação e delimitação feito pelo GT da Funai. 


            Caso a Consultoria Jurídica observasse que o Relatório descumpria as regras previstas no Decreto nº 1.775/96 e pela Portaria Ministerial MJ nº 14, de 09 de janeiro de 1996, publicada no Diário Oficial da União – DOU em 10/01/1996, como por exemplo, a falta de quaisquer dos quatro elementos[8] previstas no §1.° do art. 231 da Constituição Federal, que compõem o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, poderia indicar ao Ministro da Justiça quais as diligências a serem cumpridas pela à Funai, para o deslinde do processo.


                        Este órgão de assessoria não tem o poder de determinar de ofício o retorno dos autos à Funai, especialmente, quanto ao seu mérito, ou seja de reconhecer uma área como terra tradicionalmente ocupada por povo indígena. 


            É de competência exclusiva do Ministro da Justiça qualquer decisão em relação ao procedimento, por força do que determina o Decreto nº. 1.775/96.


            Houve, portanto um equívoco por parte da Consultora Jurídica em determinar o retorno do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos a Funai.


            O mais acertado, no caso, era ter se posicionado quanto à manifestação do Estado de Santa Catarina, como intempestiva, no sentido de sua preclusão, por ter sido apresentada fora do prazo legal.


            A determinação da Consultora Jurídica substituta, mesmo que como sugestão à Funai, de reavaliação do relatório é totalmente descabida, privilegia um possível interessado e só prejudica os Guarani Mbyá e Nhandéva que ficam na espera de uma decisão administrativa sem prazo.


            Ao caso, a Consultora Jurídica, deveria ter sugerido ao Ministro de Estado da Justiça que ao decidir aplica-se o adágio romano “dormientibus non succurrit jus” (o direito não socorre aos que dormem).


 


IV – A posição do TCU em relação à demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos


            Em 2005, o Tribunal de Contas da União (TCU) analisou uma representação que denunciava possíveis irregularidades na escolha do projeto de transposição do morro dos cavalos, que faz parte da duplicação da BR-101, compreendido entre a Região Metropolitana de Florianópolis/SC e Osório/RS.


            O TCU decidiu sobre a representação da seguinte forma:


“ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão Plenária, ante as razões expostas pelo Relator, em:


9.1. conhecer da Denúncia, com fundamento no art. 53 da Lei 8.443/92, por preencher os requisitos de admissibilidade previstos nos arts. 234, caput, e 235 do Regimento Interno do TCU, para, no mérito, considerá-la parcialmente procedente;


9.2. determinar ao Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes – Dnit, na condição de responsável pela duplicação da Rodovia BR-101/Sul, e ao Ministério dos Transportes, na condição de supervisor ministerial daquele, que adotem, conjunta ou isoladamente, as ações necessárias à efetiva escolha e implementação do melhor projeto para a travessia do Morro dos Cavalos em Santa Catarina, em especial às seguintes medidas:


9.2.1. proceda aos estudos e levantamentos necessários à escolha e implementação do melhor projeto de travessia do Morro dos Cavalos em Santa Catarina, sob os aspectos técnico, econômico, social e ambiental e da preservação dos direitos indígenas, levando em consideração, neste último caso, a opinião das próprias comunidades e das organizações e pessoas que apóiam e defendem a sua causa, e em especial os seguintes:


9.2.1.1. estudos geotécnicos complementares para aprofundamento do conhecimento do maciço rochoso existente no Morro dos Cavalos, tendo em vista que os estudos até então realizados se limitaram às áreas de embarque e desembarque previstos para a construção de túnel sob o morro;


9.2.1.2. estudos com métodos elétricos e eletromagnéticos de prospecção geofísica para caracterização dos aqüíferos subterrâneos eventualmente existentes em Morro dos Cavalos;


9.2.1.3. estudos necessários ao esclarecimento sobre se há, ou não, necessidade de remoção da comunidade indígena que habita o Morro dos Cavalos, quando do período de instalação e execução da obra e, em especial, com vistas à adoção da solução que contemple a construção de um ou dois túneis sob o morro, de forma a ficar cabalmente demonstrado que inexiste, para a solução a ser escolhida, riscos à área de superfície do morro, às habitações lá existentes e aos indígenas que lá vivem, durante e após a fase de execução das obras;


