25/01/2007

Entre o Sonho Guarani e a Vida Severina

Entre o Sonho Guarani e a Vida Severina


 


Estamos ao lado da cova de Xuretê, eu, Egon e Valter Kaiowá. Apenas nós três a contemplar o desolador cenário de morte e dor. O silêncio é interrompido pelo clicar da câmera nas mãos de Egon. Fico a pensar quantas vezes esse meu companheiro repetiu tal gesto para registrar semelhantes cenários. Imediatamente veio-me a lembrança da cova de Dorvalino Kaiowá, fotografada por ele no Natal de 2005. Procuro fugir das tristes lembranças e silenciosamente rezo o Pai Nosso. Agora recordava as cenas imortalizadas pelo teatro na adaptação da obra de João Cabral, Morte e Vida Severina: a cova com palmos medida, o latifúndio,  a parte que coube a Xuretê, a parte que cabe aos Kaiowá, aos Sem Terra, aos Quilombolas, aos que Lutam, aos que Sonham. Fico a pensar nas tantas Vidas Severinas. Olho em minha volta e lá estavam Egon e Valter. Um pouco mais adiante encontravam-se três mulheres a conversar, uma delas em adiantado estado de gestação. Mais uma Vida Severina? Um novo guerreiro para lutar por seu povo? Que surpresa nos prepara aquele ventre?


 


Havíamos chegado ao acampamento aonde encontram-se os indígenas expulsos da fazenda Madama, invasora do tekohá Kurussu Ambá, na manhã do dia 20 de janeiro. Viajamos juntamente com representantes de várias entidades que fazem parte da Coordenação dos Movimentos Sociais do Estado do Mato Grosso do Sul, num total de 15 pessoas. No dia anterior participamos de uma entrevista coletiva à  imprensa, em Campo Grande, ocasião em que 3 representantes da comunidade e uma liderança da Comissão de Terras Guarani tiveram oportunidade de desmentir as falsas informações veiculadas pela mídia local desde o dia 4 de janeiro, data da retomada da terra indígena Kurussu Ambá. Nossa chegada ao acampamento era ansiosamente esperada pelos indígenas. Depois de termos sido recebidos com danças em duas rodas formadas por anciãos e crianças, muitas pessoas  começaram a falar simultaneamente, pois desejavam ser escutados pelas entidades e conseguir dessas apoio e testemunho em seu favor. Afirmavam serem vítimas de uma grande armadilha dos fazendeiros, que resultou em sequestros, tentativa de homicídio e assassinato de pessoas da comunidade, bem como na prisão de seus líderes, sob a acusação de roubo de um trator, uma carreta e extorsão qualificada. Sentiam-se abandonados, totalmente desprotegidos, jogados à beira da rodovia que liga as cidades de Amambai e Coronel Sapucaia/Capitão Bado (lado paraguaio).


 


A gravidade dos relatos impactavam a todos: o pequeno Odair de apenas 4 anos ouvia tudo atentamente. Relataram-nos que ele fora sequestrado por fazendeiros enquanto se deslocava pela estrada em companhia de dois adultos. Os fazendeiros atiraram contra os dois, que fugiram deixando a criança para trás. Depois de ficar  desaparecido por 6 dias, um fazendeiro informou à comunidade que o havia deixado na casa do índio, na cidade de Amambai, local em que foi finalmente localizado. Joana, mãe de Natalino, 16 anos, nos contou que ele encontra-se desaparecido desde a madrugada do dia 8 de janeiro. Depois de ter sido algemado por fazendeiros na rodovia MS 289, ele juntamente com sua mãe, mais cinco adultos e algumas crianças foram levados para a delegacia de Amambai. Lá permaneceram todos numa cela durante algumas horas. Tarde da noite, mulheres e crianças foram liberadas, enquanto 4 homens permaneceram presos. No lado de fora havia uma ambulância onde todos foram jogados para serem transportados à aldeia Taquaperí, mas Natalino não entrou, pois informaram que o veículo estava cheio. No momento alguns fazendeiros se aproximaram e disseram que Natalino necessitava ficar para prestar depoimento. Foi a última vez que ela viu seu filho, na porta da delegacia. Seguiam-se a esses outros tantos relatos de violência contra pessoas, invasão da terra indígena por fazendeiros dirigindo caminhonetes com placas do Paraguai, ataques noturnos etc. Cada vez mais aumentava a nossa indignação. Lembrei que Egon, ao sair de Campo Grande me comunicou que levaria um notebook por precaução. Surgiu-me a idéia de tomarmos a termo alguns depoimentos e para tanto contamos com a concordância de Rogério, assessor jurídico do Cimi no MS, que assumiu a tarefa. Necessitávamos ainda de uma impressora, que nos foi emprestada pela escola indígena da aldeia Taquaperí. Como não havia papel nem disquete, Egon, Geraldo, Eugênio kaiowá e eu nos deslocamos ao país vizinho, mas na cidade de Capitão Bado só encontrávamos “librerias evangélicas” que não dispunham do que procurávamos. Uma niña atenciosa nos informou que poderíamos encontrar aqueles produtos em um supermercado que ficava no lado brasileiro e assim o foi.


