04/04/2007

Síntese e chave de leitura do seminário sobre missões populares(1)

No segundo e terceiro dia do Seminário, as exposições das experiências e as colocações dos assessores e coordenadores foram retomadas num trabalho de grupos, que entregaram relatórios, por escrito, e “uma frase considerada chave”, em plenário. A partir dessas contribuições, o padre Paulo Suess foi convidado para fazer a síntese que segue.


 


I. MEMÓRIA


Retomar as opções



 


Depois da missão colônia, o Vaticano II (1962-1965), Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992) cunharam, assumiram e aprofundaram os paradigmas do diálogo, da libertação, da opção pelos pobres, da assunção da realidade como pressuposto da redenção e da inculturação. Hoje, essas grandes opções missiológicas tomadas desde o Vaticano II precisam ser novamente lembradas, assumidas, recontextualizadas e transformadas em ações concretas para a construção do Reino de Deus que encontra seus reflexos numa sociedade justa e solidária. Elas são lembretes e imperativos do magistério universal e latino-americano da Igreja e do Evangelho e podem ser nucleadas da seguinte maneira:


 


a) Continuidade e aprofundamento do diálogo (iniciado pelo Vaticano II) com o mundo, as culturas, as religiões, os cristianismos e as etnias;


b) Assunção da realidade; a metodologia do ver-julgar-agir, que depois de Medellín se tornou metodologia latino-americana, corresponde melhor ao pensamento indutivo do povo e à pedagogia de Deus, que é uma pedagogia de encarnação. Os mistérios de Deus nunca são previamente compreendidos. A realidade é o substrato concreto da história de salvação e dos sinais de Deus no tempo. Vale, nesse contexto, o princípio do Santo Irineu: Assumir para redimir (cf. Puebla 400);


c) A opção pelos pobres pode ser aprofundada em duas direções inseparáveis:


– como opção pela pessoa de Jesus Cristo, que se identifica com os pobres (Mt 25) e


– como opção pelos pobres e com os pobres, respeitando sua subjetividade e seu protagonismo na construção do Reino.


d) O reconhecimento teológico-pastoral da Igreja local; esse reconhecimento exige mudanças estruturais. A Igreja local precisa romper com qualquer tipo de tutela colonial; precisa praticar a sua idade adulta. A Igreja local não é filial de uma matriz que se compreende como Igreja universal. O universal não pode prescindir do local. A Igreja universal acontece na articulação da Igreja local.


e) A ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios são necessárias para que, na prática pastoral, possam melhor responder à diversidade sócio-cultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual do povo de Deus.


f) A participação qualitativa e diferenciada dos leigos na Igreja – Puebla falou de “comunhão e participação” , deve-se desdobrar


– na co-responsabilidade significativa do Povo de Deus na escolha dos seus pastores, na discussão das prioridades e na condução dos processos pastorais, sem os formalismos democráticos da sociedade civil, porém com regras de participação estabelecidas;


– na formação dos agentes pastorais (diáconos, futuros padres, leigos) a serviço e na proximidade do povo simples e pobre.


 


Tudo isso já foi decidido e textualmente assumido. A novidade de Aparecida pode emergir da assunção estrutural dessas decisões tomadas nas Conferências anteriores. O povo de Deus está cansado de sempre novas conferências, análises e interpretações sem encaminhamentos concretos. Muitas propostas ficaram paradas no meio do caminho. Puebla nos lembra: “Se não ajudamos a concretizar a libertação que Cristo conquistou na cruz, mutilamos a libertação de modo irreparável, e a mutilamos igualmente se esquecemos o eixo da evangelização libertadora, que é a que transforma o homem em sujeito de seu próprio desenvolvimento individual e comunitário” (Puebla 485).


 


Num mundo em que para muitos tudo já passou (pós-histórico, pós-metafísico, pós-moderno, pós-utópico), não paramos de sonhar, de lutar, de agir, de interferir e de derrubar tudo que divide, exclui e privilegia. A redução do horizonte utópico cria não só uma miopia estrutural para os desafios históricos reais, reduz também a memória do passado. Faz perder a esperança, compromete a fé e enfraquece a caridade. Quem vê longe também enxerga claro nas decisões de cada dia.


