Santa Catarina: demarcação de terras indígenas deslocará 1.100 famílias; hidrelétricas deslocarão 10 mil
A presença ancestral de distintos povos, mais conhecidos como povos indígenas, com suas culturas milenares, no território brasileiro, é de conhecimento público e notório. No estado de Santa Catarina, a presença de três destes povos, Guarani, Kaingang e Xokleng, é comprovada pelos diferentes ramos da ciência moderna. É conhecido também o fato de, ao longo do processo de colonização do território brasileiro, e do território catarinense em particular, muitos destes povos terem sido usurpados, maltratados e massacrados. Os sucessivos governos, em âmbito nacional e estadual, patrocinaram este processo de colonização e, apesar de todas as conseqüências desastrosas em relação, entre outros, ao meio ambiente e aos povos indígenas, justificaram-no historicamente com base no discurso positivista-liberal que prega a necessidade, sempre prioritária, do “progresso” e do “desenvolvimento”. A resistência e a luta dos indígenas fez com que o Estado brasileiro reconhecesse constitucionalmente o direito destes povos em relação às terras que tradicionalmente ocupam. Esta tradicionalidade indígena em relação à determinada terra é comprovada, por sua vez, por meio de um procedimento administrativo legal e antropologicamente fundamentado. No momento em que se comprova a tradicionalidade indígena em relação a uma determinada terra, se reconhece que a mesma é e sempre foi Terra Indígena. Ocorre que, em muitos estados brasileiros, dentre os quais o estado de Santa Catarina, as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e, portanto, por direito suas, foram objeto dos processos de colonização acima mencionados e estão, de fato, ocupadas por famílias não-indígenas. Em Santa Catarina, são muitas as terras tradicionalmente indígenas. No estado, estão em curso alguns procedimentos administrativos que visam comprovar a referida tradicionalidade e, portanto, reconhecer o direito indígena sobre elas. Neste sentido, no último dia 19 de abril, foram assinadas, pelo Ministro da Justiça, portarias declarando a tradicionalidade indígena de sete terras, dentre as quais quatro estão localizadas em território catarinense: as Terras Indígenas Guarani do Araça’í, Xapecó, Toldo Imbu e Toldo Pinhal. Estas terras, agora comprovada e reconhecidamente indígenas, estão ocupadas por cerca de 500 famílias não-indígenas, dentre as quais, pequenos agricultores e latifundiários. Bastou ser anunciada a assinatura das portarias ministeriais para que os arautos do “progresso” e do “desenvolvimento” a qualquer custo, em Santa Catarina, arregimentassem discursos e notas públicas, sempre sob a nobre justificativa da defesa dos interresses das famílias de pequenos agricultores atingidos. Sindicatos Rurais ligados ao latifúndio, conglomerados cooperativos, parlamentares estaduais e federais, vereadores e prefeitos de diversos partidos políticos, secretários de estado e o próprio governador passaram a manifestar, com grande agilidade e efervescência, em canais de televisão, rádios, jornais e tribunas, sua contrariedade em relação ao ato governamental que reconheceu o direito indígena sobre suas terras. O discurso unívoco destes setores vem exigindo a revogação das referidas portarias sob a justificativa de que proporcionarão a “expulsão” e o abandono das famílias de pequenos agricultores das “suas” terras. O empenho destes setores conservadores da sociedade catarinense neste sentido é tamanho que, no rol de ações ligadas à estratégia da pressão política para que ocorra a revogação das portarias, alguns têm recorrido a manifestações públicas segundo as quais, não havendo rápida revogação, um “derramamento de sangue” seria iminente na região oeste de Santa Catarina. Isto caracteriza um inequívoco incentivo à violência contra os povos indígenas. Por outro lado, é também de conhecimento público a grande incidência de projetos relacionados à geração de energia por meio da construção de usinas hidrelétricas nos mais diversos rios que cortam o estado de Santa Catarina, bem como, as conseqüências advindas disso sobre os pequenos agricultores atingidos pelas barragens. Dados oficiais demonstram que, enquanto a regularização das terras indígenas em curso no estado, incluindo as recentemente reconhecidas, acarretarão o deslocamento de cerca de 1.100 (mil e cem) famílias de agricultores, as usinas hidrelétricas já construídas e projetadas em solo catarinense farão com que sejam deslocadas mais de 10.000 (dez mil) famílias de pequenos agricultores. A exemplo do número de famílias atingidas, a extensão de terra a ser alagada em função da construção de hidrelétricas é proporcionalmente maior em relação à extensão de terra a ser restituída aos povos indígenas no estado. Tomando por base o argumento utilizado para justificar a imediata, contundente e empenhada reação contrária ao reconhecimento das terras indígenas, a saber, a defesa dos interesses dos agricultores ameaçados de serem “expulsos” de “suas” terras, seria coerente supor que uma reação ainda mais contundente ocorreria, por parte destes mesmos setores, nos casos relacionados à construção das hidrelétricas, já