 


A tomada dos depoimentos se estendia ao longo do dia. Tudo era muito demorado, pois dependia de tradução e para tanto contamos com a ajuda de Adão Benites, professor Kaiowá, assim os relatos se tornavam cada vez mais claros. Já começava a escurecer quando decidimos suspender os depoimentos, pois pretendíamos parar em Amambai e visitar os índios presos. Chegando à Penitenciária apresentamo-nos como representantes da caravana em apoio aos Kaiowá e manifestamos nosso desejo em visitar os 4 indígenas presos. O agente penitenciário que nos atendeu solicitou a relação de todas as entidades presentes, o que lhe foi entregue. Poucos minutos depois retornou com a informação de que, considerando a avançada hora, quando todos os detentos já estavam recolhidos em suas celas, a visita só poderia ocorrer com autorização judicial. Refletindo sobre as dificuldades em localizar o juiz, o cansaço de todos e os mais de 450km de estrada a serem percorridos até Campo Grande ainda naquela noite, decidimos que um grupo menor retornaria durante a semana para realizar a visita. Egon e eu já estávamos decididos a pernoitar em Dourados, 130 km distante de Amambai, enquanto Rogério retornaria de carona para a capital do estado. No percurso até Dourados estivemos em companhia de Geraldo, da equipe do Cimi em Dourados, Eugênio e Adão, professores Koiowá. Antes de chegarmos lá paramos em Caarapó para visitar a irmã Anarí, que àquela hora já se encontrava na cama, mesmo assim levantou-se e nos acolheu preparando um delicioso café para afastar nosso sono e prosseguirmos viagem. Passava um pouco da meia noite quando chegamos ao nosso destino.


 


No dia seguinte, domingo 21, acordei muito cedo. Recorri ao celular para saber a hora, passavam alguns minutos das quatro. Tento retomar o sono, mas sou impedido pelas imagens presentes em minha memória. Muitos rostos tristes, dentre eles o de Cacilda, mãe de Odair, menor sequestrado, esposa de Francisco, preso (juntamente com ela, que fora liberada depois) dois dias após o sequestro de Odair e filha de Xuretê, assassinada um dia após a prisão de Francisco. Como entender tanta desgraça em tão pouco tempo? Como aquela mulher é capaz de suportar tanta dor? Começo a pensar nos quatro que estão presos. O que  passa por suas cabeças ao verem-se trancafiados numa penitenciária, depois de terem caído na armadilha da pessoa que lhes emprestou o trator para transportar alimentos e em seguida registrou ocorrência de roubo do mesmo e preparou o flagrante? Nesse caso é impressionante a rapidez e eficiência da atuação da polícia e do Ministério Público estadual. Em apenas 8 dias o inquérito foi concluído e o MPE ofereceu denúncia. Não tenho como evitar comparação com outros casos que acompanhamos, onde as vítimas são indígenas. O exemplo mais próximo é o assassinato de Xuretê. Onde está o empenho da polícia em identificar os fazendeiros responsáveis? Há pelo menos uma testemunha que reconheceu o autor dos disparos. Mas há centenas, milhares de casos onde os inquéritos se arrastam por tempo indeterminado: Dena Truká e seu filho Jorge, executados por policiais militares de Pernambuco em junho de 2004, o inquérito ainda está inconcluso, o inquérito do irmão Vicente se arrastou por mais de 10 anos e somam-se a esses uma lista sem fim de exemplos que envolvem vítimas sem terra, agentes de pastoral, pessoas comuns etc. Sem levar em consideração todos aqueles em que nem mesmo há apuração e caem no esquecimento.