 


Os delegados da V Conferência precisam ter clareza sobre os passos concretos que devem, podem e querem dar. A voz do povo está documentada, a interpretação da realidade está ao alcance de todos, a alteridade dos povos indígenas e dos afro-americanos está ameaçada, o grito dos pobres está no ar. Para tornar-se mais participativa, corajosa, plural, contextual e gratuita, a Igreja latino-americana e caribenha precisa-se preparar para um novo Pentecostes.


 


II. PRÁTICA MISSIONÁRIA


Pressupostos e impulsos


 


As contribuições dos grupos sublinham dimensões estruturais e aspectos materiais (de conteúdos). Os aspectos e considerações “materiais” se referem em sua quase totalidade ao modelo de Igreja que temos e queremos. Portanto, são considerações eclesiológicas. Existe uma interdependência entre os diferentes modelos de Igreja e missão, e da expressão e organização desses modelos nas estruturas e organização concretas.


 


a) Conteúdos


Os conteúdos trabalhados nas missões populares e nas Igrejas locais são indicadores importantes para as decisões de Aparecida. Os conteúdos eclesiológicos e missiológicos coincidem. A comunidade missionária vive no interior da Igreja Povo de Deus, comunidade constituída por pequenas comunidades (CEBs no sentido amplo) que vivem sua missão na luta pela vida a partir de sua fé.


Essa missão não é uma entre muitas atividades da Igreja. Ela é essencial e decorre de sua “natureza missionária“, que tem sua origem no envio do Filho e na missão do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai (cf. AG 2).


Falar da Igreja significa falar de missão. A estrutura dessa Igreja-Missão é trinitária. Ela é “Povo de Deus”, “Corpo do Senhor” e “Templo do Espírito Santo” (Lúmen gentium 17). A Trindade é estrutura e conteúdo.


A meta da Igreja é o Reino de Deus (cf. LG 9). Por ser essencialmente missionária, ela não vive para si. Ela vive a serviço do Reino. Esse Reino é central para todas as suas atividades e reflexões.


A universalidade do Reino é a razão da missão “sem fronteiras”. No mundo globalizado os conflitos têm uma dimensão que ultrapassa a região e o país. Os beneficiados pelas desigualdades – os latifúndios da terra, do capital, dos meios de comunicação – estão mundialmente articulados no interior de estruturas injustas. Por isso somos enviados até os confins do mundo como sinais de justiça e testemunhas de esperança.


No Espírito Santo, a Igreja é enviada para articular universalmente os povos numa grande “rede” (cf. Jo 21,11) de solidariedade. Do envio nascem comunidades pascais que tentam contextualizar a utopia do primeiro dia da nova criação. Das comunidades nasce o envio. A missão, com seus dois movimentos, a diástole do envio à periferia do mundo e a sístole da convocação, a partir dessa periferia, para a libertação do centro, é o coração da Igreja. Sob a senha do Reino, propõe um mundo sem periferia e sem centro.


Essa proposta de um mundo fraterno de iguais, sem periferia e sem centro, nos coloca numa cadeia de grandes conflitos em torno da redistribuição dos bens acumulados e do reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. Procuramos viver nesses conflitos a mística do seguimento de Jesus. A mística dos cristãos é mística missionária militante; mística do Reino. Nessa mística temos a certeza de que o único absoluto e definitivo é Deus. Assim ganhamos forças de resistência contra os “poderes da morte” (SD 13).


A mística missionária militante está enraizada na realidade de um mundo em construção, sem vítimas. O Crucificado rompeu com os sacrifícios humanos e desautoriza qualquer pessoa ou sistema que cria vítimas. Nessa contemplação, enquanto resistência contra a morte, aparece o horizonte do sentido. O sentido é gerado nas estações da luta, do sofrimento e do grito. Mas o sentido é também construído na festa e no silêncio. A mística como energia de um sentido estruturante tem dois braços. É mística da terra, da realidade material, da luta e das marchas e é mística do transcendente que se fez e se faz carne a cada dia; é luta simbólica presente no silêncio da noite estrelada, na poesia, nas canções, nas bandeiras e nas palavras de ordem e nas marchas.