9.2.1.4. demais estudos ambientais complementares da terra indígena que se mostrarem necessários e que sejam indicados pela Funai;


9.2.2. no caso de necessitar de laudo pericial de natureza antropológica para mais bem analisar a questão indígena, sirva-se de profissionais ou expertos isentos e não ligados à defesa dos interesses daquelas comunidades;


9.2.3. antes da realização dos estudos técnicos indicados nos itens 9.2.1.e 9.2.2, busque obter, junto à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral da Funai, pronunciamento definitivo sobre a possibilidade jurídico-constitucional de construção de túnel sob o Morro dos Cavalos, de forma a conferir segurança e fundamentação jurídica necessárias à implementação dessa solução, caso venha a ser esta a escolhida, ou como forma de justificar mais solidamente a opção por outro projeto, caso fique demonstrada a impossibilidade jurídica de construção de túnel sob as terras indígenas;


9.3. alertar o Dnit de que a escolha de projeto mais oneroso ou menos adequado sob os aspectos técnico, econômico, social, ambiental e relacionados à preservação dos direitos e interesses indígenas eventualmente detectados, se não estiver fundamentada em razões concretas, relevantes, razoáveis e atuais – ou, sendo futuras, se não estiver demonstrada a sua probabilidade de ocorrência ou viabilidade – poderá configurar ato ilegítimo ou antieconômico passível de sanção por este Tribunal, na forma da Lei 8.443/92;


9.4. determinar ao Dnit que:


9.4.1. somente dê continuidade ao procedimento licitatório para contratação de empresa para elaborar o projeto de engenharia da travessia do Morro dos Cavalos após a identificação da solução mais adequada, fundamentada nas conclusões obtidas nos estudos técnicos e jurídicos determinados nos itens anteriores deste acórdão;


9.4.2. dê conhecimento ao Tribunal das conclusões a que chegaram os estudos mencionados;


9.5. enviar cópia deste Acórdão, acompanhado do Relatório e Voto que o fundamentam ao denunciante, ao Ministério dos Transportes, ao Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes – Dnit, ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, à Fundação Nacional do Índio – Funai, à 6.ª Câmara do Ministério Público Federal em Brasília; à Procuradora Analúcia Hartmann do Ministério Público Federal em Santa Catarina; ao Ministério da Justiça, à Fundação Estadual do Meio Ambiente de Santa Catarina – Fatma, ao Ministério Público do Estado de Santa Catarina, à Advocacia Geral da União e à Comissão Mista de Orçamentos Públicos e Fiscalização Financeira do Congresso Nacional;


9.6. retirar a chancela de sigilo que recai sobre estes autos, preservando-se no entanto a identidade do denunciante, consoante disposto no § 1º do art. 236 do Regimento Interno/TCU;


9.7. determinar à Secex/SC que acompanhe o cumprimento das providências determinadas neste acórdão, representando ao Tribunal, caso necessário.” (grifei)


(Processo 003.582/2005-8 – Relator Ministro Augusto Sherman Cavalcanti. Ata 16/2005 – Plenário. Sessão 11/05/2005. Aprovação 09/05/2005 DOU 12/05/2005)


 


 


            Depreende-se desta decisão que o TCU não apreciou o mérito de se Morro dos Cavalos é ou não terra indígena. Ao contrário do que tenta afirmar o Estado de Santa Catarina e como deu a entender a Consultora Jurídica Substituta em seu despacho.


            Não é competência do TCU analisar se determinada terra é tradicionalmente ocupada por um grupo indígena. Não tem este órgão a competência legal e administrativa para analisar esta matéria.


            Quanto à hipótese de construção de rodovias, ou outro tipo de edificações em terras indígenas há um outro complicador que em respeito ao erário o TCU poderia ter analisado, mas não fez.


            Ora se determinado espaço territorial será demarcado como terra indígena tradicionalmente ocupada, em respeito ao que deliberou a Constituição Federal, ocorrerá outro tipo de situação.


            Segundo determina a Constituição Federal no mesmo art. 231, § 6º todo ato que tenha por objeto a posse, o domínio de terra indígena não pode ser efetivado, exceto na hipótese de ocorrer relevante interesse público da União. E pela norma constitucional só uma Lei Complementar é que pode definir o que é esse relevante interesse da União Federal.