que a ameaça de expulsão dos pequenos agricultores também se faz presente e de forma bem mais abrangente. Estranhamente, no entanto, não é o que vem ocorrendo até o momento. Os casos das Usinas Hidrelétricas de Barra Grande, Foz do Chapecó e Campos Novos são exemplares neste sentido. A primeira ficou mundialmente conhecida pelas fraudes no estudo de impactos ambientais que acarretaram no alagamento de aproximadamente 5.636 hectares de mata nativa coberta de araucárias centenárias e de 2.686 hectares de vegetação secundária, além do deslocamento de 1.500 famílias de agricultores, muitas das quais sequer indenizadas até o momento. A usina de Foz do Chapecó, em obras desde o início deste ano e localizada na divisa dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, quando concluída, deslocará cerca de 3.500 famílias de pequenos agricultores, das quais mais de 1.500 somente em solo catarinense e inundará 3.923 hectares de terra. Em ambas, os pequenos agricultores atingidos se mobilizaram a fim de conquistar o mínimo de direitos relacionados a indenizações e reassentamentos. Porém, ficaram falando sozinhos. Nada de discursos acirrados, notas públicas em jornais, entrevistas em rádios e emissoras de televisão, pedidos de audiências em ministérios a fim de exigir a suspensão das obras e defender os interesses dos pequenos agricultores. Ao contrário disso, federações sindicais, parlamentares, prefeitos, vereadores, secretários e governador têm se manifestado invariavelmente na defesa dos argumentos utilizados pelos representantes das grandes empresas que exploram o potencial energético no estado, muitas delas multinacionais. Em Campos Novos, onde são atingidas cerca de 700 famílias, o governo catarinense chegou a ponto de patrocinar, com dinheiro público, a instalação e a manutenção, durante meses, de um posto da brigada militar no interior do canteiro de obras da hidrelétrica, a fim de protegê-la de possíveis manifestações dos pequenos agricultores na busca por seus direitos. Em conseqüência disso, ocorreram diversos confrontos, resultando no ferimento de dezenas de pequenos agricultores. Estamos, pois, diante de um grande paradoxo. Por que os setores político-econômicos acima mencionados, que tanto se esmeram na defesa dos “interesses dos pequenos agricultores” quando estes são “atingidos” pelas regularizações de terras indígenas, não o fazem quando, analogicamente, esses pequenos agricultores são atingidos pela construção de usinas hidrelétricas em Santa Catarina? Diante de tamanho paradoxo, é impossível não desconfiar da justificativa utilizada por tais setores nesta ação anti-indígena que observamos atualmente. Será realmente a defesa do interesse dos pequenos agricultores o real motivo desta reação contrária ao reconhecimento do direito indígena sobre suas terras tradicionais em Santa Catarina? Quais as motivações reais de, num caso, haver exaustão na defesa dos interesses dos pequenos agricultores e, no outro, haver tamanha insensibilidade em relação a esses mesmos interesses? Seria porque, de um lado, estão povos indígenas e, de outro, grandes conglomerados empresariais? Na busca de uma resposta plausível a estes questionamentos, não podemos deixar de fazer referência ao discurso, baseado numa cosmovisão de cunho positivista-liberal, utilizado historicamente para justificar a invasão e a expulsão dos povos indígenas de seus territórios, a saber, a necessidade do “progresso” e do “desenvolvimento” regional e nacional. Diante dos fatos, antigos e atuais, fica evidente que não é a defesa dos pequenos agricultores que move tais setores nesta nova ação sincronizada contra o direito dos povos indígenas no estado catarinense. Fundamentalmente, o que os move é seu egocentrismo cultural fortemente enraizado no preconceito anti-indígena que não admite o fato de verem reconhecidos direitos e de terem que ceder espaço a estes povos. O que os move é o não reconhecimento da legitimidade do modo de produção adotado por estes povos, que têm a partilha e o respeito ao meio ambiente e não a geração e o acúmulo de capital como finalidade central. O que os move acima de tudo é, mais uma vez, sua cosmovisão positivista-liberal e o preconceito baseado no julgamento que fazem de ser, somente ela, portadora de legitimidade. Diante da recente divulgação dos preocupantes relatórios relativos ao aquecimento global, suas causas e suas conseqüências, o referido preconceito fica ainda mais anacrônico. Neste contexto político conflitivo, um posicionamento verdadeiramente digno e merecedor de credibilidade passa, necessariamente, pela defesa dos interesses dos pequenos agricultores na relação com os grandes conglomerados empresariais exploradores do potencial energético no estado e pelo reconhecimento da responsabilidade histórica do governo catarinense no processo de esbulho das terras indígenas e sua venda aos pequenos agricultores, reconhecendo o direito indígena sobre as mesmas e efetivando o direito de indenização aos pequenos agricultores que atualmente às ocupam. Cleber César Buzatto* Guarapuava, PR, 04 de maio de 2007 * Cleber César Buzatto é membro do Conselho Indigenista Missionário e graduado em filosofia.