Na mística missionária militante anunciamos a ruptura com tradições obsoletas e com tudo que impede o fluxo da vida. Os místicos trazem o sonho de um mundo para todos ao chão da vida cotidiana. Apontam para a dimensão profética da vida daqueles que lutam inteiramente por uma vida inteira. Lutam pelo shalom (paz), que é um dom cotidiano e escatológico como o Reino de Deus. Eles nos ensinam a viver no hoje, concomitantemente, o passado e o futuro. São visionários cativos-cativados da esperança (cf. Zc 9,12).


A missão faz sentido quando dedicamos nossa vida ao projeto de Jesus de Nazaré, à causa dos desfavorecidos e à luta por transformações ao lado dos pobres. A partir da nossa opção de fé, “luta”, “causa” e “projeto” fazem parte do projeto maior do Reino. O anúncio desse Reino é uma questão urgente, de vida e morte. A missão não pode esperar para amanhã porque a vida não pode esperar. “A caridade de Cristo nos compele” (2Cor 5,14) a destruir as estruturas da morte, interromper a lógica dos sistemas e questionar a lentidão das burocracias. O anúncio do Reino é historicamente relevante para além da história. Todas as realizações de projetos históricos ficam sempre aquém do Reino, embora que neles se possa revelar o Reino que, em sua plenitude, só se manifestará no fim dos tempos, quando Deus será tudo em todos. A missão da Igreja é histórica e escatológica.


 


b) Organização e estruturas


Depois de nuclear as contribuições em torno do modelo de Igreja pós-vaticana, cabe-nos uma síntese das contribuições sobre as estruturas eclesiais em torno de três eixos: formação, ministérios e metodologia.


 


A formação


exige uma discussão prévia sobre o modelo de Igreja que se pretende construir e que no item “conteúdos” procurou-se delinear;


– deve ser integral (pluridisciplinar), específica (as pastorais e serviços paroquiais, em vista dos diferentes destinatários: jovens, índios, ribeirinhos) e universal (“além fronteiras” geográficas, culturais);


– deve acontecer na missão para a missão: na prática missionária os conteúdos são assimilados, contextualizados e questionados.


 


Os ministérios


envolvem decisões concretas, muitas vezes já discutidas, mas nunca realmente assumidas.


– O que deve prevalecer na reestruturação dos ministérios é o antigo lema pastoral: salus animarum suprema lex (a salvação das almas é  a lei suprema); em muitos lugares, no interior do país e do continente, os fieis só têm uma ou duas vezes por ano acesso à Eucaristia; a baixa freqüência das missas dominicais na grande cidade é uma conseqüência do jejum eucarístico no interior; para a maioria do povo não aconteceu uma socialização da Eucaristia em sua primeira infância;


– A decentralização da Igreja está ligada a sua capacidade de inculturar-se em diferentes contextos. As comunidades pluriculturais exigem ministérios culturalmente diferenciados.


– A reestruturação dos ministérios deve ser balizada pelos princípios da doutrina social da


            subsidiariedade (reconhecimento das diferentes instâncias eclesiais na relação entre Igreja local e Igreja regional e universal),


            complementaridade (dos carismas e dons, na relação entre leigos e clero),


            solidariedade (com os fieis),


            gratuidade (como alternativa ao mundo regido pelo princípio custo/benefício).


 


A metodologia


está presente na vida cotidiana, nas pequenas vitórias e na esperança que dão sentido aos acontecimentos de cada dia. Podemos dar passos em falso, mas não concordamos, em nenhum momento, com o absurdo de um mundo para poucos; podemos ser tristes com nossas derrotas, mas nunca desesperados. O nosso silencio e o nosso anúncio sempre dizem: a vida faz sentido, apesar das contingências, das mortes e do desespero que as estruturas possam causar.


A nossa presença e prática missionárias apontam para três atitudes como sinais do Reino:


– viver a cada dia e em cada lugar o horizonte “além-fronteiras” institucional, cultural e geográfico da missão;


– viver os conflitos das causas do Reino numa militância profética na qual os meios correspondem aos fins: Meios materiais e institucionais requerem uma atenção permanente para que não sejam um contra-testemunho em face da simplicidade da vida da nossa gente;


– assumir os conflitos como oportunidades de transformações;


– viver o pano de fundo da nossa mística pascal em relações de presença, partilha e gratuidade.


