Caso Vicente Cañas: Estratégia da defesa é deslegitimar gravação
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“Vinte anos depois, talvez maior que a dor e o choque diante do crime brutal e perda estúpida de um amigo especialmente querido
é a amargura que gerou em nós o longo trajeto da impunidade
que mergulhou o caso insolúvel do jesuíta assassinado
nos ermos florestais em densas e isondáveis brumas policiais e jurídicas”
(Rosa Cartagenes-indigenista – outubro 2006)
Expectativa. No Fórum da Justiça Federal em Cuiabá, uma sentença é muito esperada.Um dos acusados pelo assassinato do Vicente Kiwxi terá sentença decretada pelo júri popular. Hoje, o juiz Jéferson Schneider, que preside o júri, anunciará pausadamente: condenado ou inocente.
A decisão
Da consciência de sete jurados, formada a partir dos cinco dias de intensas informações e debates, silêncios, com raros risos e muita apreensão, sairá a decisão. Será condenando ou inocentando o réu Ronaldo Antonio Osmar, então delegado de polícia de Juína, acusado de ser o agenciador e pagador dos executores do assassinato do Irmão Vicente Cañas, no início de abril de 1987.
Kiwxi, como foi chamado o jesuíta, Irmão Vicente, pelos Enawenê Nauê, só foi encontrado quarenta dias após o covarde e brutal assassinato,quando uma grupo de missionários da região e do regional e secretariado nacional do Cimi foram lhe fazer uma visita.
O julgamento está sendo conduzido pelo juiz Jéferson Schneider, da 2a. Vara da Justiça Federal, em Cuiabá, com bastante serenidade. O julgamento corre em ritmo de tranqüilidade, dando o tempo necessário a cada uma das nove testemunhas arroladas (cinco da acusação e quatro da defesa). Até agora, os depoimentos duraram entre duas e cinco horas. Vale destacar a perspicácia, objetividade, firmeza e competência com que está sendo conduzido o julgamento.
As estratégias
Percebeu-se no decorrer do julgamento que as peças para que estariam voltadas as atenções eram as gravações dos fatos narrados por dois índios Rikbatsa, Paulo Tompeba e Adalberto Pinto. Este dois indígenas ouviram narrativas sobre o assassinato feitas por integrantes da expedição e conhecedores da mesma. Essa fita gravada em 1988, e posteriormente degravada e anexada aos autos do processo.
A defesa buscou o tempo todo descaracterizar esta gravação, que foi ouvida várias vezes no decorrer do julgamento. Além disso, levantou as hipóteses de morte natural de Vicente e chegou a insinuar a responsabilidade de indígenas na morte.
Para a acusação, a veracidade da fita e das narrativas ali contidas é insofismável. As testemunhas de acusação corroboraram essa afirmativa.
Pelo fim da impunidade – força e simbolismo da decisão
O assassinato de Vicente Cañas teve grande repercussão nacional e internacional. Isso levou, inclusive, a uma intervenção especial a partir de instâncias estaduais. Apesar disso o inquérito correu por seis anos na Justiça comum, sem que houvesse conclusão com a pronúnicia dos réus. Isso só aconteceu em meados da década de 90. Só em 2001 o processo foi transferido para a esfera federal, pelo fato de Vicente, por ocasião do assassinato, fazer parte do Grupo de Trabalho da Funai, que estava fazendo a identificação da terra indígena.
Só agora, quando já faltam poucos meses para o processo ser extinto por decurso de prazo (20 anos), é que acontece o julgamento. E provar um crime 20 anos depois não é algo fácil, sobretudo se este crime tiver sido acobertado por pessoas com influência política e econômica em uma região que apenas começava a ser ocupada pela sociedade ocidental, e uma região rica em madeiras e recursos naturais.
Como nessas últimas décadas houve inúmeras mortes de lideranças indígenas e dos aliados desses povos, e lutadores da terra e da justiça, que ficaram na impunidade, cresce a importância desse julgamento.
No hall de entrada do Fórum, o círio pascal acesso no primeiro dia do julgamento continua iluminando. Estará ali até o final. Será a força de todos os mártires da justiça deste continente, que juntamente com a intercessão especial de Vicente, estarão iluminando um novo caminho para os povos excluídos e discriminados, os oprimidos e injustiçados, na construção de Abya Yala, justa e plural.
Egon Heck
Cuiabá, 28 de outubro de 2006