Um jeito volúvel e des-envolvido de governar
Hoje acordei sacudida por antigas lembranças, revolvidas depois das últimas manifestações filosóficas do presidente da República. Recordei uma cena de muitos anos, em que um amigo me dizia, num sorriso um tanto sarcástico: “deixa o tempo passar, você melhora desse mal. Quando tiver sua casa, seus filhos, esses ideais não vão fazer o menor sentido”.
O mal a que ele se referia era o pensamento revolucionário, as chamadas idéias subversivas, perigosas, inconfessáveis. Eram tempos que anunciavam o fim da ditadura e a universidade vivia um fervilhar de projetos, de esperanças, de inspirações. Velhos professores torturados pelo regime autoritário, com mais de 50 anos e cabelos embranquecidos pelo tempo e pelo sofrimento, ensinavam que o medo nos aprisiona e a coragem produz o sonho. Nenhum desses professores, que permanecem em minha memória, acomodou-se ao centro. Sim, eles tinham um problema: um sonho capaz de contagiar a gente, um ideal que, por ser grandioso, não poderiam carregar sozinhos. Esse sonho tornou-se esperança para muitos de nós, estudantes de graduação daqueles tempos, ansiosos por fazer diferença no mundo e torná-lo um lugar bom para todos e não para uma minoria.
Acordei pensando na radical escolha de luta, feita por muitos homens e mulheres que conheço, e que por ter mais de 50 e cabelos brancos devem ter algum problema, conforme o diagnóstico do presidente mais versátil que o Brasil já conheceu. Esses homens e mulheres que se mantêm fiéis aos ideais de verdadeira justiça amparam minha confiança de que é possível seguir lutando, construindo em ações cotidianas a resistência ao neoliberalismo, ao capitalismo, à sedução do poder, do consumo, do dinheiro, do tapete vermelho estendido bem à frente.
O estilo volúvel de governar do presidente agora não deixa dúvidas, está completamente des-envolvido, des-articulado, des-ligado daquilo que um dia constituiu suas bases políticas e sociais. No momento atual seus pronunciamentos estão “renovados” em velhos discursos, em antigos projetos desenvolvimentistas. Deixou-se seduzir por obras gigantescas, vistosas, suntuosas, muitas delas de utilidade duvidosa diante do custo social, econômico e ambiental que representam. E para construir o “milagre” que venha a nos redimir do subdesenvolvimento, o presidente parece ter escancarado um jogo onde vale-tudo, valem os acordos, as amizades ancoradas em interesses comuns – o toma lá dá cá de sempre – vale flexibilizar a legislação ambiental, vale tratar o Ministério Público como penduricalho, vale varrer para baixo do tapete a multidão de famintos, desempregados, desesperados, vale ignorar a luta dos pequenos agricultores, dos trabalhadores sem terra, dos quilombolas, dos povos indígenas, que reivindicam direitos históricos, mas que na atual conjuntura são tratados como empecilhos, pedras no caminho por onde desejam passear livremente os grandes empresários, entraves fixados lá onde pretendem se expandir as grandes plantações transgênicas. O presidente deseja fazer um “bonito papel”, tal como a Aracruz Celulose define em suas peças publicitárias, mas se esquece que o resíduo é grande demais, um resíduo ambiental, social e humano que não somos capazes de suportar.
Voltar a economia nacional para o grande capital é um problema? Na lógica adotada pelo governo essa é a solução. No discurso de Lula, proferido no dia 11/12/2006, na cerimônia de entrega dos prêmios “Brasileiro do Ano” pela revista IstoÉ, “Empreendedor do Ano” pela revista IstoÉ Dinheiro, e “Personalidade do Ano” pela revista IstoÉ Gente, o presidente reclama: “Não adianta eu querer trazer para cá, doutor Antônio, uma fábrica de papel e celulose, porque a legislação diz para nós: ‘Olha, tal terra é dos índios, nós estamos na terra dos índios’. Aí, no dia seguinte, tem mais terra para mais índio, no dia seguinte tem mais terra de quilombola, no dia seguinte tem… Ou seja, ou nós estabelecemos um marco jurídico para resolver isso definitivamente, ou ninguém acredita que as coisas podem dar certo neste País, as pessoas ficam olhando”.