 


Outras imagens fortes vêm-me à mente: a cova de Xuretê em frente à pequena choupana de sua filha. Dentro dela apenas duas camas sem colchões e nada mais. Seus poucos panos foram incendiados pelos fazendeiros durante o ataque ao Kurussu Ambá. Apenas poucos metros depois, a choupana de Xuretê com paredes de taquara e cobertura de uma espécie de piaçava. Estava totalmente fechada. Do lado de fora um cachorro branco com pintas pretas, ainda chorando a morte de sua dona. Impressionou-me que ao ver dois estranhos aproximando-se da casa sobre a qual parecia manter vigilância não esboçou qualquer reação. Observou-nos com certa indiferença e manteve-se quieto, deitado. Sua atitude possibilitou que Egon fizesse algumas fotos, enquanto eu admirava a arquitetura daquela habitação deserta. Pondo-me ao lado da casa, percebi que sua altura máxima não alcançava meus ombros e seu diâmetro não ultrapassa  doze metro quadrados. Pelas frestas, via-se alguns panos no chão, não mais que isso. Recorro mais uma vez ao relógio do celular, são 5 horas e já escuto os passos de Egon pela sala. Levanto-me e conto-lhe que não consigo parar de pensar nas pessoas do acampamento e em seus sofrimentos. Proponho-lhe adiarmos nosso retorno a Campo Grande para o dia seguinte e voltarmos ao acampamento para tomar novos depoimentos e levar esposas e filhos para uma visita às lideranças presas. A proposta foi prontamente aceita e logo cedo nos deslocamos para lá. Agora ia também conosco o pe. Jorge Dal Ben.  


 


Chegando à comunidade, Egon assumiu a tomada de depoimentos, enquanto Geraldo e Jorge conversavam com as pessoas. Para min coube a tarefa de levar as pessoas para visitar seus familiares presos. Saímos em direção à Amambai. Comigo estavam Cacilda, esposa de Francisco e seu filho Adelson; Ramona, esposa de Osvaldo e Hortência, mãe de Cassemiro. Rubem, o outro preso, é solteiro e seus pais não estavam no acampamento. Cacilda e Adelson haviam conversado comigo no dia anterior, mas as outras mulheres não, o que lhes deixava um tanto desconfiadas. No caminho fui tentando quebrar o gelo e repeti meu nome várias vezes, orientando-as que se alguém perguntasse quem sou eu e se me conhecem respondessem meu nome e dissessem que sou da Igreja Católica e trabalho lá na aldeia. Essa orientação logo foi posta em prática, pois próximo a Amambai fomos parados por uma blitzen da PM que nos encheu de perguntas.


 


Chegamos enfim à penitenciária. Aquela seria a primeira visita que fariam a seus parentes desde o dia que foram detidos. Na porta, muitas pessoas, principalmente mulheres com sacolas contendo biscoitos e alguma roupa para os seus visitados. Olhei as indígenas e me dei conta que nada traziam. Perguntei-lhes se não trouxeram nenhuma roupa, pois os quatro ainda deveriam  está com as mesmas com as quais foram presos. Recebi como resposta “não temos nada”. Lembrei de minha bolsa de viagem no porta malas e lá ainda havia uma camisa limpa, duas camisetas e duas calças. As mulheres olharam o que ficaria melhor em quem e já fizeram uma distribuição prévia, antes de entrarem no presídio. Passamos também num supermercado e compramos biscoitos. Organizamos quatro sacolas, uma para cada. Tudo pronto para  a visita.


 


Aproximamo-nos da porta principal e dirigimo-nos a um agente penitenciário, que mesmo antes que eu perguntasse alguma coisa, comunicou-me que a visita era só para parentes em primeiro grau e perguntou-me se eu tinha algum familiar lá dentro. Respondi que estava apenas acompanhando as mulheres e Adelson e eles tinham pai e esposos prisioneiros. Exigiu-nos documentos comprobatórios do grau de parentesco, devendo os mesmos conter fotos ¾.  Esclareci que nem todos eram portadores de documentos, mesmo porque seus pertences  haviam sido encendiados por fazendeiros da região quando invadiram e destruiram suas habitações. O agente percebeu outro impedimento, Ramona estava de bermuda (abaixo do joelho) e aquela roupa não era permitida no ambiente. Além do mais deveria cada um trazer duas fotos para o presídio preparar uma carteirinha de visitas e assim se seguiam outras exigências ampliadas pela má vontade do atendente. Pacientemente busquei um diálogo mais conseqüente. Chegamos a um acordo e os quatro puderam entrar, com a advertência que “por hoje passa, mas da outra vez devem cumprir as exigências”.


 


Eu havia combinado com o pessoal que a visita teria uma duração de duas horas, pois às 13:00h deveríamos retornar ao acampamento. Enquanto isso, eu daria umas voltas pelas ruas da cidade. Nesse ínterim consegui um lugar para comer algo e depois fui até um orelhão de onde telefonei para Rosane e lhe falei longamente sobre os fatos, as dificuldades. Desligando o telefone, caiu-me a ficha: por que não retornar ao presídio e tentar falar com o diretor? Era preciso entrar e ver a situação dos presos. Chegando lá não foi necessário solicitar ao diretor, pois consegui autorização de entrada com o nesmo agente que nos atendera antes.


 


Na porta encontro Adelson já de saída e sugiro que me acompanhe. Começo a transitar pelos estreitos corredores superlotados pelos visitantes e logo alguém deduz tratar-se do presidente da Funai. Muito rapidamente procuro desfazer o mal entendido e explico que entre o tal presidente e eu há inúmeras diferenças, não apenas físicas. Solicito de Adelson apertar o passo até a cela onde estão as lideranças, mas somos interrompidos por algumas pessoas que nos cumprimentam, muitos rostos indígenas. Chegamos até Francisco, que também já havia recebido a notícia da presença do presidente da Funai, explico-lhe quem sou, chegam os outros indígenas e conversamos  de maneira rápida, ninguém se queixa de violência física, mas todos  afirmam receber um tratamento desrespeitoso e dizem serem vítimas de uma armação, insistem que precisam ser retirados de lá com urgência e pedem-me atenção a seus processos.


 


Começo a retornar e sou interrompido por um agente penitenciário que se demonstra bastante preocupado com a situação de outros índios que também cumprem pena ali. Pede-me para conversar com uma jovem indígena detenta e ouvir seu relato. É da aldeia de Amambai, foi condenada por homicídio, mas jura inocência. Na seqüência outros agentes também me procuram e relatam o desprezo em que se encontram os índios detentos. Uma agente me pergunta se a fazenda do conflito está próxima a Ponta Porã, o papo se estende. Chega o diretor da penitenciária e indago-lhe sobre o total de presos, responde-me que são 145. Pergunto-lhe se há muitos indígenas, sim 48 entre homens e mulheres. Desejo saber se alguém da Funai aparece para visitá-los, responde-me que às vezes, mas logo em seguida complementa, “para falar a verdade ninguém aparece aqui, esses índios estão abandonados”. Um outro agente interfere no diálogo e diz que muitos indígenas deveriam ter saído para passar o Natal em casa, mas o advogado da Funai não aparece por lá, que o advogado que assiste ao presídio não pode atender aos indígenas porque é atribuição do advogado da Funai, mas esse por sua vez nada faz…  


 


Voltamos ao acampamento e lá os visitantes informaram à comunidade sobre a situação de seus líderes. Ao cair da tarde tomamos nosso o caminho de volta. Para nós há essa liberdade de ir e vir, por isso podemos retornar sempre às nossas casas, nossos “tekohás”. Para as pessoas que ficaram no acampamento isso por enquanto ainda é um Sonho, que esperamos seja concretizado muito em breve.


 


                                             Saulo Feitosa


                                             Brasília, 23 de janeiro de 2007

Fonte: Cimi
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