28/11/2006

Declarações alopradas

Dentro de uma camionete “Veraneio” (a preferida dos agentes da repressão nos anos 70) forrada de branco, o coronel Fernando Ramos Pereira circulava pela cidade de Boa Vista, capital de Roraima, que ainda mantinha status de território federal. Ele era governador e parecia não ter muito o quê fazer. A tal ponto que, já na reserva, sem pilotar os aviões da Força Aérea Brasileira, mandou construir uma pista de aeromodelismo para seu uso exclusivo. E passava horas brincando de aviãozinho.


 


Quando sobrava tempo, brincava de déspota ameaçando índios e as 40 ou 50 pessoas que lhe faziam oposição. Ramos Pereira era governador nomeado. E até hoje não se sabe que critérios eram usados pelos presidentes para a escolha dos governadores dos territórios federais. Provavelmente, critérios aleatórios. 


 


Boa Vista, nessa época, era uma cidade de vida modorrenta. Os dias pareciam ter bem mais do que vinte e quatro horas. A sociedade local ainda costumava sentar-se à porta para conversar com os vizinhos ou à sombra dos cajueiros tomando tacacá, uma deliciosa sopa feita com folhas e tucupi, além de camarão, uma das riquezas da culinária amazônica. As pessoas não conheciam a violência típica das metrópoles. Roraima parecia ser apenas um ponto no mapa até 1975, quando Ramos Pereira era o governador.  


 


Porque até 1975, não havia nenhuma notícia oficial de minérios na região. Ou seja, a  febre do garimpo ainda não atraíra os milhares de famintos que se deslocam Amazônia a dentro, na esperança de bamburrar, de encontrar a grande pepita que vai lhes dar uma vida menos indigna e, para sempre e contaminar os rios com mercúrio. Foram eles que mudaram os hábitos dos roraimenses e transformaram Boa Vista em cidade de porte médio, saltando de pouco mais de 60 mil habitantes para mais de 200 mil, em menos de 15 anos.


 


Era nesse cenário que o coronel Fernando Ramos Pereira dividia seu tempo entre a pista de aeromodelismo, piqueniques na beira do rio e incursões ameaçadoras às terras indígenas.


 


Urânio


 


E foi em 1975 que Rangel Reis, empossado ministro do Interior pelo novo presidente da República, general Ernesto Geisel, resolveu reunir em Boa Vista, todos os órgãos a ele subordinados.  Na época, ainda estava na moda o lema do general Médici, o mais facínora de todos os ditadores do ciclo militar brasileiro de “integrar para não entregar”. Por isso, Boa Vista, aquele ponto no mapa, foi a cidade escolhida para sediar o encontro. Pelo menos, era esse o discurso.


 


Fui um dos 25 jornalistas convidados para a viagem que se anunciava como uma epopéia. E estava duplamente satisfeita. Primeiro porque, finalmente, conheceria a terra onde nasci e, depois, porque teria muito assunto para escrever.


 


Na verdade, foi só ao chegar que percebi a quantidade de notícias que me esperavam porque o discurso de “integração” era, na verdade, uma espessa cortina para escamotear uma das mais explosivas informações do início do governo Geisel. Na verdade, Boa Vista fora escolhida porque meses antes, sem qualquer alarde, o Projeto Radam, à serviço da Docegeo, uma das subsidiária da então estatal Vale do Rio Doce descobrira urânio na Serra das Surucucus. E o anúncio teria que ser feito com muita publicidade. Por isso, a revoada de aviões com dezenas de autoridades e jornalistas.


 


Além de urânio, a Docegeo anunciou também a presença de nióbio, e outros minérios estratégicos. Para completar, ouro. Pronto, foi o suficiente para uma massiva invasão de três mil garimpeiros em uma semana, na Serra das Surucucus, área sagrada do povo Yanomami. E, de imediato, os garimpeiros entraram em choque com os Yanomami. E vem a primeira de uma série de assassinatos de índios por garimpeiros. Daquela vez foram “apenas” ( como diria o coronel Ramos Pereira) três índios.


 


Logo depois do anúncio, Ramos Pereira embarcou para Brasília onde faria o comunicado oficial da descoberta ao general Geisel. Feita a comunicação, o coronel concedeu uma fatídica entrevista coletiva. Para não acirrar os ânimos, porque já me desentendera com ele antes, decide não fazer nenhuma pergunta. Apenas escrevi num pedaço de papel o quê queria perguntar e passei, discretamente, ao colega Sydney Rocha do Jornal do Brasil. “E os índios do urânio?” era a pergunta.


 


Sem dó, piedade ou escrúpulo, o coronel deu então a célebre resposta que virou manchete em todos os jornais do Brasil com repercussão na imprensa estrangeira:


 


“Na minha opinião, uma terra rica como esta não pode se dar o luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o desenvolvimento” .


 


Caramba! Era tudo que eu queria ouvir para abrir minha matéria e desmascarar, mais uma vez, as intenções do governo ditatorial.


 


Ramos Pereira deve ter se arrependido pela franqueza, porque 24 horas depois, voltou a dar nova coletiva e, por determinação do presidente da República que lhe chamara atenção, consertar as palavras. Mas, a notícia já corria o mundo.


 


Para minha surpresa, 30 anos depois, a aloprada frase do coronel Fernando Ramos Pereira foi plagiada. Num momento de embriaguês com o sucesso de suas alianças políticas, o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, que não é um ditador militar, repete a frase, acrescida de novos elementos. Agora não são apenas os índios que “atravancam” o desenvolvimento. O pacote foi recheado por quilombolas e ambientalistas.


 


Talvez porque a seqüência da frase tenha me lembrado dias de chumbo da História da humanidade, me permiti parodiar Brecht. Primeiro os índios, depois os quilombolas, depois os ambientalistas, depois…


 


Heil Lula!


 


“Os que vão morrer te saúdam!” *


 


(*) Frase atribuída aos cristãos que, por determinação dos césares eram levados à arena para serem devorados pelos leões.


 

Fonte: Colunista Memélia Moreira - Agência Amazônia de Notícias
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