            Não há uma lei complementar vigorando no país que disponha sobre esse assunto.


            Portanto, todas as obras e edificações em terras indígenas afrontam o que dispõe a norma constitucional, seus atos por mais revestido de legalidade que possuam são nulos, sem efeitos jurídicos.


            Talvez seja isto que a decisão do TCU coloca como medidas a serem tomadas pela administração pública federal a fim de conferir “segurança e fundamentação jurídica necessárias” na escolha do melhor projeto que respeite os direitos e interesses dos Guarani Mbyá e Nhandéva.


            Por fim, não há recomendações do TCU à Funai em relação ao procedimento administrativo de demarcação da terra indígena Morro dos Cavalos.


 


V – O Judiciário e a omissão do Ministro da Justiça em decidir nos procedimentos de demarcação de terras indígenas


 


            O Ministério Público Federal em Santa Catarina tem ingressado com ações civis públicas para determinar à União, na pessoa do Ministro de Estado da Justiça Márcio Thomaz Bastos, o cumprimento ao disposto no §10 do art. 2º do Decreto nº. 1.775/96 em diversos processos administrativos de demarcação de terras indígenas.


            A Justiça Federal em Santa Catarina, especialmente a seção judiciária de Chapecó, tem concedido liminares nessas ações para determinar que o Ministro da Justiça decida, sob pena de multa diária em caso de descumprimento.


            A União tem agravado dessas decisões perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF- 4) alegando entre outros argumentos o de que é vedado ao Poder Judiciário, face ao princípio da separação dos poderes, apreciar o mérito dos atos administrativos. Esta tese não tem sido acatada por este Tribunal, seja em decisões interlocutórias ou definitivas.


            A Terceira Turma daquele Egrégio Tribunal, por unanimidade, tem negado provimento a estes agravos de instrumentos. A título de ilustração, vejamos duas ementas de acórdãos desta Turma, sobre a matéria:


 


AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERRAS INDÍGENAS. DEMARCAÇÃO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. MULTA DIÁRIA NO CASO DE DESCUMPRIMENTO.


Em face de preceito constitucional expresso (art. 231), compete à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, em caráter permanente, no intuito de preservar sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, através de procedimento administrativo consignado em lei.


Concluído o procedimento administrativo de demarcação arrimado no preceito constitucional acima referido e com presunção de legalidade, compete ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de 30 (trinta) dias, a teor do disposto no § 2º do art. 10 do Decreto 1.775/96, expedir Portaria, declarando os limites da terra indígena e determinando sua demarcação ou, em desaprovando a identificação e delimitação realizada pela FUNAI, enviar de volta os autos do processo administrativo ao referido órgão federal de assistência ao índio.[9]


 


AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FUNAI. DEMARCAÇÃO DE TERRAS. MULTA.


Da demora em ultimar a demarcação das terras indígenas em questão, advém os inegáveis prejuízos, pois a incerteza no que diz respeito à propriedade das terras contribui para o acirramento dos conflitos entre índios e agricultores. A aplicação de multa diária pelo descumprimento de obrigação, tem previsão no § 4º do art. 461 do Código de Processo Civil.[10] Grifei


 


                        Esta postura da administração pública em não decidir, como bem observou a Juíza Federal relatora dos dois agravos, Vânia Hack de Almeida, tem acirrado os conflitos nas regiões. Destaca-se parte do voto da eminente relatora no agravo de instrumento nº. 2004.04.01.013313-0/SC, acima ementado, que demonstra a preocupação do Judiciário em relação a esta omissão do Ministro da Justiça:


“O ordenamento jurídico vigente impõe à autoridade administrativa a pratica do ato administrativo em questão no prazo de trinta dias, contados do recebimento do processo administrativo, sendo manifesto o descumprimento da diretriz legal. Não há espaço para a Administração Pública eleger o melhor momento para ultimar o procedimento administrativo demarcatório; tendo-lhe sido atribuída por lei a missão, cumpre a ela empreender esforços para realizar a concreta e efetiva atividade administrativa

Fonte: Cimi
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