 


III. À GUISA DE CONCLUSÃO


A missão continua


 


O “2o Seminário sobre Santas Missões Populares” mostrou que essas missões são uma obra de Deus e um instrumento privilegiado de evangelização. A dificuldade que se revelou está na continuidade. Como manter o fervor, como continuar a missão depois das “Santas Missões”, quando os missionários foram embora e a vida do dia a dia continua? Talvez num 3o Seminário, que certamente virá, pode-se trabalhar essa dimensão da continuidade e aprofundar algumas questões específicas.


 


Toda terra conquistada é símbolo do planeta Terra a ser conquistado para uma nova humanidade. Essa humanidade precisa emancipar-se do mundo-mercado, da alienação e do fetichismo que faz dos objetos (máquinas, mercadorias) sujeitos e dos sujeitos (operários, povos indígenas) objetos; emancipar também daquela formação/educação que tem duas tarefas: fornecer os conhecimentos que permitem adestrar as pessoas para a máquina produtiva, e produzir valores e normas que legitimam os interesses hegemônicos. Não podemos simplesmente assumir o que a cultura dominante nos oferece. As formas sedimentadas do comportamento coletivo, que o sistema pedagógico nos faz aprender e repetir, servem simplesmente para continuar um jogo com cartas marcadas. Na ação militante, materializa-se uma nova consciência, a partir da experiência do não-lugar dos pobres e dos outros em nossa sociedade.


 


A mística faz parte da responsabilidade missionária, quer dizer, da habilidade para responder aos grandes desafios que atravessam o mundo de hoje. Somos herdeiros que nasceram no grito, e somos livres, portanto, responsáveis. Fazendo algo ou fazendo nada, no silêncio e no grito, sempre somos responsáveis. Somos também responsáveis pelo grito dos outros, pelos muros, pelo muro que separa a verdadeira humanidade das condições mínimas da dignidade humana; somos responsáveis pela indevida apropriação dos latifúndios e pela corrupção dos administradores. Sempre somos responsáveis, ou como profetas ou como cães mudos (cf. Is 56,10). Somos condenados a escolhas, opções, decisões.


 


De perguntas respondidas no Seminário sobre Santas Missões Populares nasceram outras. São sinais da nossa subjetividade em construção e da busca de sentido. Afirmamos que a vida tem sentido e, ao mesmo tempo, tantas vezes perguntamos: Onde está o sentido nessa morte e naquela violência? Só o sujeito faz perguntas, questiona a si e ao mundo. A caminhada é um aprendizado para conviver em paz com cada vez mais perguntas e com uma indignação e uma paz profundas. No caminho se perde a ânsia de soluções imediatas e a ânsia de encontrar respostas para tudo.


 


Deus não responde a todas as perguntas que temos. Ele nos diz apenas um “verás” e nos faz um convite: Sai da tua terra e vai! Abandone teus trilhos! Procure desterritorializar teu projeto de vida! Perguntando caminhamos. Ao sair do “nosso” lugar, mudamos o olhar para o mundo, reforçamos a vontade de lutar e de andar de cabeça erguida, e ganhamos novas perspectivas e novos companheiros e companheiras, sempre tecendo naquela rede lançada ao mar que é semelhante ao Reino (Mt 13,47). Nas lutas, estamos enredados com as testemunhas, com os mártires, que deram a vida pela causa do irmão e da irmã menor para que a chama da vida não se apague. Caminhemos perguntando e guardando os mistérios da vida e de Deus em nosso coração, como Nossa Senhora, que em Aparecida lembramos.


 


(1) Contribuição ao 2o Seminário sobre Santas Missões Populares “Memória, Projeto, Seguimento – A Igreja missionária da América Latina e do Caribe rumo à Conferência de Aparecida”, organizado pelo Conselho Missionário Nacional (COMINA), Belo Horizonte, 12 a 15 de março de 2007.


 

Fonte: Paulo Suess
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