Na perspectiva apontada pelo Presidente, os direitos conquistados na Constituição Federal, frutos de luta, vidas, suor e sonho de homens e mulheres, jovens e de cabelos brancos, agora devem ser removidos para que as pessoas acreditem que as coisas podem dar certo. Essas garantias são consideradas pelo atual presidente como excessivas, redundantes, desnecessárias. Os direitos dos povos indígenas são tratados como obstáculos, e os próprios povos indígenas recebem o desprezo oficial. A sociedade que importa hoje para o governo é a que olha para o desenvolvimento, através dos olhos visionários de seu presidente, e essa sociedade de elite não necessita dos povos indígenas, aliás passa melhor sem eles. Portanto, para essa elite não há uma razão auto-evidente para que os índios, os quilombolas, os sem-terra continuem existindo, nem qualquer justificativa óbvia para que reivindiquem direito à existência, à terra, a segurança ou ao respeito, já que são considerados dispensáveis, como mercadorias desprovidas de atração ou produtos abaixo do padrão que deveriam ser retirados da linha de montagem. Não apenas os povos indígenas, mas todos os cidadãos que lutam para assegurar seus direitos e que, de algum modo, contrariam a lógica do capital são hoje considerados resíduos, restos que precisam ser removidos para deixar à mostra o “bonito papel” que o presidente pretende produzir.
Lula, que foi vítima do regime autoritário, traz de volta ao cenário nacional discursos contra os povos indígenas bem semelhantes aos dos militares, que os tratavam como “quistos sociais”.
Nesse caminho, o passo seguinte é considerar a vida e a dignidade humana como um problema financeiro – e não social – considerar que as pessoas são um peso para o Estado, porque precisam ser providas, alimentadas, socorridas no sistema de saúde, mantidas em programas de seguridade social. Considerar também que a população descontente com os rumos da política nacional representa risco, pois algo no ar anuncia que não serão suficientes as esmolas concedidas pelo Estado e não há compartimento para empilhar essa multidão de cidadãos considerados refugos humanos – exceto as prisões. Não existem grandes muralhas, altas montanhas, largos oceanos que separam os incluídos e os excluídos, os banqueiros e os desempregados, os empresários e os habitantes das periferias.
O desenvolvimento à base de obras suntuosas, de monoculturas, de flexibilização de garantias sociais não é promessa de bem-estar ou de melhoria das condições de vida para os cidadãos brasileiros. Esse projeto tem mais a ver com uma necessidade cada vez menor de pessoas, e uma necessidade cada vez maior de oportunidades de enriquecimento rápido, para manter o capital em movimento, acelerar os lucros e atingir o topo.
Mas os olhos visionários do presidente não são os únicos a vislumbrar possibilidades de futuro. Muitos olhos jovens e velhos se voltam para um horizonte de escolhas diferentes, compartilhando anseios de justiça para todos. Penso nos anciãos indígenas, olhos voltados para o tempo, fortes e combativos, capazes de proferir palavras que curam, palavras que aconselham, palavras que cortam. Eles são esteios das lutas e da resistência indígena – que de modo nenhum podem ser consideradas lutas de centro. E na visão de nosso presidente eles também têm problemas, eles acreditam em seus povos, conhecem suas histórias, se mantêm lúcidos e coerentes, fortaleza em corpos magros e envelhecidos. Eles são escutados, levados em consideração, seus conselhos são acolhidos pelos jovens que unem os braços para vencer as batalhas contra a dominação, a exploração, a morte física e simbólica.
Tratados como empecilhos aos planos de desenvolvimento, os povos indígenas encontram em seus “problemáticos” velhos de cabelos brancos a firmeza e a coragem que falta ao reeleito presidente, eles inspiram a confiança e a lealdade que falta ao versátil presidente, e eles falam aos seus povos palavras sábias, sensatas, palavras que permitem vislumbrar um futuro com dignidade e justiça.
Hoje eu acordei sacudida por grandes lembranças e com uma vontade maior ainda de resistir, com aquele desassossego que só sente quem foi tocado pela força combativa dos movimentos de esquerda. Desejo estar, a cada fio de cabelo branco, um pouco menos acomodada e cada vez mais afastada do centro.
Há muitas formas de envelhecer, sem dúvida, mas prefiro aquelas que aprendi ao lado de quem nunca desistiu de lutar pela vida e pela dignidade humana, de quem não jogou fora seus ideais, suas convicções, seus princípios éticos.
O tempo tem mostrado que o presidente da República optou pelo caminho mais fácil, acomodando-se ao lado daqueles que sempre tiveram privilégios e ajudaram a construir a miséria e os abismos sociais nesse país. Mas o que não podemos aceitar é que esta escolha individual sirva para desqualificar lutadores e lutadoras do povo, muitos dos quais entregaram suas vidas no combate às desigualdades sociais, às injustiças, à intolerância, porque acreditaram na possibilidade de construir um país justo e verdadeiramente democrático. Que sejam estas as nossas fontes de inspiração!
Porto Alegre (RS), 15 de dezembro de 2006.
Iara Tatiana Bonin – Membro do Cimi e Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul