08/01/2007

Minissérie: o discurso branco na tela da Globo

Eduardo de Araújo Carneiro (*)


 


Exijo a possibilidade de viver plenamente a contradição da minha época, que pode fazer de um sarcasmo a condição da verdade” (Roland Barthes).


 


A minissérie global “Amazônia: de Galvez a Chico Mendes” pretende contar os cem primeiros anos da história do Acre. O primeiro capítulo transmitiu a idéia de que a história do Acre começou com a chegada dos nordestinos e que a fundação do Acre ocorre com Galvez. Há uma pergunta que não quer calar: cadê os mais de 150 mil índios, divididos em quase 50 povos, que moravam há mais de 10 mil anos no território que o branco passou a chamar de Acre?


 


O Acre é uma invenção do branco. Um branco do gênero masculino, de classe econômica abastarda e de nacionalidade brasileira. A história que estamos vendo na telinha turva da Globo é uma representação midiatizada de um discurso marcado por efeitos de poder. Um discurso branco para entreter o próprio branco.


 


A presença milenar dos indígenas nas terras de Galvez se “desmancha no ar”. Quem fundou o Acre para o reino da civilização foram os heróis brancos, o que ficou para trás é somente barbárie e pré-história. Índio não tem vez. Índio não entra em cena. Quando entra é para acentuar a bravura dos brancos na saga da conquista e para fazer 150 milhões de telespectadores brancos se divertirem com o que chamam de exótico.


 


A minissérie está atravessada por uma política de produção do saber. Ela materializa um discurso marcadamente ideológico e o faz funcionar como evidência. É a “ordem do discurso” da qual Foucault tanto falava. Os discursos são governados por formações discursivas, que regram o aparecimento de certos enunciados e determinam o que pode e deve ser dito num dado momento e num dado lugar. 


 


A “Ordem do Discurso” limita a visibilidade, fixa um sentido desejado e dirige o olhar do telespectador. O objetivo da minissérie não é problematizar a história do Acre; pelo contrário, é regrar o olhar de quem a enxerga. Ela põe em funcionamento mecanismos de organização do real, por meio dos quais, somos interpelados a crer que a história é realmente contínua, linear e teleológica. 


 


Mas, Nietzsche e Foucault nos afirmam que a história é descontinua. É pulverizada por rupturas. A regularidade histórica é um efeito de sentido criado pela ideologia, que esconde a emergência da singularidade dos acontecimentos. A unidade histórica está ligada a sistemas de poder – a uma “ordem do discurso” que fixa um sentido desejado.


 


A milenar presença indígena nas terras de Galvez é sacrificada para que se construa um momento inaugural de origem branca. Esse fenômeno é chamado pela filósofa Marilena Chauí de mito fundador. Jacques Derrida diz que esse discurso nos remete “… a uma origem em que nada começou, à gênese de um ego que não existe”.


 


“Amazônia: de Galvez a Chico Mendes” aparece como a narração do “eu” acreano. Como se o acreano tivesse marcas de nascença ou uma identidade fixa espelhada nos “heróis” Galvez, Plácido de Castro e Chico Mendes. O acreano – assim como o brasileiro – não tem um ego, mas muitos, um para cada situação. O “eu” que exterminava os índios nas “correrias” em prol da formação de seringais, não é o mesmo que se uniu com os remanescentes indígenas em defesa da floresta nos anos 80.


 


Queremos agitar o que nos mostram como imóvel. A identidade é híbrida, o perfil é movente, a origem é vacuolar. Um mosaico de sentidos, e não um sentido apenas!  A mesma retórica que significa uma identidade para o acreano é a mesmo que desloca o índio para a insignificância. 


 


Não foi o índio que explorou de forma predatória a seringueira existente no Acre, no conhecido primeiro ciclo da borracha. Não foi o índio que derrubou centenas de árvores acreanas para ganhar dinheiro com o comércio madeireiro.  Não foi o índio que queimou milhares de hectares da floresta no Acre para produzir pastos para bois nos anos 70 e 80. O índio não negocia a floresta com bancos internacionais, muito menos ganha dinheiro fazendo minissérie sobre a Amazônia. Quem faz tudo isso, é o branco.


 


Os índios são os verdadeiros defensores da floresta, embora não recebam prêmios na ONU, muito menos monumentos no centro da capital acreana. O branco sente a necessidade de cria heróis para amenizar-lhes a consciência acusadora e para projetarem-se politicamente sobre outros brancos.


 


Todo discurso possui brechas, mesmo os que aspiram ao status de verdade. Nesse artigo, nos colocamos em uma das fissuras desse discurso midiático sobre a história do Acre, num dos lugares em que o sentido se mostra tenso. É das gretas que se ouve as vozes silenciadas, que se vê as múltiplas resistências e que se pode reivindica o sarcasmo como a condição da verdade!


 


(*) Eduardo de Araújo Carneiro é licenciado em História, concludente do curso de Economia e acadêmico do Mestrado em Letras pela UFAC.


 

Fonte: Kaxiana - Agência de Notícias da Amazônia
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